Jangadeiros de Fortaleza empreendem viagem até Santos para reivindicar barcos à comunidade pesqueira

Aventura, que levou 73 dias, ficou marcada pela luta de uma comunidade humilde de pescadores que só desejava obter melhores condições de trabalho

24 de novembro de 1967. Jornais de todo o país davam conta da história de uma comunidade de jangadeiros cearenses que, pretendendo chamar a atenção do governo federal, estava promovendo a viagem de uma singela jangada, batizada com o nome “Menino Deus”, por 1.700 milhas, desde a praia de Mucuripe, Fortaleza, até o porto de Santos. Na cidade portuária paulista eles pretendiam entregar às autoridades que comandavam a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) um memorial assinado por mais de mil pescadores, dirigido ao então presidente da República, o Marechal Costa e Silva. No documento, os jangadeiros reivindicavam a cessão de barcos a motor à Colônia de Pesca C-19, a qual pertenciam, para que pudessem melhorar e facilitar suas atividades. A comunidade pesqueira cearense afirmava não ser mais possível competir contra os modernos pesqueiros pertencentes a empresas estrangeiras que atuavam nas águas daquela região.

A ideia era de ofertar a jangada, após o término de reide marítimo, à primeira-dama, dona Iolanda Costa e Silva.  A rota dos aventureiros passava por Natal, Cabedelo, Recife, Maceió, Salvador, Ilhéus, Vitória, Rio de Janeiro até, finalmente, chegar a Santos

Depois de planejarem a viagem, em 8 de dezembro de 1967, dia de Nossa Senhora da Conceição – os cinco jangadeiros cearenses (Luís “Garopa” Carlos de Souza, comandante; José de Lima, João Rodrigues da Costa, Manoel Antônio de Lima e Manoel Bezerra de Lima), integrantes da Colônia C-19, iniciaram sua missão. A rudimentar embarcação, enfeitada com bandeiras multicoloridas, também vinha carregada de sal, feijão, farinha, querosene (para acender o fogo de cozinha) e diversas miniaturas da própria jangada, que deveriam ser distribuídas às autoridades paulistas, além do documento endereçado ao presidente.

Os cinco jangadeiros partem de Mucuripe rumo a Santos em busca de um sonho. Revista O Cruzeiro.

Durante o tempo da viagem, as famílias dos jangadeiros que compunham a tripulação da “Menino Deus” ficariam amparadas pela Escola de Aprendizes de Marinheiros de Fortaleza e outras organizações militares com sede na capital cearense.

Ao deixar a praia de Mucuripe, a jangada “Menino Deus” esteve acompanhada, até 20 milhas da costa, por uma verdadeira “procissão marítima”, composta por outras dez jangadas e igual número de barcos a motor, todos ricamente ornamentados. Navios ancorados no porto local também celebraram o acontecimento com um apitaço no momento da largada.

A primeira parte da viagem, apesar de registrar um pequeno acidente, foi relativamente tranquila a ponto de, no dia 20 de dezembro, os jangadeiros terem chegado à capital potiguar, Natal, dentro do prazo previsto. “Garopa” e seus comandados permaneceram estacionados por cinco dias, justamente visando providenciar o conserto da avaria. O leme da embarcação havia travado e precisou ser reparado na Base Naval do Rio Grande do Norte.

Os jangadeiros cearenses. Revista O Cruzeiro.

Susto por notícia equivocada

No dia 5 de janeiro, chegava a Santos a notícia de que pescadores haviam encontrado uma jangada à deriva nas imediações da Ponta do Tubarão, no litoral do Espírito Santo. Logo acreditaram que seria a “Menino Deus”, mas, depois, verificou-se de que se tratava de outra embarcação parecida, chamada “Pau D’alho”, que havia partido de Maceió em 2 de dezembro, coincidentemente também com destino à cidade de Santos. A tripulação desta, composta pelo mestre Jaime Cintra e os jangadeiros Hélio Batista Leitão e Augusto Borges, desconheciam a missão dos companheiros cearenses. O “Pau D’alho” foi rebocado para Vitória, onde receberia os reparos necessários para retomar a viagem.

Fé em Salvador

No dia 9 de janeiro, a “Menino Deus” chegava à capital da Bahia, Salvador, para mais uma escala do longo do percurso de 1.700 milhas. Na cidade dos orixás, os pescadores aproveitaram para agradecer a Deus por terem se safado de uma grande encrenca vivida na madrugada do dia 28 de dezembro, quando foram pegos por um terrível temporal, um dia após terem deixado o porto de Recife. O mar, acoiçado pelos ventos, formou ondas de mais de dez metros de altura. Porém, a mão do mestre Luiz Carlos estava firme e quando o dia clareou, o oceano já estava calmo e a tripulação a salvo. Em Salvador eles reforçaram suas orações para que o presidente da República atendesse suas súplicas, doando-lhes um barco de pesca a motor, o sonho da comunidade de jangadeiros da praia de Mucuripe.

A viagem da jangada “Menino Deus” durou 73 dias e percorreu 1.700 milhas marítimas (3.150 quilômetros). No trajeto, os jangadeiros previram parar em oito localidades (não conta-se Fortaleza – partida – e Santos – chegada). No final, pararam também em outros lugares, como na Ilha Grande.

Chegada a Vitória e posterior desaparecimento

Em 21 de janeiro, a jangada cearense chegava à capital do Espírito Santo, Vitória, sendo recebidos com muita festa pelas autoridades e pelo povo capixaba. Ali, ficaram comendo e bebendo por conta das pessoas que admiravam a coragem e a luta dos bravos jangadeiros. No dia 24, uma manhã tranquila, eles retomaram a viagem e partiram no rumo sul. Tudo estava dentro do cronograma, até que, no dia 29, a “Menino Deus” não foi vista no Rio de Janeiro, como previsto. Nada também no dia seguinte e nos outros dois restantes do mês. Preocupados com o que poderia ter acontecido, os organizadores do ato acionaram a Marinha de Guerra e os serviços de busca da Força Aérea Brasileira, que fizeram uma varredura entre Vitória e a capital carioca. A última vez que a jangada cearense havia sido avistada fora nas primeiras horas de segunda-feira, dia 29, em Maricá, litoral norte fluminense.

Horas depois eles finalmente seriam localizados por um “camaroeiro” carioca chamado “Lutando Vence”, um pouco fora da rota, na altura de Cabo Frio, região de Maricá. Socorridos pelos pescadores, os cearenses finalmente puderam chegar ao Rio de Janeiro no dia 2 de fevereiro. A “Menino Deus” adentrou as águas da Baía de Guanabara rebocados por uma lancha da Salvamar. Tal situação entristeceu o mestre Luiz Carlos, que não desejava chegar até a “Cidade Maravilhosa” naquelas condições. Ele e seus comandados acabaram ficando alojados na Capitania dos Portos da Guanabara.

Presidente se recusou a receber os jangadeiros

A grande decepção dos pescadores cearenses aconteceu no Rio. O presidente Costa e Silva se negou a receber os jangadeiros que participavam do reide de jangada. Para piorar a situação, eles haviam batizado o evento com o nome da primeira-dama, dona

Iolanda Costa e Silva, exatamente para chamar a atenção do presidente e conseguir uma audiência. Mas o efeito foi justamente o contrário. Pelo menos em relação ao chefe de Estado. A imprensa, por outro lado, ficou ainda mais alerta com a história dos pescadores de Fortaleza, a ponto do repórter Saulo Gomes, dos Diários Associados, pedir aos jangadeiros para participar da última etapa da viagem, até Santos.

No Rio de Janeiro, o reide ganhou um componente: o radialista Saulo Gomes, dos Diários Associados. Ele ficaria desidratado e perderia peso na aventura.

O sexto “jangadeiro”

Quando o repórter Saulo Gomes finalmente foi autorizado a fazer a viagem, ele se tornava o sexto jangadeiro da trupe. E acabou incorporando o papel à risca. Na primeira no mar, ele percebeu que a frágil blusa verde de malha que usava não daria conta. Foi então que ganhou uma roupa de jangadeiro, cedida por Zé de Lima, que era muito mais baixo do que o jornalista. Assim, por ser a roupa muito curta, Saulo ficou com a canela de fora, e continuava sofrendo com o vento e o frio. As roupas utilizadas pelos jangadeiros eram especialmente preparadas para aguentar o desafio. Feitas de algodão, eram impermeabilizadas de um jeito muito especial: fervida durante quatro ou cinco dias em castanha de caju, o que lhe dava a tonalidade marrom.

Saulo assumiu a missão de transmitir a “perna” final da viagem entre a terra Guanabara e Santos, por intermédio de um emissor tipo SSB. Os sinais de rádio seriam captados por uma cadeia de emissoras paulistas e cariocas. Só que, quando estavam na altura de Angra dos Reis, mestre Garoupa manifestou preocupação excessiva. Eles estavam perdidos. As orientações passadas anteriormente os tinham levado para fora da rota. – E agora, qual critério vamos usar para acertar isso? – quis saber o repórter, talvez preocupado com sua condição de homem ao mar.           

Solidariedade da comunidade pesqueira

Definitivamente, a viagem do Rio até Santos pode ser considerada uma aventura à parte. O mau tempo atrasou a evolução da jangada no trecho de Angra. Os víveres foram escasseando, a ponto de eles decidirem aportar na praia de Provetá, na Ilha Grande. A Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) em Santos monitorava a vinda do “Menino Deus” ao porto santista por meio do contato de sua estação de rádio com os pesqueiros que atuavam no litoral norte de São Paulo. Muitos pescadores se solidarizaram com a luta dos companheiros do Ceará, e faziam questão de “escoltar” a jangada pelos mares de São Paulo e Rio de Janeiro. Inclusive o caso ganhou tanto interesse que a Federação das Colônias de Pescadores do Estado de São Paulo começou a manter contatos diários com as estações de rádios locais objetivando transmitir para o povo todos os detalhes da arrojada missão, que eram passados pelo repórter Saulo Gomes, o famoso “sexto jangadeiro”.

A Prefeitura de Santos havia preparado uma recepção especial aos aventureiros, garantindo hospedagem, alimentação e condução com carro oficial aos jangadeiros enquanto durasse sua passagem pela cidade. A Federação comunicou pela imprensa que as pessoas ou entidades que quisessem também colaborar na recepção aos visitantes, que o fizesse na sede da instituição, na rua Amador Bueno, 155, 1º andar.

A jangada “Menino Deus” já em Santos. Ela foi dada de presente à primeira-dama do Estado de São Paulo, Maria Abreu Sodré, que repassou o barco para o Museu de Pesca, onde seria incorporado ao acervo. Foto: A Tribuna de Santos

Chegada a Santos, mas de reboque

Depois de sete dias, a jangada “Menino Deus” finalmente chegava, às nove horas da noite, na altura da Ilha da Moela, na entrada da Baía de Santos. Eles estavam sendo esperados por três barcos. Um deles, o pesqueiro “Serra D’Ouro”, jogou uma corda para rebocar a pequena embarcação até a Ponta da Praia. Lá, muitas pessoas esperavam pelos aventureiros, em especial uma equipe da TV Tupi e de outros veículos de comunicação santistas. Um sargento de bem perto falou. – Tire primeiro o repórter, ele está mal. De fato, Saulo não estava bem, mas resistindo. Os seis tripulantes foram levados para as calçadas e estirados ao chão, ficaram por quarenta minutos enquanto profissionais socorristas faziam exercícios nas pernas e braços deles, propondo reanimar os músculos. O repórter estava desidratado e com quarenta de dois quilos. Cambaleando, todos foram para os carros sendo ovacionados pelos que ali estavam presentes. Para alguns era inacreditável. 

“Olha moço, eu e meus companheiros esperamos que toda essa andança não resulte em vão. Nós fizemos esse reide para sensibilizar as autoridades deste país, às quais queremos apresentar uma única reivindicação. Interpretamos os anseios de mais de 4 mil pescadores (registrados na Capitania dos Portos de Fortaleza) e pedimos apenas que a Sudepe nos financie um barco moderno para a pesca, pois a jangada não dá mais para competir com os pesqueiros estrangeiros que exploram nossas águas. O preço deste barco é de 100 milhões de cruzeiros antigos” (equivalente a R$ 3 milhões nos dias de hoje), disse o mestre Garoupa, 52 anos, 11 filhos, líder da jangada “Menino Deus”

A história dos jangadeiros de Mucuripe chamou a atenção da imprensa brasileira. Aqui, os pescadores participam do programa “Esta é a sua vida”, da Tv Tupi de São Paulo, canal 5.

Na telinha da TV

A chegada da “Menino Deus” de fato chamava a atenção da imprensa de todo o Brasil. O canal 5, TV Tupi de São Paulo, que se dirigiu a Santos para acompanhar a chegada dos jangadeiros, produziu uma reportagem completa sobre a história, transmitindo-a no programa “Esta é a sua Vida”. Os jangadeiros, e o repórter Saulo Gomes, foram levados ao estúdio da emissora na capital e tomaram um susto quando viram que lá estavam as esposas e filhos dos pescadores, trazidos de avião desde Fortaleza pela produção do programa. Foi um momento de grande emoção para todos.

Governo vira as costas, empresários ajudam

Os dias se passaram e nenhum movimento foi feito por parte do governo federal. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, ainda tentou ensaiar um movimento de apoio governamental em favor dos jangadeiros, mas o máximo que conseguiu foi por intermédio de empresários, que acabaram doando uma embarcação mais modesta (com capacidade para 5.800 quilos) aos jangadeiros. Era uma espécie de “prêmio de consolação” pelo esforço que fizeram. A Vigorelli do Brasil (que tinha um estaleiro em Cananeia) doou um casco de embarcação (8,20 metros de comprimento, 2,60 de largura e 0,80 de pontal, com acomodação para 4 beliches) e a Mercedes Benz doou um motor de 55 HP, 4 cilindros, com capacidade de correr até 9 nós. A empresa Equipesca também doou uma rede de arrasto de 22 metros. A nova embarcação recebeu o mesmo nome da jangada: “Menino Deus”. Os pescadores ainda receberiam uma ajuda em dinheiro, de NCr$ 2.000,00 (equivalente a R$ 40 mil nos dias de hoje), angariado pela esposa do governador, Maria do Carmo Mellão de Abreu Sodré, junto a amigos, em retribuição à jangada presenteada e que acabou doada ao Museu de Pesca de Santos.

Os jangadeiros ganharam de presente um novíssimo barco pesqueiro. Os pescadores aceitaram de bom grado, mesmo que a embarcação fosse algo muito aquém das necessidades da Colônia de Mucuripe. Era visto mais como um “prêmio-consolação”. Foto: A Tribuna de Santos

Decepção

“Nem 30 barcos desses dariam conta das nossas necessidades, mas assim mesmo está bom. O que nós pretendíamos era mesmo contar ao presidente Costa e Silva que a gente que manda na pesca lá no Ceará só trata com os homens engravatados. De nós eles nem querem saber. Viemos para São Paulo para pedir ao governador Sodré financiamento para os barcos da nossa Colônia, de Mucuripe. O barco que ganhamos aqui só dá pra nós cinco pescarmos lagostas. Outros peixes não dão! E os outros mais de quatro mil pescadores?”

Porém, a esperança ainda se mantinha viva no coração dos jangadeiros.

Barco novo transportado de navio

O novo “Menino Deus” foi para Fortaleza no convés do navio cargueiro “Rio Jaguaribe”, do Lloyd Brasileiro

O barco pesqueiro “Menino Deus” já devidamente instalado no convés do navio “Rio Jaguaribe”, da Lloyd Brasileiro. Foto: A Tribuna de Santos