Santos, 10 de junho de 1984. Uma multidão lotava as cercanias da Igreja do Embaré, na orla da praia de Santos naquela bela manhã de domingo. O dia era de festa, júbilo pelo ressurgimento de um velho símbolo do cotidiano da cidade. Os santistas nutriam uma verdadeira paixão pelo bonde, tipo de transporte que começara puxado por resistentes burrinhos lá no distante ano de 1871, e que se tornara o principal responsável pela expansão da cidade a partir das últimas duas décadas do século XIX. Em 1909 ele havia se “tornado elétrico” e, cada vez mais, numa espécie de palco para milhares de histórias individuais, testemunho ocular de lutas, alegrias, aventuras infantis e amores à primeira vista. Não havia uma só pessoa na terra santista que não pudesse contar uma história de relação afetiva com os bondes. Mas a própria história do meio de transporte não teve um final do tipo “felizes para sempre”. O rompimento desta relação de parceria com a cidade aconteceu numa noite estranhamente fria de 28 de fevereiro de 1971. Nesta fatídica data o sobrevivente carro de prefixo 258, linha 42, apagou as luzes e desligou seu contato com a rede elétrica, anotando um ponto final naquele verdadeiro período mágico da cidade.
Entretanto, quem apostou que o sistema de bondes em Santos estava morto e enterrado, enganou-se redondamente. Em 1981, uma série de reportagens produzidas pelos jornalistas Áureo Rodrigues e Antônio Alberto Aguiar, de A Tribuna, reacendeu a chama da vontade pública pelo retorno do velho meio de transporte, ainda que fosse para uso turístico, uma vez que considera-lo como meio regular era algo intangível, dada a necessidade de reposição de muitos quilômetros de trilhos e redes aéreas de energia. Abarcado pela sugestão jornalística, o então prefeito Paulo Gomes Barbosa passou a considerar o resgate simbólico dos bondes como algo viável, ordenando que se fizessem estudos que chegassem a uma solução crível aos anseios santistas.
Depois de “garimpar” na garagem da Companhia Santista de Transportes Coletivos (CSTC), na Vila Mathias (onde hoje está a Companhia de Engenharia de Tráfego de Santos – CET), a equipe da Prefeitura escolheu a carcaça de um velho bonde sobrevivente do desmonte ocorrido nos anos 1970. Era um carro tipo “camarão” todo fechado, com bancos laterais e janelas de vidro, adquirido pela cidade em 1928 (o carril originalmente era aberto, mas fora reformado em 1969 e adaptado para o tipo fechado), quando o sistema era administrado pela “The City of Santos Improvments”, que na época o havia importado da Inglaterra.
Para bancar o sonho, era necessário, porém, dispender de cerca de dez milhões de cruzeiros (pouco mais de R$ 150 mil de hoje), incluindo o custo de mão-de-obra. Barbosa conseguiu logo juntar o dinheiro, assim como também correu atrás de parceiros para o custeio de algumas despesas extras. Obteve, por este meio, auxílio para o transporte do bonde, da garagem, na Vila Mathias, até o seu local de circulação, no Embaré, com a empresa de Transportes Mapin (que utilizou uma carreta de 30 toneladas para o serviço); a instalação da rede elétrica aérea com a Engenac; os uniformes dos motorneiros e cobradores com a Camisaria Cliper; além de elementos para a festa de inauguração, como refrigerantes Coca-Cola para distribuir à população, com a própria distribuidora oficial na cidade; camisetas promocionais e fogos de artificio, ambos bancados pelas Casas Bahia.
Festa na praia
Após meses de trabalho, no dia 10 de junho de 1984, lá estava a população em festa, regozijando a volta do bonde prefixo 46, linha 13 (linha histórica que circulava na orla). Milhares de pessoas, de todas as idades, participavam, animadas, de uma festa que há muito não se testemunhava na cidade. Para os mais velhos, bateu o saudosismo. Para a criançada, a curiosidade. O primeiro ato oficial do evento, antes da partida do carril, foi o descerramento da placa, pelas mãos do prefeito Barbosa e do diretor-presidente de A Tribuna, Giusfredo Santini. Logo depois, as autoridades presentes se dirigiram ao bonde para sua viagem inaugural, que aconteceu às 10h30. Naquele momento, os motorneiros Henrique Pedro dos Santos e Genésio Pedroso, com a presença simbólica do cobrador Silvio Alves de Oliveira, deram a partida no veículo e este, vagarosamente, começou sua jornada, ao lado das crianças e adultos que faziam um verdadeiro carnaval em seu entorno.
O bonde turístico do Embaré previa cobrança, mas naquele dia o passeio era gratuito, o que animou muito os presentes que foram até a praia assistir a festa. Entre as autoridades convidadas (prefeitos da região, representantes do Governo do Estado e da União), estava um dos maiores pesquisadores e escritores mundiais do tema “bonde”, Waldemar Correia Stiel.
Enquanto a banda do 6º Batalhão de Caçadores tocava animadamente várias músicas e alguns palhaços entretiam a garotada, o bonde turístico circulava firme, tendo à frente o prefeito Paulo Barbosa, que acenava ao povo, já em despedida de seu mandato, que encerraria em algumas semanas (31 de agosto). Enquanto isso, o motorneiro Genésio Pedroso, chapa 51 da CSTC, estava espremido entre os passageiros que lotavam o bonde. Mas, feliz da vida por ter tido a honra de conduzir o bonde que representou um grande resgate, ainda que numa curta extensão de 1.800 metros.
Entre os passageiros estava José Quintana de Campos, de 82 anos, possivelmente o mais velho passageiro do serviço de bondes de Santos. Ele trazia na mão um velho passe da Companhia City, permitindo a passagem grátis nos bondes que circulavam entre o centro de Santos, Ponta da Praia e São Vicente. Na ocasião ele diria à imprensa que cobria o evento: “No meu tempo eu peguei a extinção do transporte a burro. Começava o bonde motorizado. Mas os bondes puxados por burros eram gôndolas com uma dupla de animais. Os burros eram trocados a cada viagem completa. Uma trabalhava enquanto a outra descansava. A troca era na estação da Vila Matias, no José Menino, e na Boa Vista, em São Vicente”
Ao longo do caminho, as pessoas que testemunhavam a festa se recordavam de velhas histórias que envolviam os bondes santistas, incluindo alguns personagens do cotidiano, como um sujeito conhecido como “Cabral”, que pegava o bonde 10 em movimento e sem se segurar no balaústre, ou do motorneiro Luiz, o “62” como era conhecido no Marapé. Na praia também estava um senhor de nome Aníbal, que recordava o tempo de namoro na linha do bonde 19, passando pela praia fazendo o retorno para a gare, mas que circulava pela faixa externa do porto. Eram muitas histórias para lembrar. Muitas que conseguiam arrancar lágrimas dos mais saudosistas.
Vida efêmera
Barbosa deixava o governo para o sucessor Oswaldo Justo. Este, por sua vez, não fez questão de manter o sistema de bonde turístico na orla da praia, por considera-lo dispendioso. Em entrevistas, o prefeito alegava que a volta dos bondes como meio de transporte regular era algo sem sentido, não por conta das vantagens econômicas em relação ao consumo de combustíveis, mas pela necessidade de investir muito dinheiro na recomposição de trilhos e redes aéreas de eletricidade. Dizia ainda que, quando vereador, em 1971, foi um dos que mais contestou o fim do sistema, chegando a convocar o então superintendente do Serviço Municipal de Transportes Coletivos, general Aldévio Barbosa de Lemos, para depor na Câmara sobre a extinção das linhas. Justo dizia que na época o petróleo era barato, 2 dólares o barril, e o problema da poluição ainda não se mostrava tão grave. Por isso optaram por parar o sistema. No entanto, pouco mais de dez anos depois, com o aumento exponencial da poluição e o barril de petróleo a 30 dólares, os bondes fazem bastante falta na cidade.
Justo afirmava que na “verdade é que essa discussão não teria nem que ser levantada se os trilhos e os bondes não houvessem sido destruídos pelas administrações autoritárias que passaram por Santos”. Em 1984, Santos possuía um sistema de ônibus implantado e uma rede de trólebus de 57 quilômetros que podia ser ampliada, consolidando um tipo de transporte movido a energia elétrica e sem poluição, enquanto o complexo de bondes teria que ser reconstruído. Um bonde, em 1984, tinha a sua fabricação orçada em cerca Cr$ 70 a Cr$ 100 milhões (de R$ 1.166 a 1.666 milhão); a implantação de um quilômetro de linha custaria aproximadamente C$ 200 milhões (cerca de R$ 3 milhões). A reimplantação desse sistema de elétricos ficaria em mais de C$ 30 milhões à época (cerca de R$ 500 milhões), pensando-se em 100 quilômetros de linhas e 100 unidades rodando. Os custos inviabilizariam a iniciativa.
Mais uma vez, o fim
Assim, não sendo considerado uma prioridade para o governo municipal, o bonde do Embaré acabou ficando esquecido. E o tempo não deixou de ser cruel com o velho carril que, sem manutenção, passou a ser criticado pelos usuários por conta do estado precário em que ficou. Um ano depois de inaugurado, a imprensa alertava para a situação e muita gente passou a defender sua retirada. Em 4 de fevereiro de 1987, após agonizar nos trilhos da orla, o bonde 13 era removido para as oficinas da Vila Mathias, para nunca mais voltar. Três anos depois, o carro retornava à praia, mas na condição de posto de informação turística, instalado na Praça das Bandeiras, Gonzaga, onde está até hoje.