Santos, sábado, 10 de março de 1928. Eram exatamente 5h05, de acordo com o despertador do português César Domingues, morador da residência de número 19 da Travessa da Santa Casa, uma pequena via sem sa��da localizada nas fraldas do Monte Serrat, justamente na parte posterior do velho hospital. Seguindo sua rotina diária de trabalho, Domingues, comerciante, 31 anos de idade, já estava em pé preparando-se para mais uma dura jornada de trabalho no pequeno bar que comandava nas proximidades da rua do Rosário (atual João Pessoa). Só faltava a ele colocar o outro pé do calçado e partir, mas não sem antes dar o costumeiro beijo na esposa, Philomena e em seus pequenos filhos, Antonio, de 7 anos, e Celestino, de 4. César procurava por seu outro sapato quando ouviu, de repente, quebrando o silêncio da madrugada, uma espécie de estalo, seguido de um barulho como o de uma explosão de minas. Em fração de segundos, som, luz e ar se extinguiram, ceifando dolorosamente a existência do confuso homem.
Eram quase 10 horas da manhã, quando o corpo de César Domingues foi encontrado, com um dos pés descalços e praticamente ao lado da esposa e dos filhos, todos mortos, próximo ao relógio paralizado exatamente no momento crucial da maior tragédia natural da história santista, o desbarrancamento do Monte Serrat de 1928.
Tragédia anunciada
A hecatombe do mais famoso dos morros da cidade de Santos, como fora alardeado na imprensa de todo o país e até de algumas outras nações, não fora um acidente totalmente inesperado. O desastre vinha sendo desenhado havia alguns anos, a partir da instalação de pequenas pedreiras, autorizadas pela Prefeitura, na face norte do Monte Serrat. Com o tempo, elas foram minando as encostas locais. Somada às chuvas torrenciais de final de Verão, a estrutura do solo chegou a um ponto insustentável. Três dias antes do trágico acontecimento, uma fenda de mais de um metro de largura surgira nas proximidades do prédio do Cassino, que estava, então, sendo construído no alto do morro. Após muita insistência, a Prefeitura enviou um engenheiro a fim de produzir um parecer sobre o caso. O laudo foi assinado no dia 9 como “sem risco”. No dia seguinte, a credibilidade do documento ruiu junto com toneladas de pedra e terra.
Os moradores da Travessa Santa Casa haviam sido avisados informalmente sobre a fenda e os riscos que ela representava, mas apenas um deles levou o assunto à sério e acabara se mudando na véspera do desbarrancamento. Os incrédulos, como o português Domingues, pagaram com a própria vida e de suas famílias por não terem dado ouvidos aos alertas.
População, assombrada, se mobiliza
De acordo com os especialistas da época, foram descolados cerca de 2 milhões de toneladas de pedra, terra e vegetação. O solo se mostrava bastante instável por conta do alto volume de chuvas que se precipitou sobre a cidade de Santos nos dias anteriores. A massa desprendida da montanha, assim, encontrava-se bastante “ensopada”, o que dificultou, e muito, o trabalho de remoção, executado por centenas de homens, vindos de todas as partes da cidade. Nunca se viu, em toda a história santista, tamanha comoção e desprendimento. Voluntários surgiam a cada minuto, para auxiliar os bombeiros e os mais de 850 homens designados pelas Docas, City, São Paulo Railway, Prefeitura, Comissão de Saneamento, entre outras entidades públicas e privadas de Santos e até da capital.
À frente do comando da cidade estava o vice-prefeito, Benedito Pinheiro (no lugar de José de Souza Dantas, que se licenciara em fevereiro). Tão logo foi informado da catástrofe, telegrafou ao presidente do Estado (cargo equivalente ao de governador), Júlio Prestes, que rapidamente desceu a Serra do Mar com seus comandados a fim de acompanhar pessoalmente as buscas por vidas e providenciar assistência aos sobreviventes.
Dramas de uma catástrofe
Somados à história de Domingues, outros dramas se revelavam a cada pessoa encontrada viva ou morta na incrível tragédia de Santos. Sobre os escombros das oito residências e das alas posteriores da Santa Casa (necrotério, laboratório, cozinha e quarto dos médicos de plantão), foram contabilizados 81 mortos (28 crianças, 19 mulheres e 34 homens) e apenas sete sobreviventes. Houve também o registro de oito moradores que se safaram por não estarem em suas casas no momento crucial da tragédia, como foi o caso do jovem Francisco Martins Pacco, de 21 anos, morador do “cortiço” nº 25 da Travessa Santa Casa. Na noite anterior ele havia brigado com a família e decidiu dormir em um hotel. Na manhã seguinte, descobriu ele que perdera todos os entes queridos. Já Francisco Ferreira, empregado no café e bar “A Maré”, escapou por ter saído mais cedo para o trabalho, antes mesmo do que César Domingues, que não teve a mesma “sorte”.
Os quadros mais chocantes, porém, se revelavam entre os encontrados sem vida que, sufocados, tiveram um fim terrível. Uma das cenas mais impactantes foi o resgate do corpo de uma mulher encontrada sentada e encurvada, como se estivesse protegendo outra pessoa. E não deu outra. Em seu colo, para constrição de todos, foi encontrada uma criança de tenra idade, ainda viva. Levada às pressas para assistência médica, ela não suportou os traumas e faleceu.
O trabalho de “desentulho” só fora concluído no dia 20 de março, com a disponibilização dos objetos pessoais dos mortos na tragédia, recolhidos por parentes próximos e sobreviventes. Ali, entre tantas lembranças das vidas interrompidas no sopé do Monte Serrat, estava o pequeno despertador de Domingues, congelado no segundo trágico que nunca saiu da memória dos santistas
Solidariedade
A tragédia de Santos provocou comoção em todo o mundo. O então presidente da República, Washington Luiz, recebeu durante dias telegramas de pesar e oferta de ajuda de várias nações. Donativos em dinheiro eram arrecadados por todo o país e destinados às vítimas da tragédia, assim como à Santa Casa.
Consequências
O desbarrancamento de 1928 mudou totalmente o protocolo de fiscalização das encostas. Na época chegou-se a cogitar a demolição total do Monte Serrat, o que acabou descartada pelos técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo. Mas, receando novos deslizamentos, a Irmandade da Misericórdia decidiu mudar o endereço do hospital para os lados do Jabaquara, o que só se consolidou nos anos 1940.