Espaço foi uma referência de glamour entre os anos 1950 e 1960
Porto de Santos, Verão de 1940. A jovem polonesa Lifcia Haleband, de 29 anos (nascida em Varsóvia em 22 de agosto de 1911), estava sozinha quando desembarcou no cais santista para, enfim, gozar da liberdade que tanto almejara na vida. Ainda que o futuro não lhe apontasse uma direção sólida, ela sorriu, mesmo não fazendo a menor ideia do que a aguardava naquela terra estranha. O sentimento da moça era de esperança e alívio. De origem judaica, Lifcia viveu por anos sob a égide de um casamento por conveniência, ao lado de um comerciante de joias, também judeu e muito mais velho do que ela. O matrimônio aconteceu para agradar os pais, fervorosos defensores das tradições religiosas de seu povo. Viveu em Paris que, mesmo sendo a terra do amor, não lhe trazia boas lembranças. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o avanço nazista sobre a França, o casal conseguiu exílio em Buenos Aires, onde Lifcia tinha parentes para abrigá-los. Na Argentina aproveitou para colocar em prática o seu “plano de liberdade”. A jovem desejava a separação para, enfim, viver o que sonhava, um sonho que parecia se moldar perfeitamente a um estilo de vida que alguns de seus amigos diziam ser possível realizar no Brasil, cujas notícias lia em revistas e jornais. E assim foi.
Após obter a passagem só de ida ao país vizinho, assim que chegou à cidade portuária paulista, Lifcia mudou seu nome para Elisa, e começou a trabalhar duro, primeiramente como vendedora de roupas e joias, praticando a habilidade comercial que herdara do ex-marido. Falando francês e espanhol fluentemente, não demorou a aprender o básico do português, bem como a ganhar muitos clientes e se envolver no meio da comunidade judaica santista, onde figuravam como destaque alguns empresários que empreendiam na zona boêmia do porto.
Nesta época, a chamada “Boca” era uma região onde imperava o glamour e a aventura, um espaço da cidade repleto de salões de danças, cabarés e casas noturnas, palco para grandes orquestras e nomes importantes do showbusiness. Durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939/1945), o espaço atingiu seu clímax, tendo como protagonistas sensuais dançarinas e graciosas garçonetes que encantavam a clientela em noites memoráveis.
Apesar de muitas judias polonesas optarem (até por falta de alternativa ou vontade) trabalhar em atividades ligadas ao prazer em condições subalternas (eram chamadas de “polacas”), Elisa batalhou para ter outro destino, como “chefe”, assim como já eram outras mulheres de origem judaica estabelecidas em Santos, como Laila, dona da Boate “Night and Day”, as judias russas Sarita e Cecília, donas do “Bataan Bar” ou a sua conterrânea, também polonesa, “Tia Sara”, que investia todo seu capital em casas noturnas de Santos e São Paulo.
E foi justamente Tia Sara quem deu o “empurrão” inicial para Elisa ingressar no universo da noite boêmia santista, tornando-a sua sócia no “Casablanca”, junto com outro sócio,o judeu alemão Max.
Quando já tinha pegado o tino dos negócios, Elisa acabou se enamorando de um jovem estudante de medicina argentino, Esteban Gerônimo Angel Prado, o Toto, que estava de passagem pelo porto de Santos. Ele foi ao Casablanca e se encantou com o jeito despojado da dona da casa noturna. Elisa, assim como outras mulheres judias europeias, nutria hábitos que eram malvistos pela sociedade católica brasileira. De personalidade forte, ela fumava em público, bebia uísque durante jogos de “pife-pafe” e se alimentava de pratos “pesados”, consumindo sem pudor miolos e fígado. O seu jeito despudorado muitas vezes fizera com que os clientes desavisados a tivessem como uma prostituta qualquer da casa. Muitas confusões foram formadas por conta disso.
Elisa casou-se com Toto e isso fez com que ela, ao lado do marido, desejasse voar mais alto.
O El Morocco
Em 1952, Elisa conseguiu comprar um terreno no final da rua General Câmara com o dinheiro que havia juntado em vários anos de trabalho. Ali, ela iniciou a construção da que se tornaria a boate mais luxuosa de todos os tempos da noite santista: a El Morocco. A obra levou um ano para ser concluída e quando terminou, revelou um espaço único, de encher os olhos.
A edificação foi projetada com dois andares, sendo que no térreo ficava a boate e no primeiro andar a moradia de Elisa e Toto que, à altura, já tinham uma pequena filha, Esther, então com um ano de idade.
Elisa não economizou na decoração do lugar, chegando a contratar dois artistas plásticos (que anos mais tarde ganharam renome internacional) para elaborarem a parte visual da boate: o uruguaio Carlos Paz Vilaró (pátinas) e o italiano Franco da Sermide Gavioli (painéis). As instalações do El Morocco se tornaram conhecidas internacionalmente, dado o luxo da boate que, afinal, teve o seu nome inspirado numa casa homônima de Manhattam (Nova Iorque) frequentada pelos ricos e famosos dos Estados Unidos entre os anos 30 e 50.
Toda a decoração de móveis, balcões, mesas e palco foram projetados pelo santista Felipe Moblize e executados por sua empresa, a Mobilarte. Outro destaque no rigor ao luxo da casa eram seus talheres, louças, copos e taças, tudo do mais fino que existia, de preferência importado. Os copos e taças eram de cristal contendo a logomarca do El Morocco e uma sereia rumbeira, tocando maracas, jateado no próprio vidro.
De olho dos pretensos caloteiros
No livro “Boca Bendita” (2019), escrito por Sergio Teles Fernandes Lopes, alguns casos curiosos do El Morocco foram narrados a partir de relatos de ex-clientes e da filha de Elisa, Esther. Em um desses, conta-se que uma turma de jovens de famílias tradicionais e abastadas da cidade, estudantes de Direito, beberam e comeram no local e tentaram “sair de fininho” sem pagar. Ocorre que antes de chegarem à porta de saída, lá estava a dona, Elisa, os barrando e ameaçando: “Conheço suas famílias!”. Foi o que bastou para voltarem e pagarem a conta. Elisa era conhecida na zona boêmia por segurar as rédeas de seu estabelecimento pessoalmente, ficando no caixa até o último cliente deixar a casa. Não facilitava em nada a vida dos funcionários.
Referência em espetáculos musicais e sensuais
Além da boa comida e bebida, o que mais atraia a clientela ao El Morocco eram os espetáculos musicais e, obviamente, as apresentações sensuais, protagonizadas por belíssimas strippers, como Cleyde Lee, e uma moça, cujo nome se perdeu no tempo, que se vestia de noiva e, ao som da orquestra, ia se desnudando ao sabor da música “Esmeralda” (Vestida de noiva, vestida de véu e grinalda, lá vai Esmeralda se casar na igreja).
A grande estrela da casa era Maria Tubal, artista exclusiva do El Morocco. Considerada a “Musa da Noite Santista”, ela costumava se apresentar vestida de espanhola, rodopiando as saias e batendo castanholas por todo o salão. Tubal pronunciava num espanhol perfeito, levando a plateia ao delírio. Além da boate, a artista também apresentava um programa musical na Rádio Atlântica de Santos, onde cantava e recebia convidados.
Outra figura carimbada da boate era o gaúcho Carlan, que quase todos reputavam ser argentino. Sujeito alto, sempre bem vestido, de smoking, gravata e muita brilhantina no cabelo, era o hostess da casa, responsável por apresentar as atrações do El Morocco para o público. Carlan costumava se maquiar, usando ruge e batom no melhor estilo dos metteur em scéne dos grandes cabarés parisienses. Carlan, quando chegou à boate santista, já estava em “final de carreira”, mas era respeitadíssimo no meio da noite boêmia. Foi cantor lírico nos anos 1930, atuando no Rio de Janeiro, e chegou a se apresentar no Cassino da Urca, onde trabalhou por muitos anos, aprendendo o ofício do backstage, tornando-se coreógrafo, cenógrafo, iluminador e figurinista. Era um verdadeiro coringa no showbusiness e praticamente se tornou o braço direito de Elisa na boate santista.
Trocando de marido e de sócio
Em 1957, Elisa e Toto se separam. Ela entra num processo de depressão por conta do ocorrido a ponto de decidir passar para a frente o El Morocco e abandonar a vida de empresária da noite. Mas, o inesperado aconteceu. Um dos pretensos compradores, Schapsa Roslawkier Gonker, judeu como ela, além de fechar negócio e comprar a casa, também cativou sua dona, tornando-se marido dela. Assim, no início de 1958, a boate é fechada provisoriamente para uma reforma geral, sendo reaberta antes da virada para 1959.
O El Morocco ficou ainda mais luxuoso e trazia atrações europeias, uma vez que o novo casal vivia viajando para o Velho Continente atrás de novidades. O ex-marido de Elisa, Toto, parte para São Paulo, onde passa a investir numa casa de espetáculos ligada ao samba e à bossa, o Sambalanço. A boate de Elisa, e agora de seu novo marido, ainda dominaria a cena noturna da “Boca” por mais uma década, até que a judia resolveu, de fato, encerrar sua trajetória na noite, beirando os 60 anos de idade.
A boate El Morocco seria arrendada para o espanhol Jesús de Castro Durán, que era sócio de outra casa famosa na “Boca”, o “Chave de Ouro”. O lugar mais fino da noite santista seria novamente fechado, para um período de reestruturação interna e renasceria com outro nome: Boate Flamingo. O novo cabaré, com instalações mais modernas, manteria todos os funcionários de Elisa, inclusive Carlan.
Elisa, enfim, saia de cena, mas deixaria seu nome registrado na história da boemia santista, como uma autêntica “dama da noite”. E o seu El Morocco nunca mais seria esquecido.
Fonte: Livro “Boca Bendita”, de Sergio Teles Fernandes Lopes.