Verdadeira imagem de Anna Costa, resgatada em função de uma intensa pesquisa que levou mais de uma década para ser concluída. Fonte: Livro “Anna Costa, Mais do que Uma Avenida”(Fabiola Savioli e Alejandro Nascimento). Editora Comunnicar.

Imagem inédita de Anna Costa, agora revelada, reforça o resgate histórico da mulher que, entre tragédias e recomeços, teve seu nome eternizado em uma das principais avenidas de Santos.

Santos, 8 de maio de 1889. Naquela manhã de uma quarta-feira como qualquer outra, dona Anna Cândida de Azevedo Sodré Costa permanecia em casa, entregue aos afazeres do lar. Enquanto acompanhava a preparação do almoço, cujo refogado exalava um perfume que se espalhava pelos cômodos, os filhos corriam e riam no quintal, alheios às tensões e incertezas da vida adulta. Seus pensamentos voltavam-se para o marido, Mathias Casimiro Alberto da Costa, que saíra cedo de para inspecionar melhorias na recém-criada linha de bondes ligando a Vila Mathias à Barra — empreendimento que fora seu grande sonho, amadurecido por anos e finalmente transformado em realidade poucas semanas antes. O projeto de Mathias, entretanto, não se limitava aos bondes: ele também abrira caminho para a grande avenida que nascia da Vila em direção ao mar, já batizada, desde julho de 1888, como Boulevard Anna Costa. O dia parecia, enfim, seguir o curso habitual, até que um acontecimento brutal viria a romper para sempre aquela aparente normalidade.

A porta da frente da casa abriu-se de súbito, e um funcionário de seu marido surgia esbaforido, o semblante pálido, os olhos arregalados e a respiração cortada pela urgência. As palavras vieram cruas, sem rodeios, como lâmina certeira: Mathias fora atingido por um disparo de revólver. O choque desabou sobre Anna com violência. A colher que trazia nas mãos escapou de seus dedos e caiu no chão, ressoando pela casa como um presságio sombrio. O som seco ecoou até o quintal, fazendo cessar, de repente, as risadas das crianças, que pressentiram, sem compreender, a gravidade do que se passava. Anna tentou reagir, mas as pernas, antes firmes, negaram-lhe o impulso; por um instante ficou presa à incredulidade, como se a notícia fosse pesada demais para caber na realidade.

Um golpe fatal

Logo chegaram mais detalhes: a emboscada dos irmãos Olívio e Antônio Lima, o disparo à queima-roupa, a agonia que se arrastava desde o fim da manhã. Anna correu, então, até a casa de seu irmão, José Paulo de Azevedo Sodré, para onde Mathias fora levado. Encontrou-o cercado de amigos, entre eles o sócio João Éboli, médico que pouco podia fazer diante do ferimento cruel. O olhar do marido, turvo e já distante, ainda a procurou, num gesto de despedida silenciosa. Anna tomou-lhe a mão, consciente de que a vida que partilhara com ele estava prestes a se desfazer.

Uma Santos consternada

A cidade reagiu com estupefação. Pelas ruas, comentava-se a morte iminente do empreendedor que, aos 35 anos, havia conquistado respeito como homem enérgico e trabalhador. Vozes exaltadas pediam justiça, alguns falavam em vingança. Mas, para Anna, tudo se resumia ao vazio que começava a se instalar em seu lar. Rodeada por amigos e parentes, via os filhos pequenos chorarem sem entender a dimensão da tragédia, enquanto se esforçava em vão para contê-los com abraços que também pediam consolo.

Um carinho eterno

Pouco depois do funesto acontecimento, os santistas lembravam que a grande via em construção — concebida para abrigar a llinha de bondes que ligaria a Vila Mathias à praia da Barra, nas imediações do José Menino — havia sido batizada, desde julho de 1888, com o nome de “Boulevard Anna Costa”. Fora Mathias quem apresentara o projeto à Câmara Municipal, registrando na própria cidade a homenagem à esposa que agora ficava viúva tão cedo. Para Anna, essa lembrança acabou se tornando dolorosa. Afinal, o lugar que deveria simbolizar o triunfo do marido transformara-se em marca da perda irreparável. Por outro lado, era também testemunho de que o sonho de Mathias permaneceria vivo, marcado de forma indelével na memória santista.

Anna Cândida de Azevedo Sodré, com cerca de 16 anos de idade, em foto da família. Fonte: Livro “Anna Costa, Mais do que Uma Avenida”(Fabiola Savioli e Alejandro Nascimento). Editora Comunnicar.

Decepções e inconformismo

A perda brutal do marido já havia mergulhado Anna Costa em profunda dor, mas o que se seguiu mostrou-se ainda mais desolador. Os irmãos Olívio e Antônio Batista de Lima, presos em flagrante pelo assassinato de Mathias, foram levados a júri popular e, de maneira inexplicável, absolvidos por unanimidade. Inconformada com a injustiça, Anna decidiu permanecer em Santos apenas o tempo necessário para resolver as pendências do patrimônio do casal. Logo buscou refúgio em Maricá, na casa dos pais, onde procurou recomeçar a vida ao lado dos filhos ainda pequenos.

O retorno, contudo, não lhe trouxe a serenidade desejada. Além da preocupação constante com a criação das crianças sem a proteção paterna, Anna passou a enfrentar cobranças judiciais relacionadas à firma Mathias Costa & Santos e aos negócios de café do marido. Em meio a esse cenário, a venda da empresa de bondes ao Banco União de São Paulo, em 1890, e a intervenção do Conselheiro Mayrink ofereceram-lhe algum alívio financeiro. Pouco depois, Anna fixou-se no Rio de Janeiro, onde procurou reconstruir a vida com o apoio da família. Foi nesse período que decidiu unir-se em matrimônio a José Bloem, homem mais jovem, mas de confiança antiga: ele e seu pai, o comandante José Maria de Albuquerque Bloem, haviam sido amigos de Mathias, parceiros em negócios de café e no projeto inicial das linhas de bonde em Santos. O casamento revelou-se uma escolha acertada, pois José se mostrou companheiro leal e dedicado, dividindo com Anna as preocupações com os filhos e oferecendo-lhe o amparo necessário para enfrentar as adversidades.

Da união com José Bloem, Anna ainda teria a alegria de ver nascer, em 1894, a filha Heloysa, que mais tarde se tornaria uma das vozes líricas mais respeitadas do Rio de Janeiro. Mas o destino não deixaria de lhe impor novas perdas ao longo dos anos, até que, já no ocaso da vida, encontrou repouso definitivo em 27 de outubro de 1936, aos 81 anos, no Rio de Janeiro. Foi sepultada no Cemitério São João Batista, no mesmo jazigo onde também repousavam Mathias Costa e José Bloem, os dois companheiros de sua trajetória, marcando o fim de uma existência entrelaçada pela dor, pelo amor e pela perseverança.

Uma imagem resgatada

A história de Anna Cândida de Azevedo Sodré Costa (mais tarde Bloem) ganhou novos e definitivos contornos na semana passada, com o lançamento de um primoroso trabalho de pesquisa que resultou no livro “Anna Costa, Muito Além de uma Avenida” (Editora Comunnicar), de Fabiola Savioli e Alejandro Nascimento. Além das narrativas e traçados genealógicos — que já cumprem o papel de corrigir inverdades disseminadas em nossa região nas últimas décadas —, a obra oferece aos santistas um resgate de valor extraordinário: pela primeira vez, podemos contemplar os verdadeiros rostos de Mathias e Anna, nomes que batizam um bairro e uma das mais belas e emblemáticas avenidas da cidade. Para mim, como memorialista, é motivo de celebração, pois finalmente podemos afirmar: enfim, ela tem um rosto!

Nota:

Há pouco mais de oito anos, tive acesso a parte do material que hoje integra o livro “Anna Costa, Muito Além de uma Avenida”. Naquele momento, em 2017, tive também o privilégio de conhecer as imagens que agora ilustram este artigo. Assumi, então, o compromisso de somente escrever sobre elas após o lançamento oficial da obra, por respeito e ética jornalística. Cumpro hoje essa promessa: oito anos depois, com alegria, publico nesta coluna o título “Enfim, Ela Tem um Rosto”, oferecendo aos leitores a oportunidade de conhecer a imagem inédita de Anna Costa e de seu marido, Mathias, nomes que se tornaram símbolos da nossa cidade.

Mathias Casemiro Alberto da Costa, também revelado em fotografia pela primeira vez. Fonte: Livro “Anna Costa, Mais do que Uma Avenida”(Fabiola Savioli e Alejandro Nascimento). Editora Comunnicar.

 

Livro lançado em agosto de 2025