Santos, 1778. O menino olhava curioso para três estatuetas de madeira inacabadas que um velho abade carmelita acabara de colocar à sua frente. Franzino e sempre muito curioso, o jovem mulato Jesuíno Francisco de Paula Gusmão finalmente recebia a missão que tanto acalentava: a de poder provar sua capacidade na confecção de imagens sacras, suas próprias obras de arte, iguais às que tanto admirava nos altares das igrejas e capelas da pacata vila santista. Contando com tenros 14 anos de idade, completados em 25 de março (ele nascera em 1764 numa singela casa situada em um dos becos pobres que existiam ao longo da rua Santo Antonio – atual Rua do Comércio), o rapaz era sobrinho bisneto do famoso padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão, o que na prática não passava de um detalhe curioso, uma vez que tal parentesco jamais lhe conferiu vida fácil, ainda mais sendo fruto do relacionamento de um vendeiro português com uma de suas negras escravas.
Aquela tarefa, a de concluir o trabalho inacabado de um frade que falecera, foi determinante para dar rumo na vida de um dos maiores pintores, e escultores, da história de Santos: frei Jesuíno do Monte Carmelo. Suas obras, celebradas pelo grande intelectual e crítico de arte Mário de Andrade (um dos expoente da Semana de Arte Moderna de 1922) como uma das mais importantes do barroco colonial, é comparada às de Aleijadinho e mestre Ataíde que, como o santista, foram praticamente autodidatas.
A partida de Santos
O jovem Jesuíno pouco produziu em sua cidade natal. Aos 17 anos de idade, na companhia de um religioso carmelita, e com a incumbência de tocar órgão e ser sacristão, foi de Santos para a vila de Itu, tida então como um grande centro econômico e cultural do interior da capitania de São Paulo. Lá, sob a tutela de mestres na arte barroca, como José Patrício da Silva Manso, consolidou seu aperfeiçoamento artístico.
Três anos depois, casou-se com Maria Francisca, filha de um comerciante português estabelecido na vila ituana. Naquela época, os homens eram muito disputados, pois as bandeiras deixavam os povoamentos paulistas com predominância feminina. Do casamento arrumado, e diga-se de passagem, a contragosto de Jesuíno, frutificaram cinco filhos. O santista, no entanto, não desfrutou da companhia da esposa por muito tempo, uma vez que ela viria a falecer em 1893.
Viúvo, para não ter que se casar novamente, uma vez que ainda era jovem (29 anos), o mulato decidiu adotar a batina carmelita, o que constituiu certo escândalo na pacata vila ituana. Quatro anos depois, ele recebia as Ordens Menores e abandonou seu nome “profano”, tornando-se finalmente o frei Jesuíno “do Monte Carmelo” (montanha situada em Israel, onde, segundo a Bíblia, teria se dado o duelo espiritual entre o profeta Elias e os profetas de Baal).
Crises de consciência e dinheiro do regente
Antes de se tornar padre, Jesuíno, justificando fins “artísticos”, chegou a desviar diversos objetos confiados à sua guarda, como as peças de um órgão defeituoso que consertara em Santos. No entanto, não demorava para sofrer com intensas crises de consciência e, via de regra, acabava devolvendo os materiais “furtados” aos seus legítimos donos. Esses arroubos, porém, cessaram com o uso da batina. Daí em diante, o santista concentrou esforços em sua arte e no sonho de construir um templo próprio.
Para alcançar seu intento, Jesuíno tornou-se, em 1806, monge mendicante, e partiu numa peregrinação através do sertão paulista, percorrendo várias vilas entre Itú e Goiás, buscando angariar os recursos necessários a fim de viabilizar seus planos. Chegou, inclusive, a viajar ao Rio de Janeiro, onde foi recebido pelo próprio príncipe regente, D. João VI (após 1808, quando a corte real portuguesa havia desembarcado no Brasil para ali se instalar), que lhe deu algum dinheiro.
A igreja de Nossa Senhora do Patrocínio
De volta a Itú, com os recursos alcançados em mãos, Jesuíno finalmente pode dedicar-se à construção do templo de seus sonhos, consagrando-o à Nossa Senhora do Patrocínio (título mariano pelo qual a Igreja Católica venera a Santíssima Virgem Maria. É particularmente cultuada na Espanha e Brasil, tendo o surgimento do culto no ano de 1656, na Espanha). Atuando como arquiteto e mestre de obras, o santista teve como ajudantes seus próprios filhos, que também tornaram-se padres (padre Simão Stock, padre Elias, e padre Eliseu do Monte Carmelo).
Durante alguns anos, Monte Carmelo dedicou-se à obra, arquitetando, decorando, pintando e até compondo as músicas para o dia da primeira grande missa em sua igreja.
Regente Feijó foi seu discípulo
O trabalho exaustivo, no entanto, acabou lhe consumindo as forças, jogando frei Jesuíno, enfermo, na cama, por muitos meses. Ao seu lado, um discípulo e fiel amigo, lhe cuidava com afinco: o padre Diogo Antônio Feijó (que ficaria famoso na história brasileira, como o regente do Império do Brasil entre 1835 e 1837).
Depois de recuperado, frei Jesuíno entregou-se a exageros místicos, perseguido por “velhos fantasmas” de sua vida “mundana”. Ele se culpava, a todo momento, pelas faltas cometidas na juventude. Aos 55 anos de idade, o santista se viu praticamente esgotado e, na noite de 30 de junho de 1819, acabou falecendo, em sua própria cama.
O povo de Itu, ao tomar conhecimento da notícia, foi às ruas da pujante vila em procissão, conclamando frei Jesuíno como “santo”. Diante do caixão, coube ao futuro regente, Diogo Feijó, ironicamente inimigo de outro grande santista, José Bonifácio de Andrada e Silva, conduzir as orações fúnebres, dedicadas ao garnde mestre.
Nas orações, teria dito o discípulo de Jesuíno: “Na verdade, senhores, um não sei quê tinha aquele semblante de amável e lisonjeiro que atraía, cativava e docemente arrebatava os que o ouviam. Eu mesmo à primeira vista senti os encantos deste encanto; eu não me fartava de vê-lo, de ouvi-lo, de estar em sua companhia; eu contava por uma felicidade ter parte em seu coração: este fenômeno raro não foi encontro de amor ou inclinação, foi uma necessidade de admirar, de amar a inocência e a virtude.”
Réplicas, enganos e raridades
A cidade natal de Jesuíno do Monte Carmelo, Santos, infelizmente não guardou muitas obras deste, que é considerado o mais importante representante da arte colonial brasileira. O motivo é simples e direto. Ele viveu pouco tempo na vila santista, deixando muito jovem a sua casa, ainda longe de possuir a maturidade artística que viria a juntar ao longo de sua jornada de vida.
O Conjunto do Carmo (Igreja da Venerável Ordem Terceira e a Igreja dos Freis Carmelitas) é o único lugar da cidade santista que mantém trabalhos do notório filho da terra. No templo carmelita ainda existem algumas telas, bem desgastadas e raríssimas, que compõem os altares laterais da Venerável Ordem Terceira. No complexo há também duas estatuetas (Santa Ana e São Joaquim), porém réplicas das obras de Jesuíno, como já afirmou uma vez o renomeado historiador santista Costa e Silva Sobrinho (o destino das originais é desconhecido). As réplicas carregam características típicas do Barroco, notado, por exemplo, no pragueado das vestes, bastante realçado, dando sentido de movimento.
Já no Mosteiro de São Bento, por muitos anos reputou-se ao frei santista o trabalho do retábulo do altar mor da Capela de Nossa Senhora do Desterro. Até uma placa de bronze foi lá instalada, em 1903, indicando sua autoria.
Esta história começou ainda na primeira metade do século XX, quando o monges do Mosteiro de São Bento mandaram trazer a peça desde a Igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, de Itu. Tal fato foi suficiente para que o conhecido pintor Benedicto Calixto de Jesus deduzisse, sem nenhuma base comprovatória, de que havia, naquela obra rara do século 18, a mão do santista Jesuíno. O artista itanhaense convenceu, ainda, a Câmara Municipal de Santos, a confeccionar a tal placa para indicar o que ele, Calixto, se convencera.
Porém, Mário de Andrade, que estudara a fundo a história de Monte Carmelo, a partir dos anos 1940, refutou incisivamente a suposição de Calixto, alegando que Jesuíno praticamente nada produzira em escultura na sua igreja em Itu. A especialidade do frei santista era, definitivamente, a pintura sacra, de claro estilo barroco.
As pinturas famosas
Entre as artes pictóricas de frei Jesuino do Monte Carmelo, as mais conhecidas estão justamente em Itu, tanto na igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, quanto na Igreja do Carmo, daquela mesma cidade interiorana, onde foi sepultado. Nesta, o destaque fica para o teto da capela mor, considerado um dos mais belos do patrimônio do barroco nacional. A capital paulista também guarda alguns registros de seu trabalho. Porém, muitas das obras atribuídas ao frei santista foram desmistificados por Mário de Andrade.
As obras do convento demolido
Outro trabalho atribuído ao frei santista, cuja autenticidade é também refutada pelo famoso crítico paulistano, está reunido em um conjunto de pinturas sacras que faz parte, hoje, do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Tratam-se de dez paineis (seis pinturas retangulares, representando os primeiros santos proclamados Doutores da Igreja – Gregório, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo, Tomás de Aquino e Boaventura – e quatro pinturas ovais, representando os quatro Evangelistas) que foram resgatados do antigo Recolhimento de Santa Teresa, demolido no início do século XX.
O local era tido como o primeiro convento feminino de São Paulo, fundado em 1685, e administrado pela Ordem das Carmelitas Descalças. Em 1796, Jesuíno Francisco, quando já atuava em Itu, acabou contratado pelas irmãs carmelitas paulistanas para decorar o convento. No trabalho, o santista retratou, no teto em caixotão, cenas da vida – visões e êxtases – de Santa Teresa de Ávila. Quando o edifício foi desapropriado e demolido, para a ampliação da Praça da Sé, no final da década de 1910, os painéis decorativos foram recolhidos por ordem do Arcebispo Dom Duarte Leopoldo e Silva e enviados para o antigo Museu da Cúria.
Do total de 28 painéis retirados, todos atribuídos ao padre Jesuíno, 18 foram doados para a Ordem Terceira do Carmo – que as conserva no corredor lateral de sua igreja – e os outros 10 atualmente fazem parte do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Porém, assim como afirmava Mário de Andrade na sua biografia sobre o padre artista, os painéis dos Santos Doutores e dos Santos Evangelistas não são da autoria de Jesuíno. Após análises estilísticas e a partir de fontes primárias, é possível afirmar que as pinturas do Museu de Arte Sacra sejam de período posterior, provavelmente da escola de Jorge José Pinto Vedras e seus discípulos, executadas na década de 1850 para as freiras carmelitas.
Um nome pouco lembrado
Frei Jesuíno do Monte Carmelo é mais um dos santistas ilustres do longinquo passado que pouco é lembrado em sua terra natal. Mas nada que não possa ser resgatado, para orgulho de uma cidade que produziu figuras ímpares em vários setores da sociedade.