Um dos mais ardorosos defensores da memória santista deixou muitos ensinamentos sobre a importância da luta pelo patrimônio histórico
Santos, 2010. Eram quase 11 horas da noite quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, a voz entusiasmada de um bom amigo convidava-me, quase como uma convocação, para irmos, juntos, verificar de perto o primeiro teste do bonde turístico no ramal que estava sendo estendido para os lados do Castelinho dos Bombeiros, Fórum e Catedral. “A essa hora, cara? Já não está meio tarde pra essas coisas, não?”, disse eu, confesso, com um pouco de preguiça para sair de casa. “Não! Vamos! Nunca é tarde demais para testemunhar a história acontecendo diante dos nossos olhos!”, replicou o apaixonado historiador Waldir Rueda Martins. Contemporâneo de minha geração, nascido em 18 de dezembro de 1966, Waldir exibia um brilho nos olhos quando o assunto era a memória da nossa querida cidade de Santos. E, como todo inflamado entusiasta, colecionava tudo o que se podia imaginar, desde que fosse relacionado à memorialística santista.
Em sua singela casa, localizada no bairro do Marapé, rua Manoel Elias Ruiz, ele mantinha praticamente um pequeno museu. Rueda colecionava postais, livros, revistas, moedas, fichas de cassino, selos, papeis de propaganda e até telhas, azulejos e pedaços de ornamentos de casas antigas demolidas. Ele era um defensor ardoroso do patrimônio histórico da cidade e não pensava duas vezes antes de “meter as caras” junto ao Ministério Público, Câmara Municipal e Condepasa (Conselho de Defesa do Patrimônio de Santos) exigindo a proteção de edificações de significativo valor cultural. Por conta de sua postura insistente e aguerrida, arrumou encrenca com muita gente e chegou a ser ameaçado diversas vezes. No entanto, nunca se intimidou e, não fosse por sua luta, prédios como o da antiga Faculdade de Filosofia, na rua Euclides da Cunha, certamente teriam virado pó.
Rueda era uma figura carimbada na redação do jornal A Tribuna. Praticamente toda semana ele levava uma denúncia ou informações sobre fatos relevantes que aconteciam com o patrimônio da cidade. Ele comprava brigas variadas, como a da preservação de uma ossada de baleia encontrada em São Vicente; a “repatriação” de trólebus santistas abandonados numa cidade do interior; pela segurança nos cemitérios, em função dos roubos constantes de estátuas e placas; isso sem falar dos inúmeros imóveis históricos que corriam risco de demolição e acabaram tombados por força da atuação voluntária do historiador, que agia como uma espécie de “consultor informal” do Ministério Público. Outro feito foi com a própria legislação. Mesmo não sendo vereador, Rueda conseguiu junto à Câmara, emplacar uma Lei (LC 496, de 21 de maio de 2004) que obrigava que fossem fotografados, antes de serem demolidos, todos os imóveis com mais de cinquenta anos.
Todas essas ações ousadas colocaram Rueda num patamar diferente como historiador. E ele não o fazia pela vaidade, mas, sim, pela paixão à memória da cidade. E compartilhava seu conhecimento com os outros. Vez em quando, promovia roteiros históricos a grupos interessados e, com isso, seguia os mesmos passos de sua mentora e referência, a professora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, que atuou como sua orientadora no trabalho de conclusão do Curso de História da Unisantos. Wilma o inspirava, pois também era uma árdua defensora das causas históricas da cidade santista, referência em tombamentos, como o dos Casarões do Valongo e na luta pela instalação do Museu Pedagógico dos Andradas na Casa de Câmara e Cadeia (o que, infelizmente, não aconteceu).
Ainda que aparentemente fosse visto como um esbravejador, Rueda era dono de uma alma sensível. Bastava olhar para as origens de suas lutas. Em 1986, quando contava com apenas 19 anos de idade, ele criou uma “Associação de Amparo aos Animais”, em Praia Grande. Outra de suas paixões era o violino. Via de regra, Rueda participava de grupos ligados à igreja para se apresentar. Apesar do amor pela história, Waldir só se graduou aos 37 anos de idade, mas isso era visto como algo positivo, por conta da maturidade amealhada durante sua vida. Prova disso é que seu trabalho de conclusão acabou se tornando um livro aclamado (Braz Cubas: Homenagem a uma Vida – Editora Comunnicar – 2008), a ponto de Rueda ter sido convidado a falar sobre a obra no badalado programa “Jô, Onze e Meia”, apresentado por Jô Soares, na Rede Globo, em 2008.
Foi nessa época que nossos caminhos se cruzaram. Eu estava produzindo um livro sobre a história dos bondes de Santos, e ele também. O bom é que trilhávamos caminhos diferentes em termos de estilo literário. Enquanto eu escrevia um romance com pitadas inspiradas em “Harry Potter” e “Código da Vinci”, Rueda desenvolvia um compêndio gigantesco de dados sobre a trajetória de 100 anos do mais importante sistema de transporte da história da cidade. Enfim, era algo muito mais complexo do que o meu projeto (lançado em abril de 2009, nos festejos do centenário do bonde elétrico). Waldir bem que tentou viabilizar o seu trabalho e eu ajudei o quanto pude, inclusive inserindo-o na Lei Rouanet, mas não houve tempo. Sua pesquisa ficou presa em seu computador. No final de 2010, convidei-o para trabalhar no projeto “Almanaque Santista”, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, o que levantou o seu astral, uma vez que ele voltara a sofrer as dores de um câncer descoberto em 2002.
Duas semanas antes de sua morte, ocorrida em 21 de agosto de 2011, cruzávamos inesperadamente no Pronto Socorro da Beneficência Portuguesa. Eu com cólica renal e ele sofrendo as dores provocadas por sua doença cruel. Bastante abatido, bem magro, aquela foi a última vez que trocamos ideia. Sua partida deixou uma enorme lacuna na luta pela história de Santos. Daquele dia em diante, nunca mais recebi um telefonema no meio da noite para “testemunhar a história acontecendo diante dos olhos”. Porém, nesses dez anos de ausência do amigo Rueda, ainda que não tenha o seu ímpeto aguerrido, tive a felicidade de construir um caminho que certamente ele se orgulharia, assim como eu me orgulhava de ser seu amigo.