Santos, 1865. O fotógrafo carioca Militão Augusto de Azevedo ajustava na terra batida da Rua Santo Antônio (atual Rua do Comércio), o tripé de sustentação de seu equipamento, um daguerreotipo adaptado para a técnica do colódio (fixação da imagem negativa capturada em uma superfície de vidro). Ele estava de passagem pela cidade portuária executando parte do trabalho para qual foi contratado pelos ingleses da São Paulo Railway, empresa que construía, desde 1860, a estrada de ferro que ligaria o porto de Santos à capital bandeirante e às regiões cafeeiras de Jundiaí. O fotógrafo, além de registrar o andamento das magníficas obras de engenharia ao longo da estrada, também produzia imagens de boa parte da área urbana santista, revelando uma cidade em plena transformação. As perspectivas de desenvolvimento econômico eram grandes na pequena cidade de pouco mais de oito mil habitantes. Os santenses testemunhavam, fascinados, o surgimento de diversas edificações de caráter comercial e belas residências que prometiam mudar definitivamente a cara da velha cidade de arquitetura colonial.
Militão ponderou que, para traduzir a ideia do desenvolvimento santista, a foto ideal estava ali diante de seus olhos, na velha rua Santo Antônio, onde se erguia uma enorme edificação, de dois pavimentos, quase colada à vetusta Capela da Graça (1562), levantada à época dos primeiros colonos da vila santense. Era o contraste perfeito. O prédio em construção representava o novo momento da cidade e sua obra era bancada por um grande empresário da praça cafeeira, o comendador português Manoel Joaquim Ferreira Neto, que apresentou o projeto do imóvel numa sessão da Câmara Municipal, em 18 de fevereiro de 1863, para abrigar a sua empresa, a Casa de Comércio Ferreira Neto & Cia, além de sua própria residência. Naquele mesmo ano o empresário obtivera a concessão para explorar um trapiche no porto do Bispo, em local estrategicamente disposto a poucos metros de sua nova edificação.
Projetado e construído em forma de ferradura, ou “U”, o prédio foi concebido de forma híbrida, justamente para o uso residencial, no segundo pavimento, e comercial, no primeiro, uma tendência da época. Toda a parte de alvenaria foi feita em pedras, devidamente revestida com argamassa de areia e cal, com paredes internas do tipo “francesa”. Os pisos e forros do imóvel eram todos de madeira.
Na parte superior da casa foram colocadas doze portas com balcões, todos protegidos com gradil de ferro batido ricamente trabalhado (nove deles na fachada frontal e três para o pátio interno do imóvel). Nesta ala residencial havia quinze ambientes, divididos em quartos, salas e escritório. Banheiro e cozinha ficavam na parte de baixo, em ala reservada. Com o tempo, quando da chegada dos sistemas de distribuição de água e coleta de esgoto, foi possível instalar sanitários e a copa no andar superior.
Uma das características marcantes do imóvel eram as largas aberturas que dispunha para a rua, destacando-se o portão central, por onde era possível passar carroças (com mercadorias) e carruagens e liteiras (que transportavam os abastados proprietários do lugar). Entre alguns historiadores há uma certa discussão sobre o real uso do pavimento térreo na gênese da casa. Há quem defenda que, no início, o imóvel serviu apenas de residência para a família do comendador Ferreira. Porém, os que defendem o contrário, argumentam que as edificações híbridas (comércio e residência) eram muito comuns naquela segunda metade do século 19, e a nova edificação da Rua Santo Antônio não era uma exceção à regra.
Frontaria Azulejada
Muitas pessoas acreditam que os famosos azulejos portugueses pintados à mão, em alto relevo, que marcaram definitivamente o lugar, foram instalados na sua origem. Ledo engano. Só após a morte do comendador Ferreira Neto, em 1868, é que se providenciou a instalação deles. Não se sabe se fora o próprio comerciante português quem adquirira o material, quando fora a Portugal, comprando-o, talvez, numa das suas viagens à terra natal antes da morte. O que se diz, entre eles o historiador Francisco Martins dos Santos, é que a obra foi providenciada pelo sócio de Ferreira, Luís Antônio da Silva Guimarães, possivelmente para cumprir a vontade de seu velho amigo. Importante ressaltar que além da questão estética, a colocação dos azulejos tinha por objetivo assegurar uma vedação eficiente contra a água da chuva e também para evitar diversas pinturas.
A empresa continuou suas atividades ainda por muitos anos, sob o comando de Luís Guimarães e os herdeiros do comendador Ferreira Neto. Alguns pesquisadores, como a professora Wilma Therezinha de Andrade, afirmaram em antigos textos que havia uma pequena senzala nos fundos do imóvel, na parte térrea, do lado esquerdo de quem vê de frente da Rua do Comércio. No andar superior, na parte traseira do casarão, dois terraços azulejados ofereciam uma privilegiada vista do canal do porto e da Serra do Mar. De lá era possível observar o movimento nos trapiches do porto do Bispo.
Glória e decadência
A Casa da Frontaria Azulejada, como a edificação passou a ser conhecida por todos os que circulavam pela rua Santo Antônio, que se tornaria Rua do Comércio em 16 de fevereiro de 1921, foi por muitas décadas um agitado armazém de café. A família do comendador se mudaria do local não muito tempo depois de sua morte e a parte superior do imóvel se transformou em escritório. O local, porém, era demasiado grande para abrigar as atividades burocráticas da empresa. Assim, os herdeiros decidiram vender o espaço para a exploração de hotelaria. Foi então que lá se instalou, na década de 1940, o Hotel Guanabara.
Vinte anos depois, diante da decadência do Centro, que perdia sua atenção turística e de negócios para Gonzaga, Boqueirão e José Menino, o Hotel Guanabara fechava suas portas. A Casa da Frontaria Azulejada foi, então, adquirida pelo empresário José Francisco Barros de Melo, que lá resolveu instalar sua empresa de armazenagem de adubos químicos, atividade que, sem sombra de dúvida, foi determinante para o início de um longo processo de degradação do imóvel. Logo de cara, a porta central do belo casarão era desconfigurada, para que pudesse permitir a passagem de caminhões de grande porte. Os azulejos portugueses, símbolo do espaço, começaram a cair, um a um, isso quando não eram arrancados por algumas pessoas que passavam pelo local.
Tombamento
A situação periclitante da casa chamou a atenção da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no início dos anos 1970. Após vários estudos para determinar a importância do prédio para a história de Santos e do comércio brasileiro, em função do porto, a Casa da Frontaria Azulejada foi tombada como “patrimônio nacional” no dia 3 de maio de 1973 (Processo 0751-T-65, Livro Inscrição nº 441, Volume 1, Folha 072). Na inscrição oficial foi assim registrado: “Edifício de dois pavimentos com frontaria azulejada na Rua do Comércio, 94/96 e 98”.
Com a conclusão do processo, a empresa de Barros de Melo foi logo notificada para que paralisasse suas atividades. Os gases emanados pelo adubo químico ali depositado haviam sido, sem sombra de dúvida, a principal fonte causadora do apodrecimento dos forros e pisos do segundo pavimento, bem como de vários outros elementos históricos do imóvel.
Diante da situação, o proprietário do prédio decidiu não mais recuperá-lo. A Casa da Frontaria Azulejada, então, passou a viver seus piores dias.
Ruínas e desapropriação
Sem uso, o imóvel começou a “apodrecer”, literalmente. No início dos anos 1980, todo o forro e piso do segundo andar ruíram, tornando uma possível reforma praticamente inviável. A partir dali, não havia outro caminho, a não ser reconstruir o que se perdera. Além de desprezar a manutenção, o proprietário também deixou de recolher os impostos e as dívidas se acumulavam. O retrato do abandono era latente na decadente rua do Comércio dos anos 1980. Pressionada por parte da sociedade, a Prefeitura, então, abriu um processo de desapropriação da Casa de Frontaria Azulejada, com objetivos futuros de restauro.
Finalmente em 1986, o processo de desapropriação se concluiu e a edificação passou para as mãos da municipalidade. Naquela altura só restavam do imóvel as paredes externas e os dois arcos internos frontais. No ano seguinte, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado de São Paulo, também tombou o casarão, tornando-o patrimônio paulista (Processo 22046/1982, inscrito no Livro Tombo sob o número 220, página 67, em 19/01/1987).
A despeito de ter trocado de dono, o imóvel ainda permaneceu na mesma situação por mais alguns anos, até que, em 1992, a Prefeitura conseguiu obter verba para iniciar um processo de recuperação. Àquela altura, a Casa da Frontaria Azulejada também havia sido tombada pelo órgão de defesa do patrimônio histórico local, o Condepasa (Livro Tombo 1, inscrição 2, folha 1, processo 16731, resolução SC 01/90). A então Secretaria de Desenvolvimento Urbano montou o projeto e começou a obra pela fachada frontal, recuperando o desenho da porta central, em arco; do frontão e a recomposição dos azulejos perdidos, sendo que muitos tiveram que ser refeitos. Na época, a Prefeitura contratou o escritório do renomado restaurador Luís Sarasá para a produção desses novos azulejos. O artista plástico criou um novo molde a partir dos azulejos que ainda se encontravam em boas condições. Ele moldou, queimou e esmaltou cada uma das cerca de sete mil peças de argila feitas para este restauro.
Arquivo e cobertura nova
O restauro da fachada foi concluído em 1994. No final do ano seguinte, a Prefeitura decidiu criar uma instituição para administrar o sistema de arquivos públicos e passou, então, a propriedade da Casa da Frontaria Azulejada para esta nova entidade, que viria a se chamar Fundação Arquivo e Memória de Santos. A proposta era produzir um plano robusto para tornar o espaço o Arquivo Histórico Municipal. O maior obstáculo era devolver ao imóvel o seu telhado original, que seria objeto de projeto futuro. Enquanto isso não acontecia, a administração criou no galpão anexo da Frontaria uma sala para abrigar os arquivos históricos da Prefeitura, que estavam espalhados em vários prédios públicos. O gesto foi uma forma simbólica para determinar a função que a Casa da Frontaria Azulejada deveria ter a partir dali. Pelo menos três projetos foram propostos nos anos seguintes, todos com foco de utilizar o espaço para atividades mistas de arquivo e cultura.
As propostas
O primeiro estudo de intervenção proposta para a Frontaria foi elaborado pelo arquiteto paulista João Walter Toscano (vencedor do Grande Prêmio da 4ª Bienal Internacional de Arquitetura de 1999, com o projeto da Estação Dom Bosco, da CPTM da Capital). Ele sugeria a utilização da Frontaria como um autêntico Centro Cultural, dotado de auditório, biblioteca e atelier para a realização de oficinas. O projeto, entretanto, não saiu do papel. Em 2006, o arquiteto Nelson Gonçalves de Lima Junior, voltou a apresentar uma proposta para o espaço, sugerindo o uso misto de arquivo e centro cultural, com espelhos d’água, passarelas entre os dois lados do piso superior. Também não vingou. Por fim, o arquiteto Nelson Santos Dias, membro integrante da Fundação Arquivo e Memória de Santos, profundo conhecedor da estética legal para a construção de centros arquivísticos, elaborou, em 2007, um projeto alinhado às demandas do sistema municipal de arquivos. Seu trabalho, focado nas premissas do Conselho Nacional de Arquivos, chegou a ser transformado em livro: “Casa da Frontaria Azulejada: Um Edifício para Um Arquivo”, publicado em 2010. Nenhum dos três vingou, mas foram ótimas contribuições para avaliar qual papel a Casa da Frontaria Azulejada pode ter para a sociedade santista.
Nos dias de hoje
A Casa da Frontaria Azulejada, assim, se tornou um espaço para eventos culturais diversos. O arquivo que ocupava o galpão anexo foi transferido para a rua Amador Bueno, 61 (onde está até hoje). O espaço foi transformado, então, na Sala Serafim Gonzalez, uma área de apoio aos eventos da casa, bem como para exposições, palestras, e ações da mesma natureza. Todo o restante do espaço foi mantido da forma como estava, em “ruínas”, com as paredes internas expostas, sem reboco, propiciando ao visitante vislumbrar a característica construtiva do século 19. O primeiro evento da Casa da Frontaria Azulejada aconteceu em 5 de dezembro de 2007, uma exposição de fotografias, intitulada “Ayvu Rapitá”, com a assinatura de Antônio Vargas. A mostra retratava, em 40 banners, flagrantes de aldeias de índios pataxós, chicrins, kaiapós, yalapitis, terenas, tapirapés, auá-guajás, entre outras tribos e reservas. Dali em diante, a Casa abrigou diversos eventos do calendário oficial da cidade, como o Festival Santista de Teatro Amador (Festa), o Santos Jazz Festiva, o Festival Santos Café, a Mirada, o Festival Nacional de Dança, o Geek Festival, entre outros.
Em 2018, a Casa da Frontaria Azulejada foi novamente fechada para manutenção do sistema de telhados e acabou reaberta no início de 2020, com um evento de artesanato promovido pelo Fundo Social de Solidariedade de Santos.