Santos, 1954. O imigrante italiano Fabrízio Tatini observava, pensativo, o salão de um castigado, e falido, restaurante situado no andar térreo do Edifício Lutécia (Avenida Ana Costa, 482), que lhe fora dado como pagamento de uma dívida. O lugar, diziam algumas pessoas, estava “amaldiçoado”. Contavam elas que a caveira de um burro havia sido enterrada embaixo do imóvel e que, em sete anos, o ponto passara pelas mãos de doze proprietários e arrendatários, sendo que absolutamente todos tinham naufragado em seus negócios. Veterano de vários conflitos armados (Abissínia, Espanha, Albânia-Grécia e Segunda Grande Guerra), o italiano, no entanto, não se impressionava com histórias de tal sorte. No ano anterior chegara ao Brasil determinado a vencer, a “Fazer a América”, como tantos de seus conterrâneos. Para isso Fabrízio contava com o apoio e a ajuda dos filhos (Dante, Dino, Athos, Mário e Iolanda), da esposa, Maria e da mãe, Natalina. Com essa parentela, pretendia arregaçar as mangas e construir uma história de sucesso.
Assim, na primeira semana, Tattini e seus filhos, em especial Mário, o mais velho, dedicaram-se à limpeza da futura “Cantina Don Fabrízio”. O desafio era enorme. O Lutécia (Lutèce), elegante edifício construído no estilo art déco francês, fora inaugurado nos anos 1940 como hotel para atender a demanda no auge do tempos dos cassinos (encerrado em 1946, com decreto que proibiu os jogos de azar no país). Em razão disso, o edifício foi transformado em residencial, dentro de um conceito inovador, com unidades compostas de quarto e sala conjugados, banheiro e uma pequena cozinha, feitos na medida para moradores solteiros ou sozinhos. Porém, as coisas não saíram como o desejado e o prédio acabou sendo ocupado por pessoas que utilizavam os apartamentos tão somente para encontros amorosos, formando um autêntico coletivo de “rendez-vous”. Para acompanhar o ritmo do imóvel, o espaço comercial elaborado para ocupar o andar térreo acabou se transformando numa espécie de boate, e das menos recomendáveis.
Diante da situação, Fabrízio estava determinado a mudar o cenário e fazer do lugar um ponto gastronômico de qualidade, a fim de atrair a melhor clientela da cidade. Com essa expectativa, Tatini abriu a sua cantina no dia 4 de julho de 1954.
Cena de novela
O início da caminhada foi mais difícil do que supunham Fabrízio, Mário e os outros membros da família Tatini. Nas primeiras semanas de funcionamento da casa, os únicos que apareceram foram os antigos frequentadores da boate, em busca de uma dose de pinga e diversão barata. A clientela parecia demorar a entender que as coisas haviam mudado. Afinal, daquele momento em diante, bebidas mais nobres, como vinhos e licores, passaram a adornar as prateleiras do lugar, assim como também foram suprimidas as luzes vermelhas, azuis e amarelas que existiam no entorno do salão. O grande balcão, agora, passou a ser um lugar digno das senhoras e da mocinha que lá trabalhavam.
Fabrizio tentou seduzir os santistas de várias formas, chegando até a montar algumas cenas “teatrais” com a própria família e amigos de São Paulo, que fingiam ser clientes refinados, na esperança de serem vistos pelos passantes da calçada. Também mandaram fazer panfletos e trataram como rei o primeiro cliente, de fato, da casa: um aposentado inglês que residia no Lutécia (um dos raros que não utilizavam o apartamento para encontros amorosos “informais”).
Moldes Familiares
Fabrízio encontrou o caminho do sucesso quando decidiu anunciar na Rádio Clube de Santos, tornando-se o campeão do programa “Oferendas Vespertinas”, por conta das dezenas de “tarantelas” que lhe eram dedicadas. A cantina italiana do Gonzaga, enfim, começava a ganhar fama. No final de 1954, o restaurante já atendia mais de duzentas pessoas por dia, em média. E esse número só aumentou com o passar dos meses.
O êxito da “Don Fabrízio” se dava por conta do meio de conduta do negócio, alicerçado na divisão de tarefas entre os Tatinis. O pai chefiava a cozinha; Athos, Mário e Dante, sempre vestidos de “smoking”, trabalhavam no salão como garçons; o quarto filho, Dino, era o barman, e de primeiríssima; Iolanda, a filha, tomava conta do caixa; a mãe cuidava da manutenção das roupas do restaurante e Dona Natalina, por fim, era a responsável pelas pequenas reformas, como a de transformar uma toalha furada em guardanapos.
Clientes estrangeiros
Com o passar do tempo, a cantina foi conquistando uma clientela especial: a de marinheiros que aportavam no Porto de Santos. Fabrizio e Mário, por terem conhecido vários países, por conta das guerras, sabiam falar outros idiomas, como francês, alemão, espanhol, inglês, italiano (é claro!), além do português (embora com bastante sotaque). Quando o restaurante recebia estrangeiros, os Tatinis tratavam de colocar, em cada mesa utilizada por eles, duas bandeirinhas: uma do Brasil e outra do país de origem dos clientes. Um dos filhos de Fabrízio, Dante, exímio músico, aproveitava para cantar alguma canção típica do país dos fregueses. Caso os visitantes fossem cadetes da Marinha do Brasil, eles eram recepcionados com o Hino da Marinha.
Esse tipo de tratamento construiu e solidificou a fama da Cantina Don Fabrízio, que acabou se tornando a responsável pela transformação radical do Lutécia. A edificação, de frequencia pouco aceitável, passou a ser reconhecida como local familiar e bastante “chique”.
Fama entre os paulistanos
A qualidade da comida e do atendimento da cantina santista chamou a atenção do público da capital, em especial de quem possuía imóvel em Santos ou Guarujá. Fazer uma escala de viagem na Don Fabrízio se tronou quase uma tradição para centenas de paulistanos donos de casas e apartamentos de veraneio na região. Com o tempo, havia gente que descia a Serra do Mar nos finais de semana apenas para comer na cantina italiana do Gonzaga, passar algumas horas na cidade santista e, só depois, retornar a São Paulo.
Esse sucesso entre os paulistanos foi fundamental para que Fabrizio Tatini tomasse a decisão de montar uma filiar do seu restaurante na capital paulista, o que veio de fato acontecer em 17 de junho de 1958. E, coincidência ou não, o local escolhido foi a Alameda Santos, na região da avenida Paulista.
Nat King Cole e o Papa
A fama da Cantina Don Fabrízio atravessou os anos, como referência de lugar sofisticado em Santos. Um dos diferenciais da casa era a preparação da maior parte dos pratos na frente dos clientes, com uso de fogareiros. Outro conhecido era a inovação. Virava e mexia, lá vinha um novo item no cardápio do Don Fabrizio, como o Fettuccine à Don, estrela do restaurante. Não havia prato “popular” na cantina santista. Massas, peixes, carnes, tudo de primeira qualidade. Isso atraia não só a clientela da alta sociedade local e da capital, mas inumeros artistas nacionais e até internacionais, como o músico norte-americano Nat King Cole, que fez questão de conhecer o lugar, de tanta propaganda que lhe fizeram.
Além do famoso cantor, outras personalidades visitaram o Don, como o presidente da Argentina, Pedro Eugenio Aranburu; ministros brasileiros, como Gama e Silva, Andreazza e Dirceu Nogueira; artistas nacionais como Procópio Ferreira; companhias teatrais da Itália; e centenas de outras personalidades que ali foram homenageadas em almoços e jantares.
A notoriedade da cantina santista era tão grande que, em um dos livros que Fabrizio Tatini deixava para coletar assinaturas de clientes ilustres, uma das primeiras frases, deixada com assinatura ilegível, dizia o seguinte: “Quem vem a Santos e não come no Don Fabrízio faz o mesmo que quem vai a Roma e não vê o Papa”.
O Fim
No final dos anos 1970, começou a ser aventada a demolição do Edifício Lutécia, para a construção de outro bem maior e moderno. Os Tatinis, então, resolveram não investir mais na casa de Santos e passaram a se dedicar ao estabelecimento da capital. Os proprietários da Cinema de Santos Ltda. chegaram a oferecer as salas dos cines Itajubá e Cinema I para que fossem transformados no restaurante Don Fabrizio, mas as negociações não vingaram. Assim, em
1980, após 25 anos de atividades e uma história impecável na cidade de Santos, o Don Fabrizio fechava suas portas, deixando saudade até os dias de hoje.
(O Edifício Lutécia foi, de fato, demolido e, em seu lugar construído o prédio de duas torres da esquina da Ana Costa com a rua Claudio Doneux)