Dona dos olhos azuis que encantaram o poeta Martins Fontes na tenra infância, a escritora foi testemunha ocular de importantes fatos da história santista
Santos, sábado, 29 de abril de 1922. A pequena Edith chorava em seu berço, assustada com o agito diferente que tomou conta de sua casa. Sua mãe, Zulmira, no afã sobre o comando das tarefas domésticas, havia levado um grave tombo, que a deixou imóvel no chão do quarto. Os irmãos da pequenina corriam de um lado para o outro buscando por ajuda. Por sorte, o pai, seu Francisco, não estava longe. Ele tinha ido com os dois filhos mais velhos, Jorge e Arnaldo, até a venda do bairro com o propósito de comprar a carne para o almoço. Ao tomar conhecimento sobre o ocorrido, ele acionou, por telefone, o médico da família, que logo chegaria de carro. Era a primeira vez que o clínico fazia uma consulta domiciliar para os Pires desde que eles voltaram a morar em Santos.
Zulmira ainda estava ao lado da pequena Edith, tentando acalma-la do susto, quando adentrou ao quarto o elegante José Martins Fontes, a quem todos chamavam de dr. Zezinho, tido como um poeta de mão cheia e um médico tão brilhante quanto era seu pai, Silvério Fontes. Antes de examinar a paciente, contudo, o visitante ficou paralisado, impressionado com a cena descortinada à sua frente: a pequena Edith, de pé no berço, sorria-lhe, agarrada às grades. O médico poeta ficou maravilhado com a intensidade dos olhos claros da menina de dois anos de idade. Foi então que Martins Fontes, em um dos arroubos que lhe eram peculiares, olhou para Zulmira e disse: – Segure suas dores, minha querida, pois preciso fazer uns versos para os olhos azuis desta menina.
Os olhos que deslumbraram o grande vate santista testemunhariam, ao longo dos anos, das décadas, grandes e marcantes cenas do cotidiano santista. A pequena Edith cresceria, casaria, teria filhos e viveria uma vida repleta de intensidades, amores, conquistas, alegrias, assim como de sofrimentos, decepções e angústias que, de forma madura, se transformariam em ensinamentos. Nos tempos de hoje, atingir a idade centenária não é algo tão atípico, porém incomum é chegar a esta marca reunido tantas lembranças e oferecendo contribuições para a sociedade santista.
As memórias iniciais e o Casarão Branco
Edith Pires nasceu na capital bandeirante, em 6 de julho de 1919, caçula de uma “tropa” de doze filhos, frutos do relacionamento de Francisco da Costa Pires e Zulmira de Barros. Eram tempos de esperança para o mundo, haja vista que em 28 de junho daquele ano a Primeira Grande Guerra havia sido oficialmente terminada, com a assinatura do Tratado de Versalhes. Dois anos depois, o pai de Edith, corretor de café, resolveria retornar a Santos, depois de passar uma “temporada” em São Paulo (os dez primeiros filhos nasceram na cidade praiana). Foram morar todos num belo sobradão situado na esquina da avenida Vicente de Carvalho com Rua da Paz. Foi ali que Edith cresceu, vivenciou a queda da mãe e encantou o poeta Martins Fontes com seus olhos azuis.
Em 1921, seu pai recomprara a antiga casa onde havia residido a família quando o casal tinha “apenas” sete filhos (Jorge, Arnaldo, Odette, Beatriz, Eliza, Valentina e Maria Isabel), na avenida Bartolomeu de Gusmão, 12 (Hoje a edificação, que ainda existe, é sede da Pinacoteca Benedicto Calixto, situada no número 15). No belo imóvel haviam nascido Sylvia e Francisco, os números oito e nove da prole. O lugar fora bastante castigado pelo dono anterior, o Asilo dos Inválidos de Santos, e teve de ser totalmente reformado, tarefa esta que levou dois anos para acontecer (1921/1922). Assim, os Pires finalmente reencontrariam seu lar no início de 1923 e, a partir daí, viveram tempos de felicidade. Edith foi para a escola em 1929, matriculada no Stella Maris, onde fez amigos inesquecíveis, como Agostinha Hernandes, a quem mais se afeiçoara. Por sua educação rígida, a caçula da família não sentiu a menor dificuldade em cumprir as regras duras do colégio e via de regra recebia medalhas e honrarias.
Tempos difíceis
No entanto, a partir de 1929, ano que ficou marcado pela fatídica quebra da Bolsa de Nova York, causadora de grandes estragos na economia brasileira, a vida de Edith e da família Pires estaria para dar uma guinada negativa. Os negócios de Francisco haviam sido duramente atingidos, a ponto dele, em 1935, decidir novamente vender o Casarão Branco e mudar-se com a família, agora menor por conta dos casamentos de alguns dos filhos, para uma casa térrea, bem mais modesta, situada também na avenida Bartolomeu de Gusmão, mas agora no número 55. A crise obrigou Edith, então com 16 anos de idade, a mudar de colégio, transferindo-se do Stella Maris para a Escola Normal do São José, que oferecia mensalidades menores. Foi lá que ela se formaria professora, no ano de 1936.
Ainda nos anos 1930, durante as revoluções de 30 e 32, a jovem Edith viveu períodos angustiantes, aflita pela vida dos irmãos, voluntários no conflito e enviados para o front de batalha no interior. Neste tempo ela contribuía para a causa revolucionária, costurando casacos para os bravos soldados paulistas. Outra tristeza vivida nesta década foi por conta da morte do poeta Martins Fontes, aquele moço que se encantara com seus olhos quando ainda era um bebê. Isso aconteceu em 25 de junho de 1937, apenas duas semanas antes dela completar 18 anos de idade.
Ao fim desta fase inquietante, mais tranquila e conformada, a jovem de penetrantes olhos azuis casou-se com o amor de sua vida, Cyro Gonçalves Dias, no ano de 1939, incorporando ao seu nome os dois sobrenomes do marido.
Uma vida plena de ações
Edith não exerceu a atividade profissional para qual se preparara no São José (a função do magistério), muito em razão do marido, que era fiscal de rendas da Delegacia Regional Tributária do Estado de São Paulo, ter lhe pedido para se dedicar às tarefas domésticas e maternas, no cuidado com os dois filhos do casal: Ciro Gonçalves Dias Júnior (nascido em 1941) e Vera Silvia Pires Dias de Oliveira (nascida em 1945).
Edith e Ciro moravam na Rua Mário Carpenter, Gonzaga. Foi lá que ela teve seu primeiro contato com uma das suas maiores causas: a da Associação Espírita Beneficente Anjo da Guarda. No mesmo andar onde residiam, também moravam o presidente da entidade e sua esposa. Como Ciro Junior chorava muito quando pequeno, um dia os vizinhos passaram no apartamento de Edith para dar um passe no menino. Daquele dia em diante, ele não chorou mais. Impressionada com o carinho e a força espiritual emanada pelo casal, Edith se tornaria voluntária da Anjo da Guarda, considerada a segunda instituição espírita mais antiga do Brasil, atuando por lá durante 42 anos. Chegou até a escrever um livro sobre a história da entidade, mostrando uma faceta incrível para a pesquisa e a literatura.
Edith se encontrou no mundo das letras, quem sabe talvez inspirada pelo poeta Martins Fontes, a quem tanto admirava. Se especializou em livros que narravam a memória da cidade, em especial suas próprias memórias, que nunca foram poucas. Entre elas, a do Casarão Branco (hoje ocupado pela Pinacoteca Benedicto Calixto), cuja luta pelo resgate abraçou com toda força.
Nesta época, Edith já atuava em diversas instituições culturais e sociais, como o Movimento de Arregimentação Feminina – MAF, onde chegou ao cargo de Diretora de Civismo. Durante dezesseis anos (1999-2014), era a senhora de belos olhos azuis quem tinha a prerrogativa de fazer o discurso de saudação ao fundador Braz Cubas durante os festejos de aniversário da cidade, em 26 de janeiro, na Praça da República. Exímia oradora, seus discursos encantavam a todos.
Edith teve ainda participação ativa no Clube XV, no Museu de Arte Sacra, na Academia Santista de Letras, na Academia Feminina de Letras, Artes e Ofícios e em outras várias entidades culturais, assistenciais e sociais. Em mais de 100 anos de vida, Edith teve dois filhos, quatro netos e quatro bisnetos. Nos anos finais de sua vida, ficou recolhida junto ao seio de sua amada família. Quando pôde, recebia os amigos (e sinto a honra de ter sido um deles), para compartilhar suas lembranças, suas belas histórias, dos tempos em que a cidade tinha uma aura poética e tão bela quanto os olhos azuis que encantaram o maior dos poetas santistas.
A eterna menina Edith faleceu às 10 horas do dia 17 de março de 2022, aos 102 anos de idade.