Reconhecido no país como o “Rei do Contrabando” , Antônio Pinto dos Reis, o “Flora”, agia com naturalidade, dominando leilões alfandegários do maior porto brasileiro
Santos, anos 1950. O maior porto da América Latina é um caldeirão fervilhante de tensão. O ritmo de entrada e saída de navios é intenso, tanto quanto o de cargas que chegam por terra por meio dos vagões que transitam pelos trilhos da Sorocabana e da Santos-Jundiaí, assim como pelos inúmeros caminhões que adentram à cidade santista pela Via Anchieta.
A vigilância promovida pela Alfândega e Polícia Marítima também é frenética e rígida. O combate ao crime organizado é incessante, especialmente na caça aos contrabandistas, que espertamente burlam as leis para vender seus produtos sem pagar a parte do governo. A atividade causava muitos prejuízos ao país, mas era bem vista por parte substancial da sociedade, que se aproveitava a ação arriscada destes tipos de bandidos para adquirir produtos importados a custo baixo. A imprensa classificava o contrabando como um “crime fascinante”, por conta do sabor de aventura e riscos que oferecia aos seus praticantes.
Um dos maiores contrabandistas do país, talvez o maior, tinha sua base de atividades em Santos. Considerado um homem de inteligência privilegiada, o “empresário” Antônio Pinto dos Reis, conhecido pela alcunha “Flora”, era dono de uma biografia curiosa. Nascido em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, veio muito jovem a Santos, chegando a trabalhar como carcereiro da Cadeia Pública da cidade, onde conheceu muita gente de caráter “desviado”. É muito provável que ali tenha aprendido muito do ofício que viria a nortear sua vida.
Por lealdade, acabou preso
A gênese de sua trajetória começou quando da ocorrência de um caso de furto no porto. Os suspeitos foram detidos na época e houve espancamento na prisão onde Antônio trabalhava. O delegado, dr. Armando Ferreira da Rocha, foi acusado de ter mandado torturar um dos indiciados, fato este que vazou na imprensa. Em razão da situação delicada, Rocha corria o risco de ser processado e exonerado. O carcereiro, que era seu amigo, assumiu a culpa sozinho e, por isso, passou quatro anos e meio atrás das grades e perdeu o emprego
Recuperando a liberdade, Antônio pegou suas economias e abriu uma floricultura – a Casa “Flora” – que ia lhe dar o nome como ficou conhecido no Brasil inteiro. O novo empreendedor da cidade, com o passar do tempo, começou a ganhar dinheiro. Porém, ao contrário do que supunha, não eram com suas flores e plantas exóticas. O ex-carcereiro, conhecedor da sistemática da malandragem, não precisou de muito tempo para iniciar seus negócios na faixa do cais. No início, porém, eram modestos, com um contrabandozinho aqui, outro ali. Aos poucos foi se acostumando com a vida errante.
Em alguns pares de anos, fazendo uso de sua privilegiada inteligência, coragem e sangue frio, o futuro “Rei do Contrabando”, como viria a ser chamado no início dos anos 1950, já espalhava seus “tentáculos” pelos cabarés da cidade, porões dos navios, pela faixa de cais e pelos lugares mais escusos. Com o dinheiro amealhado desonestamente, abriu novos estabelecimentos comerciais, corrompeu funcionários e chegou a “deitar raízes” até as altas esferas, nos salões de luxo, nos tribunais e até nos palácios governamentais. Flora, de fato, exercia sua majestade.
Sua fortuna passou a chamar a atenção de muita gente. A determinado momento, sobre ele tudo já havia sido falado, mas ninguém, absolutamente ninguém, conseguia provar nada. Sua fama se espalhara do Amazonas ao Rio de Janeiro e contavam histórias sobre ele que se tornaram lendas. Homem alto, Flora carregava com certo despacho os seus cento e vinte e um quilos de gordura. A calvície ampla fez com que sua testa encontrasse com a nuca, encompridando o rosto largo e calmo. Os olhos eram vivos e desconfiados. Era definitivamente um sujeito desprovido de vaidade. Quando se tornou personagem de uma ampla reportagem produzida pela revista “O Cruzeiro”, em dezembro de 1952, contava então com sessenta anos de idade. E não se importava de mostrar-se como um homem de hábitos simples.
Deixou propositalmente passar a ideia de que era um homem convicto de suas crenças e persistente. Diziam que quando queria uma coisa, nada o demovia. Era teimoso tal qual uma mula. Fazia amigos facilmente, ofício fundamental para sua atividade, e era conhecido por sua fidelidade canina para com aqueles que tinha laços estreitos. Na cidade, diziam que era um sujeito que gostava de ajudar os mais necessitados, talvez um disfarce importante para evitar uma opinião pública contrária.
A revista estampava em suas manchetes: “Flora, o Rei do Contrabando”. Com seu Q.G. (Quartel General) em Santos, está surpreendentemente rico. O contrabando em alto mar seria o seu segredo e mantinha um “círculo de ferro” sobre os leilões da Alfândega. Suas especialidades eram o nylon e os cigarros norte-americanos. “O Cruzeiro” pintava-o como o anti-heroi, perseguido pela polícia marítima e amado pelo povo, que comprava seus produtos a preços justos. Diziam que era o maior contribuinte do fisco na cidade santista.
Sua principal loja, situada na Rua Itororó, 114, vendia o “contrabando” que ninguém podia provar. Flora alegava tranquilamente que seus produtos eram tão legalizados quanto os mais honestos e os que os livros de registro de sua empresa podiam provar tal condição. “Provem que sou contrabandista, se puderem!”, dizia a todos os que o acusavam. A origem da maior parte de seus produtos, justificava, era dos leilões oficiais da Alfândega. “Sou o maior arrematador dos leilões. Compro tudo o que aparece. E depois, é lógico, vendo a mercadoria comprada, pagando todos os impostos”, dizia, exibindo, orgulhoso, a maior guia de impostos jamais vista na Alfândega, de Cr$ 1.254.294,50 (equivalente hoje a R$ 6,2 milhões).
Nos leilões da Alfândega, ninguém arrematava coisa alguma sem o consentimento de Flora. Qualquer que fosse a mercadoria, havia de pedir antecipadamente licença ao “Big Boss” da cidade, que estabeleceu uma espécie de monopólio, rígido, de ferro, sobre esta atividade. Ele não tinha concorrentes à altura da sua ousadia e poder. No início dos anos 1950, um ex-sargento do Exército, apelidado Jamacaru, havia começado um negócio parecido para os lados da Ponta da Praia e começava a enriquecer. Flora logo mandou cortar as “asinhas” do rival.
Os acusadores diziam que Flora era um verdadeiro espertalhão. A compra de mercadorias via leilão apenas mascarava sua atividade. Quando ele arrematava vinte mil maços de cigarros norte-americanos apreendidos, por exemplo, ele já tinha outros cinquenta mil guardados para a venda. Quem conseguiria provar que os maços vendidos em determinado ponto eram ou não eram do lote do leilão? Assim ele também fazia com os artigos de nylon, com peles, perfumes, bugigangas do Oriente, etc. E como se fazia o contrabando de Flora? Pelo alto mar. Eu controle era tão grande que já se estendia às tripulações dos navios estrangeiros que comumente aportavam em Santos.
O contrabando era previamente combinado, com as mercadorias encomendadas com bastante antecedência. Ele fornecia aos marujos todo o dinheiro para a aquisição do material não legalizado e dizem que jamais foi enganado. Flora sabia exatamente o dia e o horário da chegada dos navios ao porto santista, bem como o roteiro de cada um. No momento certo, ele mandava suas embarcações para locais previamente estabelecidos, bem longe da costa. As mercadorias eram jogadas no mar, em sacos de borracha para serem recolhidas pelos homens de Flora. Era um esquema infalível.
A Casa da Rua Itororó
Quem olhasse o comércio de Flora na rua Itororó, jamais poderia supor que tal empreendimento desse tanto dinheiro. O lugar consistia numa casa de duas portas e dois compartimentos, onde se misturavam perfumes franceses, deuses budistas, estatuetas de marfim da China, produtos japoneses, casacos de pele, cigarros norte-americanos, artigos italianos, relógios alemães, papagaios, canários e outros bichos.
Flora, à época da reportagem também era dono da principal casa de lonas de Santos, bem como tinha sociedade com muitos açougues da cidade
Dizem que Flora também foi um dos primeiros traficantes de cocaína de Santos.
Em julho de 1960, Flora foi pego em flagrante de contrabando e acabou preso por dois delegados de polícia da cidade, condenado à pena de um ano e seis meses. Entre as acusações, estava a de falsificar documentos alfandegários. Naquele mesmo ano, em 7 de outubro, a imprensa nacional noticiava a morte de Antônio Pinto dos Reis, aos 68 anos de idade, vítima de uma doença que o consumia havia bastante tempo. Entre as reportagens que deram conta do fato, destacamos a publicada pelo jornal Correio Braziliense, que assim noticiou: “Depois de ludibriar a polícia por mais de trinta anos, “Flora”, o Rei do Contrabando, foi abatido na madrugada de hoje. Morreu não sob as balas dos agentes da lei, dos fiscais alfandegários. Antônio Pinto dos Reis, o “Flora”, como era conhecido, morreu vítima da moléstia de que vinha padecendo há alguns anos, corroendo-lhe os pulmões. O último capítulo da vida tumultuada do “rei” desenrolou-se em um hospital sanatório, para onde foi removido da Cadeia Pública de Santos, onde se encontrava detido. Fora nessa mesma cadeia onde teve seu primeiro emprego na cidade e onde pela primeira vez foi encarcerado, cumprindo uma pena de quatro anos e meio, dela saindo para iniciar a vida de crimes que fariam dele uma espécie de “Al Capone” da cidade de Santos.