Dono de um prédio de beleza rara, de uma biblioteca de acervo único, de uma história de tradição lusitana que atravessou fronteiras. Instituição completa 125 anos nesta terça-feira com um vigor invejável.
Santos, domingo, 1º de dezembro de 1895. A plateia do Teatro Guarany estava repleta de figuras entusiasmadas. No murmurinho provocado pelos convidados, era marcante o forte sotaque lusitano. E não era para menos, afinal ali estava a nata da colônia portuguesa instalada na cidade, tida como uma das mais importantes e numerosas do mundo fora de Portugal. O rumor arrefeceu apenas quando subiram ao palco os dois personagens mais importantes daquele meio de tarde: Luís José de Mattos, então vice cônsul português em Santos; e Manoel Homem de Bittencourt, um respeitável cirurgião-dentista, membro destacado da Sociedade de Beneficência Portuguesa, considerado um dos mais atuantes defensores das causas lusitanas na terra santense. Ambos haviam convocado seus patrícios ao propósito da criação de uma sociedade que pudesse, além de enraizar as tradições culturais de sua terra natal, também oferecer apoio e guarida aos imigrantes portugueses na cidade, provendo-os de assistência médica, odontológica e educacional. Era criado, então, no começo da noite daquele domingo produtivo e agradável, o “Real Centro Português”.
Alguns dias depois, já tendo recolhido a assinatura de dezenas de associados, Mattos e Bittencourt, consolidados como os sócios nºs 1 e 2 da nova agremiação, resolveram instalar a novel entidade, ainda que de forma provisória, num velho sobrado colonial da Praça da República, 11, pertinho da velha Matriz de Santos. A primeira providência da agremiação foi a criação da Escola “João de Deus”, destinada a dar aos compatriotas humildes a oportunidade de instrução. O colégio oferecia inicialmente o curso primário, com aulas gratuitas, dadas por professores voluntários no período noturno. Mais tarde, o estabelecimento passou a disponibilizar cursos de francês, esgrima, tiro ao alvo, dança, música e arte dramática – responsável pelo famoso Corpo Cênico do Centro Português, criado em 2 de maio de 1899 e que manteve atividades, com destacada atuação, por mais de cinquenta anos.
A sede própria
Manuel Homem de Bittencourt assumiu o posto de presidente da associação e passou, então, a defender que fosse viabilizada a construção de uma sede própria, que estivesse à altura dos anseios e do merecimento de seus patrícios. Ainda no final do século 19, os portugueses conseguiram adquirir um excelente terreno na esquina da rua Amador Bueno com Martim Afonso e ali planejaram a construção do prédio, cujo projeto fora assinado pelos engenheiros portugueses Ernesto Maia e João Esteves Ribeiro da Silva. A ideia de ambos era surpreender a cidade com algo nunca visto em Santos. E foi exatamente isso o que aconteceu. As obras do Centro Real Português se iniciaram em 15 de maio de 1898 e foram concluídas em 8 de outubro de 1900. Para viabilizar o sonho, a comunidade lusitana se uniu de forma intensa, promovendo ações de arrecadação de fundos por meio de leilões de obras de arte, promoção de quermesses e sorteios de diversos produtos. Mas fora, sem sombra de dúvida, a colaboração dos beneméritos António Domingues Pinto e António dos Santos Coelho Germano que acabou pesando na balança. Ambos doaram praticamente 80% dos recursos necessários para tocar a grandiosa obra que se ergueu. E certamente não se arrependeram, pois o resultado ficou belíssimo. Construído em estilo arquitetônico conhecido como “neomanuelino”, tal qual o Real Gabinete Português de Leitura, do Rio de Janeiro, o prédio deu uma nova identidade visual para a antiga Rua das Flores (denominada Amador Bueno na década de 1880).
Se a edificação chamava a atenção de todos pela sua estética externa, o mesmo, e talvez até mais, se deu em seus ambientes internos. A agremiação foi decorada com absoluto requinte, saltando aos olhos o bom gosto e a arte, com destaque para os salões Cerejeira e o Camoniano, este último ornamentado com magníficas obras de arte e pinturas de teto e murais impressionantes, remetendo o visitante à ideia de estar em plena Europa renascentista.
Em 1926, o espaço foi ampliado, com a aquisição do terreno vizinho, que foi transformado em Jardim-Grill, onde eram realizadas grandes festas, em especial as de Carnaval. Neste mesmo local foi construído, em 1984, um salão com cerca de 800 m² dotado de palco e cozinha, denominado Alberto Ferreira dos Santos.
O teatro – auge, decadência e resgate
Em 12 de abril de 1908, a agremiação inaugurava seu Salão-Teatro, se consolidando como uma referência no universo das artes cênicas na cidade. Nos anos 1950, o local sofreria uma grande transformação, sendo reinaugurado com modernas poltronas e fina decoração, tornando-se, assim, uma das mais badaladas casas teatrais de Santos, agora com a denominação Teatro Júlio Dantas. O glamour e a pujança se deram por pouco mais de vinte anos. Em 4 de dezembro de 1979, abalada por uma forte crise financeira, a entidade se viu obrigada a alugar seu teatro, que acabou transformado em sala de cinema para filmes pornográficos e kung-fu, seguindo o triste caminho de outros espaços importantes como o Coliseu e o Guarany. Esta situação só se reverteu em 1995, quando o Centro Real Português retomou o seu espaço após ação judicial. Hoje, o teatro está revitalizado, como nos velhos e áureos tempos.
Os Ranchos
O Real Centro Português, que mudaria de denominação, para Centro Cultural Português, foi o responsável pela criação do primeiro rancho folclórico do Estado de São Paulo, em 1961. No ano seguinte os integrantes deste grupo criariam o famoso “Tricanas de Coimbra”. Em 1963, a agremiação montaria um rancho mirim, que se tornaria, em 1966, no conhecido “Verde Gaio” (nome de um pássaro muito conhecido em Portugal).
Acervo precioso
Além das atividades tradicionais, a agremiação formou uma das mais preciosas bibliotecas da cidade, com milhares de livros para uso de sua comunidade, alguns raros, como uma edição especial dos “Lusíadas”, de Luís de Camões, dedicado ao imperador D. Pedro II, editado em 1880.