Cidade de Santos chama a atenção do país por usar o preceito da cadeia alimentar para eliminar a infestação de roedores da orla da praia. Operação Tom & Jerry, ao final, é bem-sucedida, mas gera efeito colateral.
Tudo começou em 27 de novembro de 1986. O então prefeito de Santos, Oswaldo Justo, havia recebido uma denúncia de que funcionários da Prodesan (na época a empresa responsável pela coleta de lixo e limpeza urbana da cidade) estariam enterrando ratos na areia da praia, na frente até mesmo de banhistas. A presença de roedores era constante nos jardins da orla e cercanias, e incomodava muito a população. Os animais eram atraídos pelos restos de comida fácil, provenientes dos trailers de lanches que ficavam espalhados ao longo da avenida da praia. “Se eu pegar ou souber que algum funcionário da Prodesan está enterrando ratos na praia, eu enterro ele junto”, desabafou o prefeito diante da denúncia. Justo dizia não acreditar que um ato daquela natureza estivesse acontecendo, até porque a orientação era o encaminhamento dos animais mortos para o lixão da Alemoa, onde deveriam ser descartados.
Cobrado sobre a necessidade de criar uma ação eficaz para eliminar de vez o problema, o prefeito alegou que não concordava com a prática no uso de venenos químicos (raticidas), já que eles prejudicavam a flora e acabavam vitimando outros animais que tinham os jardins da orla como habitat natural ou de passagem. Até mesmo os cães que passeavam com seus donos pelo local estariam arriscados a sofrer as consequências em função da aplicação de venenos. “Como defensor da ecologia não aceito esta prática, mesmo porque o veneno, além de matar os roedores, acaba atingindo passarinhos. Sou a favor do equilíbrio ecológico e, portanto, do uso de gatos para matar os ratos”.
Todos ficaram surpresos com a proposta inusitada do prefeito, que alegou ter inspirado-se na história de uma senhora de 76 anos, moradora do Canal 2, que costumava levar seus seis gatos para passear na orla, onde eles praticavam “caça aos ratos”.
Três dias depois (30/11), o jornal A Tribuna, em sua Coluna Dia a Dia, questionava o plano do prefeito e ainda provocava. “Se for mesmo séria a ideia do prefeito Osvaldo Justo de espalhar gatos pelos jardins da praia, para acabar com os ratos ali existentes, em breve não haverá lugar para os moradores de Santos passearem nos jardins da orla. Os gatos, como se sabe, costumam demarcar os seus territórios.” E continua: “Mas não é só isso: Quando os gatos começarem a incomodar, qual será a providência? Espalhar cães ferozes? Quem sabe, dobermanns, filas e buldogues se tornarão senhores dos jardins”.
Após testes, operação Tom & Jerry é acionada
Depois de ter se pronunciado a respeito do caso dos ratos, o prefeito decidiu colocar sua estratégica em prática, mas de maneira cadenciada. Começou, de início, de maneira bastante tímida, justamente em um dos trechos críticos, entre os canais 1 e 2. A discussão sobre da presença cada vez mais constante dos roedores ganhou tanta força na cidade, que o prefeito decidiu ir à guerra e juntar sua tropa de felinos em maio de 1988. A decisão para o sinal verde aconteceu durante uma das famosas “reuniões da madrugada”. Na ocasião, o chefe do executivo santista ordenou o início de uma operação que muitos chamavam de “Tom & Jerry”, numa alusão ao clássico desenho de “Hanna Barbera”, que a criançada curtia na TV.
“Espalhem gatos pelos jardins de toda a praia”, foi a ordem de Justo aos seus secretários. Apesar de conhecerem bem as crenças do chefe, muitos ficaram surpresos com sua determinação. Justo tinha o argumento na ponta da língua: “A natureza é uma roda dentada, que gira encaixada. Quando um dos dentes falta, os problemas começam a surgir. No caso dos jardins da praia houve, de fato, uma quebra no equilíbrio ecológico e, por isso, os ratos vêm se proliferando com tanta rapidez. Vamos, então, colocar gatos para acabar com eles. Afinal, o predador do rato é o gato!”.
O prefeito garantiu que a medida foi colocada em prática no trecho da praia do José Menino, com êxito. “Os gatos sobreviveram e os ratos sumiram”. Prosseguindo com a exposição da ideia, o prefeito explicou que a providência tinha como objetivo principal evitar a colocação de iscas envenenadas nos jardins. No entender de Justo, os problemas dos ratos seriam solucionados com a colocação de cinco a seis gatos em cada trecho compreendido entre dois canais.
Cabo de guerra com o secretário de Higiene e Saúde
Um obstáculo importante na frente do prefeito era seu próprio secretário de Higiene e Saúde, Paulo Ricardo de Assis. Ele não acreditava na eficácia total da operação felina e continuava a comandar um processo de desratização a base de iscas com raticida Warfarin. Ele informava que na orla havia centenas de ratos, alguns com mais de um quilo, que dificilmente seriam digeridos pelos gatos do seu chefe. “Se o número de ratos mortos encontrados for pequeno, saberemos que, por alguma razão, haverá a necessidade de um controle auxiliar com raticida. Desta forma, não haverá qualquer risco para a saúde da população, já que o desempenho dos gatos será constantemente avaliado”.
Mas Paulo Assis, de certa forma, elogiava a ideia da operação “Tom & Jerry” que, se fosse realmente eficaz, poderia proporcionar mais qualidade no ambiente do jardim, uma vez que não haveria a necessidade de infestar o espaço com tantas iscas.
Assunto nacional
A ideia de utilizar gatos para combater os ratos da orla santista ganhou as páginas de jornais e revistas pelo país. A Tribuna publicava, em sua edição de 9 de maio de 1988, um editorial elogiando a estratégia de marketing do prefeito: “Enquanto a Embratur gasta dinheiro veiculando comerciais nos horários nobres das estações de televisão, para afirmar que o Rio de Janeiro é lindo e precisa ser visitado, o prefeito Justo, num golpe de mestre, projeta a cidade sem qualquer ônus e, o que é melhor, conferindo um cunho infinitamente maior de credibilidade à mensagem”.
A cronista Lydia Federici também abordou o assunto da operação “Tom & Jerry” em sua famosa coluna “Gente e Coisas da Cidade”, questionando sobre quem alimentaria os “gatos policiais dos jardins de nossas praias”: “A população cuidará dessa parte. Sim. Não há pessoas que levam comida para os pombos? Haverá outras que levarão uma sardinha para os gatos. Ou um naquinho de carne. Ou um prato de arroz com qualquer coisa que tiver sobrado do seu almoço ou janta. E se isso, um dia, faltar, caberá ao poder público providenciar-lhes os meios de sobrevivência, não?”
Gatos dominam e população apoia
Com o passar das semanas, a estratégia parecia estar dando muito resultado positivo. Vários trechos da praia, enfim, não registravam mais a presença de ratos, o que foi entusiasticamente comemorado pelos moradores, especialmente os da orla da praia. Além disso, muitos idosos passaram a interagir com os felinos caçadores e a adotá-los informalmente, fornecendo comida e bebida aos bichanos.
Foi o caso de Maria Aparecida Costa, de 78 anos (em 1988), moradora da rua Rio Grande do Norte. Pensionista do INPS, recebendo Cz$ 3.800,00 (Cruzados – equivalente a R$ 422,00, nos dias de hoje), ela gastava boa parte do seu ganho em alimentos para os gatos da orla. Ela ficou tão conhecida no local, que até recebeu permissão da Prefeitura para circular pelo gramado enquanto auxilia os felinos.
Mas boa parte das pessoas começava a se preocupar com o futuro, e com a proliferação dos gatos. Além da procriação pelos que lá estavam, o anúncio da estratégia do prefeito estimulou muita gente a jogar seus gatos na orla da praia. Em pouco tempo, as manchetes dos jornais davam conta de que a praia de Santos já tinha dono: os gatos!
O prefeito, contudo, não era muito favorável à ideia da população alimentar os gatos. “Eles são fortes e acostumados à vida ao ar livre. A população não precisa se preocupar com o destino dos bichos, levando-lhes alimento ou protegendo-os da chuva. Caso eles recebam comida em excesso, acabarão deixando de caçar os ratos que, na realidade, deve ser o seu prato principal”.
Gatos com coleira, a serviço da Prefeitura
Em junho de 1988, o vereador Reynaldo Cammarosano encaminhou uma indicação ao prefeito Justo, no qual justificou a necessidade de serem colocadas coleiras de identificação em todos os “gatos que estão colaborando com o extermínio de ratos na orla da praia, a serviço da Prefeitura”. Com a iniciativa, o vereador acreditava que, com a identificação, os animais não seriam alvo de maus-tratos por parte de “pessoas maldosas”. Para Cammarosano, “apenas os gatos sem coleira, que não trabalham para a Prefeitura, permaneceriam expostos aos maus tratos”.
A indicação do vereador foi duramente criticada na cidade, uma vez que foi encarada como uma brincadeira de mau gosto, por comparar os gatos com servidores públicos. Para a coluna Semana 8, do jornal A Tribuna, “a proposta do vereador seria bem aceita na Câmara de Sucupira, cidade imaginada pelo gênio de Dias Gomes para o exercício da crítica, revelando o gênero absurdo que é cultivado por grande parcela da classe política”.
Sociedade Protetora dos Animais entra no jogo
A polêmica sobre o uso dos gatos como meio para exterminar ratos chegou até a Sociedade Protetora dos Animais de Santos e São Vicente. Porém, ao contrário do que muitos acreditavam, a entidade ficou do lado do prefeito Justo, pois a medida “está evitando a morte desnecessária de dezenas de pássaros, que inadvertidamente se alimentavam das iscas anteriormente colocadas nos jardins, que tinham como alvo os ratos”. A Sociedade ainda alegava que “os gatos, por mecanismos fisiológicos próprios, têm resistência às doenças transmitidas pelos ratos e não estão sujeitos por parte desses à contaminação de qualquer espécie”. Para equacionar a questão da proliferação dos gatos, a entidade sugeriu efetuar a castração dos animais.
Não aos gatos gordos!
Em plena operação, o prefeito foi à público criticar os moradores que insistiam em alimentar os gatos com toda sorte de alimentos, fazendo com que eles perdessem não só o interesse em caçar os ratos, mas também a própria mobilidade, pois estavam engordando demais. Para evitar o agravamento do problema, Justo determinou à Guarda Municipal que ficasse atenta às ações por parte das pessoas na tentativa de comer o que não deviam. A Prefeitura soltou uma nota alegando que promovia a alimentação dos gatos de forma balanceada.
Abrigo para os gatos
Em outubro de 1988, um tradicional corretor de café da cidade, José Carlos Vieira da Cunha, confessadamente apaixonado por gatos, sugeriu ao prefeito que ele construísse abrigos para os felinos na orla da praia. Cunha justificou que aquele tipo de animal era muito sensível às intempéries do tempo e, assim, poderia ficar doente com certa facilidade. Para ele, os abrigos poderiam ser instalados junto às folhagens dos jardins. Uma outra sugestão era sobre a comida dos gatos policiais. “Eles devem ser alimentados com pescoço de frango. Não é saudável que eles se alimentem apenas dos ratos caçados, uma vez que eles podem já estarem envenenados. Os gatos devem matar os roedores, e não comê-los”.
Para o corretor, Justo não deveria censurar a população que está colaborando com a alimentação dos gatos da orla. “Eles caçam os ratos mesmo estando bem alimentados”.
Atendendo aos pedidos, um mês depois o prefeito mandou instalar as casinhas para os gatos vigilantes. Foram colocados ao todo seis abrigos, feitos de madeira pintada com as cores da Prefeitura (azul e vermelho) e com o logotipo PMS. A entrega do primeiro abrigo de gastos foi feita pelo prefeito em pessoa, nos jardins do canal 2. As casinhas, na verdade, eram singelas caixas de madeira com 40 centímetros de largura, 60 de comprimento e 20 de altura. Todas foram dispostas entre os arbustos, de modo a não ofender a paisagem e também para manter um ambiente mais natural aos próprios felinos. Os abrigos foram construídos pela Secretaria de Obras e Serviços Públicos.
Gatos são demitidos e caçados
Após a saída de Justo do comando da Prefeitura, que a partir de 1989 passou para as mãos da prefeita Telma de Souza, os gatos acabaram ficando órfãos de seu protetor. A nova administração entendeu que a operação “Tom & Jerry” fora um erro e que acabara provocando um efeito colateral. O novo comando da Secretaria de Higiene e Saúde, imputou culpa aos bichanos policiais pelo “surto de bicho geográfico” registrado nas praias de Santos na época. Com isso, os felinos passaram a ser caçados pelos funcionários do setor de apreensão de animais e levados para o Canil Municipal, na Zona Noroeste. Muitos munícipes acusaram a nova administração de matar os gatos apreendidos. A Associação de Proteção aos Animais interferiu na questão e pediu que os gatos fossem, então, enviados ao Horto Municipal, onde ficariam instalados em abrigos especialmente construídos para eles. A entidade assumiu o compromisso com os custos de alimentação e a preparação dos animais para adoção.
O fim da história
A Secretaria de Higiene e Saúde de Santos continuou por meses sua campanha de alerta ao surto de “Bicho Geográfico”, imputando a maior parte da culpa aos gatos. De heróis a vilões, os gatos policiais da orla santista, enfim, deixaram sua marca na história da cidade, cumprindo exemplarmente seu papel natural, pois o numero de ratos despencou pra valer, provando a sapiência da natureza.