Santos, julho de 1824. Uma fina garoa caia insistentemente sobre a vila santista, afastando das ruas a maior parte da população. Era mais ou menos seis horas da tarde quando o crepúsculo iniciou um espetáculo tímido, ao longe, por detrás da serra atlântica. Em meio ao cenário melancólico, uma jovem dama caminhava furtivamente na direção da Capela do Carvalho, igrejinha que dominava a paisagem da rua da Praia, assim como o coração das famílias mais tradicionais da povoação portuária. Depois de olhar para ambos os lados da via deserta, certificando-se de que não era observada ou seguida, a misteriosa moça entrou por uma porta lateral que dava acesso ao presbitério da capela, sentando-se logo em seguida no banco situado na primeira fileira da nave central. Por um breve momento a enigmática dama fitou o retábulo da igrejinha barroca, juntou as mãos e fechou os olhos, rezando baixinho, suplicando a Deus que intercedesse a seu favor. Ela não queria mais ter de viver às escondidas para ser feliz.
Repentinamente, uma onda de calor percorreu seu corpo, imediatamente após ter sentido um gentil toque de mão sobre o ombro. Maria Zeferina, nome da misteriosa donzela, abriu os olhos e deixou-os reluzir de contentação, sincronicamente à doçura revelada pelo sorriso desenhado em seus lábios. Tamanha causa de euforia tinha como lastro a paixão arrebatadora que nutria pelo jovem médico, cirurgião-mor do Hospital Militar, Manoel Joaquim Soares, moço trabalhador e bem quisto na vila santista. Porém, para desalento de Maria, o mesmo sentimento não fazia eco em sua própria casa, uma vez que sua mãe não via com bons olhos o florescimento de uma relação afetiva da filha com o médico militar.
– Já decidistes que farás mesmo isso, por nós? – indagou o enamorado Manoel.
– Sim, e para isso chamei o padre Francisco, que nos unirá em matrimônio aos olhos de Deus. Contra isso, minha mãe não poderá ir. – respondeu Maria, já abraçada ao amado.
– Que ótimo! Pois já tenho, cá comigo, a autorização do bispo para casarmos! – completou o médico.
Os dois haviam se conhecido na Capela do Carvalho não fazia muito tempo. A igrejinha tinha sido construída cerca de trinta anos antes, por ordem do coronel José Antonio Vieira de Carvalho, pai de Maria Zeferina, que herdara aquelas terras, situadas no Valongo, do seu tio, o sargento-mor Antônio José de Carvalho, familiar do Santo Ofício e um dos homens mais ricos de Santos na época.
O templo, menor e mais modesto que as outras igrejas da vila, como as do Carmo, de Santo Antonio do Valongo, da Matriz, do Rosário e da Misericórdia, fora consagrada à Jesus, Maria e José (a Santíssima Família – embora em vários escritos sobre a capela se mencione a “Santíssima Trindade”, que representa o Pai, o Filho e o Espírito Santo), ocupando uma grande margem da praia santista, nas cercanias do Porto do Consulado.
Os Carvalhos eram os participantes mais assíduos das missas daquele templo, também bastante frequentado por algumas das famílias mas influentes e abastadas da vila. E foi numa das celebrações eucarísticas que Maria e Manoel trocaram olhares pela primeira vez e se apaixonaram.
A filha do coronel já estava para apresentar-lhe o homem que amava, segura de que teria a aprovação paterna, certamente pela boa fama que cirurgião-mor gozava entre os militares da vila. Porém, em fins de 1823 (19 de dezembro), uma devastadora doença acometera o patriarca dos Carvalho, ceifando a vida do ilustre homem, personalidade marcante da vida social, política, religiosa e administrativa de Santos, onde ocupou o cargo de juiz, vereador e presidente da Câmara em 1808.
Sem poder contar o com mesmo apoio ou consentimento do lado materno, uma vez que sua mãe insistia em dizer que não desejava-lhe o destino de ter de se casar com um militar, Maria decidiu viver seu romance às escondidas, até que achasse um meio de driblar a inconveniência. O local dos encontros fortuitos do casal apaixonado era justamente a Capela do Carvalho.
Enquanto o casal abraçava-se, envolto em gestos de amor e ternura, três figuras surgiam por detrás do retábulo e se anunciavam.
– Cá estou, senhorinha Maria. E tomei da liberdade de trazer comigo dois calisbentos de nossa igreja, Francisco Gonçalves Torres e Antonio Joaquim Fogaça, que servirão como testemunhas da união de vocês.
Não muito tempo depois, o grupo tomou uma embarcação para o Jurubatuba, onde havia uma capela, de São José, local perfeito para a realização de um casamento distante dos olhares da vila. Lá, Maria Zeferina e Manoel Joaquim Soares seriam abençoados com o matrimônio, sendo declarados marido e mulher pelo padre Francisco Luis da Cunha, depois do noivo apresentar a licença da autoridade religiosa superior.
Irritadíssima pelo sumiço da filha, a viúva do coronel Carvalho, sem pensar duas vezes, mandou caçar os pombinhos. Para isso, chamou um estafeta do falecido marido, o cadete Carlos Augusto Nogueira da Gama, cedendo-lhe dois escravos para auxiliá-lo na tarefa de encontrar sua filha e devolvê-la para casa.
Três dias depois, num sítio em Jurubatuba, onde Maria Zeferina e Manoel se acomodaram provisoriamente, o cirurgião-mor foi atacado pelo trio de “caçadores”. Sob a mira de armas de fogo, o casal “fugitivo” foi levado à força para a vila santista.
O médico militar tentou, em vão, explicar que havia se casado com a permissão do bispo, porém não encontrara a licença expedida. Talvez a tivesse perdido, ou ter sido roubado, como chegou a argumentar no juri de Santos, para onde o caso foi levado. A história virou um processo, que durou 15 anos. Infelizmente nunca foram encontrados registros que pudessem indicar o desfecho desta incrível história de amor proibido.
A narrativa aqui colocada
A aventura de Maria Zeferina e Manoel Joaquim Soares ficou marcada na memória de Santos como mais uma das histórias de amor que arrebatou a vila santista no passado. As primeiras referências dela foram obtidas a partir de pesquisas desenvolvidas pelo historiador Costa e Silva Sobrinho, em meados do século 20, e publicadas em seus famosos artigos na coluna “Santos Noutros Tempos”. Nos anos 1970, o jornalista Olao Rodrigues, grande difusor da memória santista, também chegou a reproduzi-las, sempre que necessitava falar sobre a famosa capela da Santíssima Trindade.
Aqui, no Memória Santista, esta história ganhou uma roupagem romanceada, e inédita, registrada pelas mãos do escritor Sergio Willians.
A capela, em imagens
A primeira referência visual da Capela do Carvalho vem de 1827, quando da passagem do botânico inglês William Burchell pela vila de Santos. O britânico produziu uma bela aquarela que mostra o local, não muito tempo depois da agitada história de amor aqui narrada. Em meados do século 19, o fotógrafo Militão Augusto de Azevedo produz as primeiras imagens fotográficas do templo, mostrando uma capela já bastante judiada pela ação do tempo. Outra imagem bastante expressiva foi tirada semanas antes da demolição do velho prédio, em 1902. A imagem, cuja autoria é apontada para o fotógrafo José Marques Pereira, mostra uma edificação condenada, com janelas quebradas e aspecto de abandono. O famoso pintor Benedicto Calixto também registrou a presença da capela em várias de suas telas, que se tornaram referência de sua localização.
A Capela do Carvalho
A Capela do Carvalho, também conhecida como da “Santísisma Trindade” (talvez o correto seria a “Santíssima Família”) , ou de “Jesus, Maria e José” ou “do Terço”, acabou sendo demolida em 1902, após 111 anos servindo como uma referência de fé para os santistas. Depois da família Carvalho, o templo chegou a ser administrado pela Irmandade de Nossa Senhora do Terço e, após a sua demolição, o terreno foi comprado por uma empresa exportadora de café, a Zerrener, Bullow & Cia, com escritura lavrada em 7 de abril de 1904.
Todos os corpos lá enterrados (lembrando que os sepultamentos eram feitos dentro das igrejas e capelas da vila) foram removidos e levados para o Cemitério do Paquetá, sendo alojados no jazigo da irmandade de Nossa Senhora dos Passos, caso dos restos do coronel José Antonio Vieira de Carvalho.
Nos dias de hoje, o local correspondente à sua localização é a edificação de numero 45 da Rua Tuiuti, no Centro Histórico de Santos.