Santos, 2 de fevereiro de 1936. Como todas as manhãs de sábado, os principais nadadores do Clube de Regatas Saldanha da Gama se reuniam bem cedinho à porta da agremiação no intuito de planejarem os treinos semanais visando suas participações nos mais variados torneios, como o tão badalado Campeonato Paulista de Natação e Saltos, que aconteceria em março na piscina do Clube de Regatas Tietê, da capital. Lá estariam alguns dos nomes que compunham a nata do nobre esporte aquático santista, como Arrigo Battendieri, Luís Martins Nianna, Valdo Silveira, Hans Meyer, Veridiano, Christi Von Wieser, José Millás e Carlos Reupke, todos jovens e cheios de disposição, desejosos pela conquista de troféus e medalhas para a cidade santista.
Entretanto, naquele sábado, um treino diferente estaria para ser proposto. Reupke falava com entusiasmo a alguns de seus companheiros sobre o torneio de Travessia do Tietê, que acontecia desde 1924 nas águas do velho rio paulistano, entre a ponte da Vila Maria e a Ponte Grande, defronte ao Clube Espéria. Em meio a pensamentos fervilhantes, o jovem nadador de 19 anos olhou para as mansas águas do canal da Barra de Santos e teve uma ideia. Por que não fazer em Santos aquele mesmo tipo de prova, sugerindo-a para um cenário mais belo e até histórico? Foi então que provocou os amigos: Escutem! Eu proponho um desafio a vocês. Vamos ver quem chega primeiro numa corrida daqui à praia de Santa Cruz dos Navegantes, ida e volta?
Apesar de constituir-se um desafio ousado, em razão da distância entre as margens (cerca de 1000 metros), além do inconveniente gerado pelas correntezas das águas estuarinas, não houve quem não se entusiasmasse com a ideia de Reupke.
Os preparativos
Durante a semana tudo fora minuciosamente planejado para que a inédita prova pudesse acontecer no domingo, dia 9. Cerca de trinta atletas se predispuseram a participar do acontecimento aquático o qual batizaram de “Travessia do Canal da Barra”, cuja largada se daria defronte ao próprio Saldanha da Gama. Os nadadores deveriam passar próximos ao trampolim da Ponta da Praia até chegar ao outro lado, na Ilha de Santo Amaro, no trecho colado à Fortaleza da Barra Grande. Ao atingirem a praia de Santa Cruz dos Navegantes, os concorrentes tinham de tocar no fiscal de prova e retornar à água, o quanto antes. Obviamente, ganhava a competição o primeiro que “cumprimentasse” o fiscal do lado santista.
Depois de checarem se tudo estava pronto, a largada fora finalmente dada perto das 8 horas, sinalizada por um tiro de revólver. Os trinta pioneiros, então, mergulharam nas águas do canal da Barra, ávidos por conquistarem seus lugares na história. Entre uma braçada e outra, os atletas de perfil velocista claramente tomavam à frente, deixando para trás os nadadores fundistas. A prova, entretanto, era longa, de cerca de 1.000 metros (ida e volta). Para se ter uma ideia, as competições olímpicas de natação da época previam apenas as modalidades de 100, 200, 400 e 1.500 metros. Portanto, a competição santista era vantajosa aos que competiam em provas de grande distância.
Muitos dos atletas chegaram esbaforidos na praia de Santa Cruz e acabaram desistindo de fazer a segunda “perna” da corrida. Houve quem sucumbisse no meio do caminho e acabou socorrido pelos botes disponibilizados pelo Saldanha justamente para agir em tal situação. Após mais de vinte minutos de prova, a primeira Travessia de Canal de Santos conheceu seu primeiro grande herói, o novato José A. F. Millás, que havia estreado no clube santista algumas semanas antes, participando e vencendo provas de 100 metros rasos na capital. O segundo colocado foi Ary Toledo, que chegou apenas dez segundos atrás do vencedor, seguido de Arrigo Battendieri, Luís Martins Nianna, Hans Meyer, Veridiano e Christi Von Wieser.
Um jovem prodígio
Três anos depois, em 9 de abril de 1939, a brincadeira dos saldanhistas se transformava em prova oficial, com regras e exigências mais rígidas, como a obrigatoriedade de exame de aptidão física e uso de gorro com a numeração do competidor. O interessante da nova sistemática era a forma de controle dos atletas no outro lado do canal. O nadador que chegasse à praia de Santa Cruz tinha de ir até a mesa do fiscal e dizer seu nome, antes de voltar às águas da entrada da Barra.
Entre os 42 inscritos estavam grandes nomes da natação santista, muitos deles responsáveis pelas maiores glórias da cidade nos Jogos Abertos do Interior e, portanto, aspirantes a protagonistas do dia. Porém, foi um menino de apenas 11 anos de idade, Armando Veridiano Laranja, a grande atração da competição de 1939. Em meio a tantos marmanjos, o garoto chegou entre os dez primeiros da prova, deixando para trás um considerável número de marmanjos. A prova também marcou a participação feminina na Travessia do Canal, vencido por Ivone D’Ascola (ela voltaria a vencer na sua categoria em 1942).
A Tribuna
O sucesso da prova oficial se espalhou e começou a atrair atletas de todos os cantos do país. Em 1940, foram registrados 194 atletas e, em 1941, nada menos do que 480 nadadores em busca da vitória. Santos, definitivamente, se colocava, mais uma vez, no mapa das grandes sedes competitivas da natação brasileira.
No início da década de 50, a prova foi institucionalizada pela Lei 1.190/1951 e passou a ser promovida pelo jornal A Tribuna, que incorporou seu nome ao torneio: Travessia do Canal a Nado – A Tribuna. A competição também ganhou novas regras e distâncias (passando a ser 2.500 metros para os homens e 1.000 para mulheres). Da mesma forma, atraiu a atenção de atletas oriundos do exterior, como os argentinos Jorge Mezzadra (campeão em 1958), e os irmãos Carlos e Eduardo Fiorito.
Entre os grandes nomes da natação brasileira que competiram em algumas de suas muitas edições, se destacaram Djan Madruga (tricampeão da Travessia dos Fortes e atleta medalhista olímpico), Jiro Hashizume, Manoel dos Santos Júnior (recordista mundial dos 100 metros nado livre, nos anos 60, e medalhista olímpico), Haroldo Melo Lara, Alfred Jacob, João Agustinho de Almeida, Moacyr Rebello dos Santos, Ângela Paioli, Maria Rita Lopes Natale e principalmente Norio Ohata, vencedor em Santos por seis vezes consecutivas (1961-61-63-64-65-66).
Antes de ser interrompida, em 1977, a competição alcançou o auge em 1975, quando contou com a participação da equipe norte-americana Mission Viejo, uma das melhores daquele país, contando com vários nadadores olímpicos, entre eles Jesse Vassalo, de 15 anos, vencedor da travessia de Santos e recordista mundial dos 400 metros em 1978.
Paralisadas por 20 anos
As disputas foram congeladas por vinte anos, em razão da falta de segurança no canal da barra, que contava com um tráfego de embarcações cada vez mais concorrido. Porém, em 1997, por iniciativa da Sociedade Amigos da Marinha (SOAMAR), a prova foi resgatada. Os pontos de partida e transição, no entanto, iam mudando de forma recorrente. Em 2004, os nadadores passaram a largar na Ponta da Praia, nas imediações do Aquário Municipal, para chegar à Fortaleza da Barra, na Ilha de Santo Amaro. Em 2012, a largada foi transferida para o outro lado, na praia do Góes, com término na praia de Aparecida, defronte ao Escholastica Rosa.
Hoje, passados 80 anos de sua oficialização, a Travessia do Canal de Santos se firma como a mais tradicional prova do gênero no Brasil.