Faquir amazonense treina em Santos para conquistar recorde mundial de permanência em bicicleta

Vicente Bezerra, o Lookan, tentou permanecer 105 horas em cima de uma bicicleta, dando intermináveis voltas na Praça José Bonifácio, para delírio dos santistas.

Santos, terça-feira, 4 de novembro de 1958. Centenas de pessoas se aglomeravam no entorno na Praça José Bonifácio para assistirem uma exibição inusitada. Vicente Bezerra, conhecido nacionalmente como o “Faquir Lookan”, natural do Amazonas, estava na cidade portuária e praiana disposto a mostrar que reunia condições físicas e mentais para bater o recorde mundial de permanência sobre bicicleta (pedalando), que na época era de 114 horas (feito alcançado pelo colombiano Célimo Montes Zuloaga). O excêntrico homem era conhecido no país por suas demonstrações de “jejum” (ele detinha o recorde brasileiro, com a marca de 134 dias sem comer, dentro de uma urna de vidro, numa cama de pregos e rodeado de seis serpentes), exibindo-se ao lado da companheira, Yone, também uma performancer da mesma linha (ela era também recordista brasileira de jejum, e chegou a ficar 79 dias sem comer). Isso sem falar de outras demonstrações “malucas”, como ser crucificado ou enterrado vivo e permanecer debaixo da terra por horas.

Eram 14h15 quando foi dada a largada, sob os aplausos da enorme assistência popular. Lookan tinha como meta pedalar por 105 horas, dando voltas na Praça José Bonifácio, um preâmbulo para a prova que faria na capital bandeirante no mês seguinte, esta sim com a meta de ultrapassar o recorde do colombiano. Em Santos, o faquir teve o apoio das autoridades locais, principalmente dos esportistas, como Hilário Diegues, então presidente da Liga Santista de Ciclismo.

O ritmo das pedaladas era cadenciado, tranquilo, uma técnica que visava provocar o menor esforço, em função do objetivo da prova, de longa duração. Vicente mantinha na equipe de apoio um médico, dr. Caetano Virgilio Netto, que já o acompanhava nas provas de jejum e conhecia como ninguém a capacidade de resistência do amazonense.

À medida que as horas passavam, o povo ia se revezando na plateia. Muitos certamente se perguntavam: Quem, em sã consciência, teria a ideia maluca de querer passar dias e dias em cima de uma bicicleta, sem comer, dormir ou ir ao banheiro? Isso, realmente, era coisa de gente que não batia bem!

IDEIA DE LOOKAN

Vicente Bezerra ganhava seu suado dinheirinho em um velho circo, onde começou sua trajetória como faquir (indivíduo que se submete a suplícios e jejuns para dar provas de resistência diante dores físicas e privações). Certa feita deixou o picadeiro e partiu para as ruas das grandes cidades, exibindo-se em caixões de vidro, onde ficava deitado por dias em jejum total. Ganhava aquilo o que as pessoas achavam por bem dar-lhe. Em 1958, ao tomar conhecimento das provas de resistência sobre bicicletas, cujas notícias rodavam o mundo estampando páginas de jornais e revistas, Lookan decidiu participar da “brincadeira”. Afinal, era mais uma forma de chamar a atenção do público e potencializar o ganha-pão de sempre. Ele e sua companheira, Yone, também egressa da vida circense, poderiam receber boas quantias de dinheiro das pessoas que testemunhariam seus feitos.

Lookan e sua esposa, Yone, cumprimentam o presidente da Liga Santista de Ciclismo, Hilário Diegues.

Nos primeiros dias de setembro de 1958, Lookan, já decidido a enfrentar a prova ciclística, pediu apoio à Prefeitura da capital paulista, cujo prefeito era Adhemar de Barros, a fim de bater o recorde mundial, até então nas mãos do colombiano Zuolaga, que havia permanecido 114 horas em cima de uma bicicleta. Ele precisava da estrutura viária da prova e apoio logístico, além de alimentação e de equipe médica. Adhemar adorou a ideia e mandou prover o faquir de tudo quanto fosse necessário para o bom sucesso da prova. Mandou, inclusive, isolar o entorno da Praça da República, onde aconteceria a prova.

Com tudo definido, Lookan resolveu realizar alguns treinos antes. O primeiro foi na cidade interiorana de São João da Boa Vista, onde conseguiu alcançar a marca de 72 horas de pedaladas ininterruptas. A população local ficou abismada com o feito. O faquir ainda teve tempo de se apresentar de outra forma. Ele pediu aos assistentes que o enterrasse vivo, permanecendo 1h45 debaixo da terra! Foi ovacionado pelo povo são-joanense.

Alguns dias depois, Lookan foi para Itu, onde também conseguiu pedalar por 72 horas (que representava pouco mais da metade do recorde mundial). Vicente se sentiu bem na prova e reputou que poderia dar um passo a mais em sua linha de treinamento. E tal passo seria dado na cidade de Santos.

A proposta, bastante divulgada na imprensa paulista, era que o faquir subiria sua meta, de 72 para 105 horas. No dia 22 de outubro ele desceu a Serra do Mar e chegou à cidade de Braz Cubas, entusiasmado com a prova. Já era chamado por muitos o “artista do guidão”. A princípio, a ideia era correr no entorno da Praça da República, defronte à Alfândega. Porém, as condições da pavimentação locais não estavam tão boas e a prova foi transferida para a Praça José Bonifácio, da Catedral. As datas anunciadas eram de 28 a 31 de outubro, mas as fortes chuvas que caíram na cidade nestes dias fizeram com que fosse adiada para novembro.

A PROVA

Iniciada às 14h15 do dia 4, a prova de resistência atraiu milhares de curiosos, que se revezavam ao longo do dia e da noite na observação do inusitado desafio. As primeiras 24 horas pareceram coisa de criança para o faquir, que não demonstrou o menor sinal de cansaço. Quase a mesma situação se deu no dia 6 (48 horas depois). Lookan continuava suas pedaladas cadenciadas sem esmorecer. Todo o percurso era feito numa espécie de pista demarcada na própria calçada da praça, e não na via pública. Utilizando uma bicicleta Caloi, oferecida por um representante do fabricante da cidade, o desafiante parecia tranquilo no seu intento de chegar às 23 horas do dia 8 sem problemas maiores.

O faquir Lookan tentando superar suas marcas na prova de Santos.

Havia regras rígidas a serem observadas, sempre fiscalizadas por uma equipe local, no caso de Santos, a Liga Santista de Ciclismo. O desafiante poderia fazer suas refeições ou consumir líquidos apenas na bicicleta, com ela em movimento ou não (ele não poderia descer do veículo). A mesma regra valia para as necessidades fisiológicas. Lookan fazia uso de equipamentos especialmente criados para coletá-las naquelas circunstâncias. Como ele era um faquir experiente, seu organismo funcionava bem com uma ingestão baixa de alimentos e líquidos. Isso fazia com que, consequentemente, não produzisse dejetos. A regra mais rígida era a proibição para dormir. A prova deveria ser feita de forma ininterrupta.

FRUSTRAÇÃO

Tudo corria bem até que chegou o dia 7, o terceiro da prova de quatro dias e nove horas. Passava das 10h30 da manhã e o sol castigava o desafiante. Lookan estava firme, quase como nas provas de São João da Boa Vista e Itu. A diferença era o ar santista, bem mais úmido do que o das cidades interioranas paulistas. Talvez isso tenha sido um agravante para a resistência do ciclista que, repentinamente, caíra desmaiado às 11 horas, encerrando seu desafio, atingindo a marca de 68h45, apenas 3h15 a menos do que em suas duas provas anteriores.

Socorrido imediatamente por uma equipe médica presente no local, Vicente foi conduzido ao Hospital Beneficência Portuguesa, onde ficou internado. Quando recuperou os sentidos, o faquir sentiu-se frustrado, pois a prova de Santos era a última antes do desafio final da capital, este sim para superar a incrível marca de 114 horas batida pelo colombiano Zuloaga (que era um ídolo adotado pelos brasileiro. Ele promovia provas de resistência em várias cidades do país).

A passagem do excêntrico faquir por Santos foi falada por alguns anos, até que um dia as pessoas esqueceram do fato.

Quanto ao destino de Lookan. Em São Paulo, ele iniciou seu desafio no dia 18 de dezembro, diante de milhares de pessoas, que foram até o Jardim da Luz (eles haviam mudado o roteiro da prova) para testemunhar a coragem do faquir, que anunciara a meta de 125 horas em cima da bicicleta, ou seja, mais de cinco dias ininterruptos. Parte da renda coletada pelo artista seria doada para a Associação Atlética dos Veteranos Esportistas de São Paulo. Além do amazonense, acompanhavam na inusitada prova o mexicano Carlos Garcia Barros e o peruano Mario Samanez. Lookan não contava, porém, com um adversário implacável: a chuva. A partir do dia 21, o faquir enfrentou horas e mais horas de aguaceiro, que o fizeram abandonar a prova na madrugada do dia 22, após 60 horas e 30 minutos de corrida.

Depois desta aventura frustrada, Lookan voltou às suas apresentações de faquir clássico, exibindo-se em jejuns forçados, enterramentos (ele chegou a ficar 2h30 enterrado numa exibição em Uberaba/MG) e crucificações. No início dos anos 1960 chegou a candidatar-se a vereador na capital paulista. O jornal Correio da Manhã, de São Paulo, chegou a zombar desta candidatura: “Os candidatos a vereador já estão tomando conta da cidade. Há candidatos para todo e qualquer gosto, como o representante classista Lookan, que deve ser candidato da turma de barriga vazia. Lookan é faquir profissional” (Correio da Manhã, edição de 11 de agosto de 1963).

 

As aventuras do faquir Lookan ganharam as páginas da famosa revista Manchete.