Espírito incansável de jovens jornaleiros moldavam o cotidiano de uma época e deixaram um legado eterno na memória da imprensa local.
Santos, 24 de novembro de 1907. No suave amanhecer daquele domingo, ainda imerso no terceiro ato da Primavera, Pedrinho despertava para mais um dia de labuta. O céu mal havia trocado o manto alaranjado da alvorada quando o menino, a passos ligeiros, cruzava as ruas do velho bairro Chinês, onde morava, na direção da Rua XV de Novembro. Seu destino era o depósito do jornal A Tribuna, escondido pelos lados da General Câmara, bem próximo às oficinas e redação do diário matutino. Ali, entre pilhas de exemplares recém-saídos das máquinas e o burburinho de outros garotos como ele, Pedrinho, trajado com roupas gastas mas carregando um ânimo reforçado pela necessidade de ganhar uns vinténs, preparava-se para a tarefa do dia: levar aos cidadãos santistas as notícias e histórias que moldavam o cotidiano da cidade. Na época, A Tribuna ainda era um jornal de apenas quatro páginas, mas que vinha recheado de miscelâneas e algumas notícias e artigos meticulosamente alinhavados, obra do legado de Olímpio Lima, um maranhense que adotara Santos como sua terra e que havia falecido pouco mais de um mês antes, em 4 de outubro daquele mesmo ano. Seu desaparecimento lançara um véu de desafio sobre a redação, o de manter vivo o espírito combativo do jornal. Então nas mãos do testamenteiro e leal amigo, José de Paiva Magalhães, A Tribuna buscava seguir sua jornada, dedicada a oferecer o melhor produto jornalístico da cidade.
Cada linha impressa era, de fato, moldada com esmero, destinada a atrair a atenção de comerciantes, negociantes e trabalhadores que faziam pulsar a praça cafeeira santista. Mas de nada adiantava tamanho afinco produtivo não fosse o empenho dos meninos entregadores, como Pedrinho, que, entre uma corrida e outra pelas calçadas, tornavam vivas as almas vibrantes daquele esforço coletivo.
Assim era o pulsante universo do jornalismo no início do século XX. E Santos, a exemplo de outros grandes centros urbanos brasileiros, contava com uma rica e variada oferta de veículos de imprensa. Nesse cenário competitivo, as ruas tornavam-se verdadeiros palcos de disputas acirradas entre os vendedores de jornais. Quase não havia esquina onde um ou dois meninos não estivessem posicionados, anunciando a plenos pulmões as manchetes e novidades do dia, suas vozes ecoando pelas calçadas em uma sinfonia urbana de notícias e expectativas.
“Um crime de alta traição na França! Ministro da Marinha é chantageado!”, bradava Pedro com entusiasmo, destacando o principal tema do artigo escrito pelo renomado jornalista Demétrio de Toledo, uma das mentes brilhantes de A Tribuna. “Não percam também as ‘Rabugices de Um Velho’ de hoje!”, convidava, num tom mais descontraído, os leitores a mergulharem em um dos textos mais profundos e prazerosos daquela edição, que, desta vez, abordava com maestria as nuances do caráter humano.
“Extra! Extra! Partido Municipal apresenta chapa para as primeiras eleições para prefeito de Santos!”, anunciava, agora com a voz ainda mais inflamada. Esta, sim, era a grande novidade do dia! O Partido Municipal acabara de divulgar o resultado de sua reunião, indicando o nome do ex-intendente Coronel Carlos Augusto de Vasconcellos Tavares para liderar sua chapa. Um marco que ficaria para a história: Vasconcellos Tavares seria eleito o primeiro prefeito de Santos, assumindo o comando da cidade em janeiro de 1908.
Posando para uma foto histórica
Pedrinho, incansável, vendeu mais de 160 edições ao longo da manhã. Perto da hora do almoço, com a comissão já garantida no bolso e o espírito leve, retornava para casa quando um burburinho vindo dos lados do Largo do Rosário chamou sua atenção. Uma aglomeração incomum de entregadores enchia o espaço, todos posando para ninguém menos que José Marques Pereira, o fotógrafo mais célebre de Santos naquela época.
Pereira, sempre atento ao cotidiano, organizava a cena com destreza. Recolhera algumas edições antigas da revista O Malho, onde havia trabalhado como colaborador fotográfico, e as usava para compor o cenário. Mais de 30 jovens jornaleiros, orgulhosos de seu ofício, reuniam-se diante da câmera, animados com a ideia de verem seus rostos eternizados nas lentes do mestre que transformava seu trabalho em cartões postais icônicos. E lá ficou Pedrinho, tímido mas determinado, posicionando-se na última fileira, em pé, com um sorriso discreto. Sem saber, deixava ali sua marca para a posteridade, pois, de fato, a imagem capturada por Marques Pereira tornou-se um postal, parte de suas famosas séries que eternizavam o cotidiano santista e a alma vibrante da cidade.
Mudança de rumo
Os entregadores de jornais permaneceram como figuras essenciais por mais alguns anos, até que as primeiras “bancas” começaram a despontar no cenário urbano. Feitas inicialmente de caixotes de madeira, esses espaços logo conquistaram a preferência dos santistas, transformando a dinâmica da venda de jornais e revistas. Com o tempo, evoluíram em estética e ampliaram suas ofertas, tornando-se verdadeiros centros de distribuição de informação e entretenimento.
A presença das bancas acabou relegando os jornaleiros de rua ao passado, mas sem deixar sua função desaparecer por completo. Pelo contrário, o entregador adaptou-se às novas necessidades, ganhando um papel focado exclusivamente na entrega domiciliar, levando as edições diretamente aos assinantes. Assim, ainda que invisível para muitos, sua missão continuou vital para conectar o público às notícias do dia.
O Tribuneiro
A figura do entregador de jornais, tão importante para a história da imprensa, é reverenciada até hoje por A Tribuna, que adotou sua imagem como um símbolo da eficiência e da dedicação do jornal ao longo de sua trajetória. Em 1939, por ocasião do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade, A Tribuna celebrou esse legado de maneira especial: mandou fazer uma estátua de bronze em homenagem aos meninos entregadores que, como o jovem Pedro, desempenharam um papel fundamental na construção dos 130 anos de história do órgão. Essa homenagem permanece como um marco de gratidão a esses pequenos gigantes da comunicação.
Durante exposição do 1º Centenário de Santos, A Tribuna expôs pela primeira vez a estátua de bronze que mandou fazer em homenagem aos vendedores de jornais