A origem do cartão postal remonta ao final da década de 1860, quando o professor de economia política da Academia Militar de Wiener Neustadt (Áustria), Emmanuel Hermann, resolveu expedir, como correspondência comum, um cartão sem envelope, onde qualquer pessoa podia “ler” a mensagem enviada ao destinatário. Uma vez que não infringia as regras dos correios, a novidade foi aceita e acabou despertando grande curiosidade entre as autoridades do país (na época, o Império Austro-húngaro). Em 29 de janeiro de 1869, Hermann publicou um artigo no jornal vienense “Die Neue Freie Presse” salientando as vantagens no uso deste modelo de correspondência. O professor alegava que, além de tornar barato o hábito da comunicação escrita, o cartão simples estimulava as pessoas à comunicação com parentes e amigos, uma vez que poderiam ser visualmente bonitos, trazendo desenhos temáticos (Natal, Páscoa, etc), reproduções de quadros e até fotografias, popularizadas com o daguerreotipo a partir de 1823.
O Império Austro-húngaro, assim, se tornou o primeiro país a adotar oficialmente o cartão postal como franquia de correio, exemplo logo seguido por vários outras nações, até que, em 1880, foi aprovado pela União Postal Universal (fundada em 1874, é a segunda organização internacional mais antiga – ficando atrás somente da União Internacional de Telecomunicações).
Foi também em 1880 que circulou o primeiro cartão brasileiro, ou melhor, “Bilhete Postal”, distribuído exclusivamente pelo Correio e que de bonito não tinha lá muita coisa. Ainda assim, rapidamente se tornou um sucesso e foi largamente utilizado pelos brasileiros.
Ilustrações nos cartões postais do Brasil
Em 1897 surgiria no país a primeira coleção de postais ilustrados produzidos por uma empresa particular, a V.Steidel & Cia, que seguia uma tendência já consolidada na Europa. Um dos cartões dessa coleção pioneira trazia pinturas alegóricas da Estrada de Ferro São Paulo Railway (SPR), considerada a primeira imagem santista estampada neste tipo de material. A coleção de Steidel fez enorme sucesso e abriu as portas do mercado brasileiro para a entrada de postais dos mais diversos lugares do mundo, como também estimulou artistas, fotógrafos e empresários do setor gráfico a investir neste segmento que prometia ser altamente lucrativo.
Divulgando cidades
Ao mesmo tempo em que os postais barateavam o uso da correspondência, as cidades ganhavam uma forma eficiente de “marketing turístico”, uma vez que suas principais imagens circulavam pelo mundo, estimulando à viagem os destinatários e os que tivessem acesso aos cartões. Uma das formas de distribuição era por meio dos transatlânticos que mantinham linhas de viagem entre a Europa e a costa sul-americana. As companhias de navegação firmavam parcerias com empresas de postais e traziam artistas à bordo, para que esses pudessem registrar, com sua arte, os principais cenários das cidades onde aportavam. Foi este esquema que propiciou a relação da famosa empresa de postais Tuck`s & Sons Ltd. com a cidade de Santos, no primeiros anos do século XX, história central desta reportagem.
A origem da Tuck´s Post Card
Ernestine Tuck era uma mulher de negócios bastante competente. Seu marido, o judeu prussiano Raphael, era um artista perfeccionista, sempre em busca da melhor perspectiva para suas criações. Em outubro de 1866, ambos abriram uma pequena loja em Bishopsgate, Londres, e passaram a vender fotos e quadros, aonde foram muito bem sucedidos, graças à administração de Ernestine e ao talento de Raphael. No bom ritmo, em pouco tempo, os negócios expandiram e ambos passaram a trabalhar também como distribuidores de arte gráfica e impressões, que incluía cromos, reproduções oleográficas e litografias em preto e branco. Rapidamente ganharam fama na capital inglesa, com a venda de reproduções de quadros e gravuras famosas, juntamente com cartões de saudação vitoriana (Rainha Victória – 1837/1901) disponíveis na época.
O casal Tuck tinha sete filhos (quatro homens e três mulheres), todos nascidos na Prússia antes da migração da família para a Inglaterra. Aos três filhos mais velhos, Herman, Adolph e Gustave, incumbiu a tarefa de vender os produtos da família pela capital britânica. O patriarca adotara um esquema curioso de premiação. O filho que apresentasse o maior volume de vendas no final do dia, tinha direito ao maior ovo no café da manhã do dia seguinte.
Raphael deve ter gastado uma grana preta em ovos, já que o sucesso dos cartões na Inglaterra foi imediato. Um dos maiores trunfos deste judeu respeitado em sua comunidade como um promissor acadêmico dos ensinos do Talmud, foi justamente num campo que ninguém poderia supor: a venda de cartões de Natal, uma celebração tipicamente cristã. Todos diziam que Raphael, no que tangia aos negócios, não misturava suas crenças. Espertamente, ele estava alinhado à consciência religiosa da época vitoriana.
Em 1880, a empresa se transformou na Raphael Tuck & Sons Ltd e passou a promover concursos de artes. Um deles, com prêmios que somavam £ 5.000 (Cinco mil libras), buscava projetos para a produção de cartão de Natal. Mais de cinco mil trabalhos foram inscritos e os melhores foram exibidos nas galerias Dudley, com ingresso pago. Multidões formaram filas em Londres para visitar a exposição, o que acabou por consolidar a posição da empresa no segmento de cartões natalinos.
Galeria de respeito
Por meio dos concursos que promovia, no intuito de aumentar sua galeria de arte, Raphael Tuck acabou conhecendo artistas de toda Europa. Diversos deles foram contratados para produzir trabalhos paisagísticos em várias partes do mundo. A ideia era reproduzir esses trabalhos em cartões postais, uma vez que o produto, por ser barato, tinha se tornado uma coqueluche no Velho Mundo, assim como nos Estados Unidos, que não parava de crescer por conta do surgimento de inúmeras indústrias de transformação. A coleção de gravuras e quadros à óleo pertencentes à Raphael Tuck & Sons também crescia, tanto que o presidente da Royal Academy de Londres, uma das mais respeitadas instituições de artes da Europa, chegou a dizer que eram, provavelmente, mais ricas do que todas as galerias de arte do mundo, juntas.
Em menos de vinte anos, desde a fundação da empresa, os postais de Tuck já eram distribuídos em praticamente todos os países europeus, além dos Estados Unidos e Canadá. A América do Sul, a partir de 1890, também entraria na rota de interesse da família Tuck e, consequentemente, o Brasil, um país que havia acabado de se tornar republicano.
Charles Flower e a The Royal Mail Steam Packet
A partir de 1900, ano da morte do patriarca, Raphael, a empresa estabeleceu escritórios em Paris, Berlim, Montreal e Nova York. No ano seguinte montou filiais na Índia, Brasil, Argentina e África do Sul. A expansão para lugares tão longínquos de casa se deu graças à parcerias com companhias de navegação, em especial a Royal Mail Steam Packet (RMSP) que, desde a década de 1830, mantinha linhas entre a Europa e o resto do mundo, em especial para os países sul-americanos da costa atlântica (Brasil, Uruguai e Argentina). Nesta rota, o porto de Santos era escala obrigatória.
Em 1902, a família Tuck contratou o jovem ilustrador Charles Edwin Flower para produzir imagens das Américas, a fim de aumentar o rol de ilustrações da empresa. Flower, nascido em Merton, Surrey, nos arredores de Londres, em 1871, havia estudado no Royal College of Art e foi rapidamente alçado à fama por conta da grande habilidade para produzir paisagens em óleo sobre tela e aquarelas. Com 25 anos de idade, foi patrocinado pela família real britânica e teve suas obras exibidas na Academia Real a partir de 1899.
Quando conheceu a família Tuck, o velho Raphael ainda era vivo e consta que ficou bastante impressionado com a arte do jovem Charles. A empresa, administrada então pelo primogênito, Adolph, firmou contrato com o pintor, ficando acertado que ele viajaria inicialmente aos Estados Unidos e Canadá para, depois, fazer um tour pelos países sul-americanos, onde produziria desenhos à óleo de cenas das cidades por onde os transatlânticos da RMSP faziam escala.
Para cumprir a primeira etapa do acordo, Flower residiu por alguns anos em Nova York e em Montreal, onde produziu dezenas de imagens, não só dessas duas cidades, mas também de Atlanta, Quebec e Ontário. Voltando à Inglaterra, deixou suas telas na sede da Raphael Tuck & Sons e partiu para cumprir a segunda etapa do acordo, viajando para a América do Sul, onde, a partir de 1909, aportou no Rio de Janeiro, em Santos e em Buenos Aires. Nestas três localidades, produziu quadros que ficaram marcados no seu portfólio de trabalho e nos postais da empresa britânica.
Os postais de Flower em Santos
O jovem pintor não produzia suas paisagens do modo clássico, ao vivo. Charles preferia contar com o auxílio de fotografia e, via de regra, contratava profissionais do ramo nas cidades por onde passava. Ao mesmo tempo anotava as cores básicas da cena em um esboço feito por ele mesmo em um pedaço de papel. Em Santos, é muito provável que o artista contratado pela Raphael Tuck & Sons tenha se utilizado dos serviços de José Marques Pereira, uma vez que algumas de suas pinturas possuem bastante semelhança com alguns trabalhos do conhecido fotógrafo santista. Flower produziu cinco telas sobre Santos: Avenida Ana Costa e Parque Balneário; Estação São Paulo Railway; Arredores de Santos – Hotel e Praia do José Menino; Parque Balneário e Avenida Ana Costa (outra arte) e Villa Mathias e Avenida do Canal. O pintor trabalhava à bordo e terminava seus trabalhos ao longo das viagens. O pintor viajou mais de três vezes à Santos. Quando chegava a Londres, seus trabalhos eram reproduzidos em postais pela firma de Adolpho Tuck e as obras originais iam para a Galeria de Artes da empresa.
Um dos acordos da Raphael Tuck & Sons Ltd. com a Royal Mail Steam Packet era distribuir os postais entre os passageiros. Era uma forma de estimular os mesmos a se corresponder com amigos e parentes, estimulando-os a promover a mesma viagem e, é claro, fazer reservas nos navios da empresa.
Pelo visto, a tática da RMSP deu tão certo que a empresa fez questão de exigir à Raphael Tuck & Sons que o verso de seus cartões, a partir de 1911, ao invés de estampar apenas o nome da empresa de postais, tivesse o nome da armadora inglesa. Flower ainda chegou a fazer um último trabalho nesta fase. Foi a obra “Lembranças de Santos – Novo Hotel do Guarujá”. Depois desta tela, Charles Edwin Flower não voltaria mais à Santos, ou pelo menos não produziria mais trabalhos sobre a cidade. Consta em sua biografia que o talentoso pintor passaria a concentrar seus trabalhos na Alemanha, produzindo dezenas de telas, que estão marcadas até hoje na história por ter imortalizado imagens que foram totalmente destruídas nas décadas seguintes por duas terríveis guerras.
Além de seus trabalhos na Alemanha, Flower ilustrava o jornal “Old Time Paris”, de George F. Edwards e “No 10 Downing Street”, de Charles E. Pascoe. Em 1917, se estabeleceu com sua família nas proximidades de Wallingford, Oxfordshire, onde viveu até sua morte, em 1951.
O lote da RMSP
Com a saída de Flower da linha sul-americana da Raphael Tuck & Sons, a Royal Mail resolveu bancar outros artistas em parceria com a empresa de cartões britânica. Neste segundo lote, foram produzidas mais seis telas, sendo quatro delas mostrando o então distrito de Guarujá (pertencente à Santos) e uma mostrando o último plano de trilhos da São Paulo Railway, no alto da Serra do Mar. A sexta imagem é de uma lagoa, descrita como localizada em Santos. Há uma possibilidade que seja uma imagem ancestral da Lagoa da Saudade, no Morro da Nova Cintra.
As telas eram nomeadas assim: Serra – Último Plano (mostra o trecho nas proximidades de Paranapiacaba, da São Paulo Railway) e Santos – Uma lagoa, além de mais um lote de imagens da Ilha de Santo Amaro, como Santos – Guarujá-Novo Hotel; Guarujá – Sala das Pedras; Guarujá – Praia de Banhos e Guarujá – Praia das Tartarugas.
Guerra destrói acervo histórico
Estima-se que a empresa Raphael Tuck & Sons tenha produzido mais de 40 mil cartões postais diferentes, boa parte composta de paisagens, cujo registro ficou marcado na história. Porém, um fato lamentável liquidou a maioria das telas originais, pelo menos as que ainda estavam sob a tutela da família Tuck. Era o dia 29 dezembro de 1940. Londres foi bombardeada pelas forças nazistas. Prédios inteiros foram incendiados e detonados. Entre eles, a sede da Raphael Tuck & Sons Ltd. Na manhã seguinte, os registros de 74 anos entre fotos e telas produzidas pelos melhores artistas da Europa estavam em cinzas. É possível, que no meio dos escombros e da destruição, estivessem as telas originais de Charles Flower e as outras que retrataram Santos e seus arredores. Porém, sobreviveram as cópias no formato de postais, preservando no tempo o cenário santista do passado, rico e artístico, moldado pelas mãos de habilidosos artistas, como Charles Flower e os seus patrocinadores, os admiráveis Raphael e seus filhos, os maiores produtores de postais artísticos da história.