Santos, domingo, 14 de julho de 1918. Apesar do relativo frio que pairava sobre a cidade santista, muitas eram as pessoas que desfrutavam suas manhãs na bucólica Praça dos Andradas, o primeiro parque público da cidade e um de seus principais pontos de lazer. O lugar se enchia de gente, principalmente após as missas matinais que aconteciam nas igrejas do Rosário e São Francisco de Paula. Em meio ao belíssimo jardim de árvores frondosas, riachos, lagoas, cascatas, viveiros de pássaros e bancos de repouso, circulavam casais de namorados, pais e filhos e grupos de amigos. E, à caça de oportunidades perante esta massa humana, estavam os lambe-lambes, os peculiares fotógrafos que começaram a surgir em Santos no finalzinho do século 19, quando da popularização da fotografia.
Ao mais discreto olhar curioso de um potencial cliente, o fotógrafo aproveitava a oportunidade para lançar sua propaganda: Uma foto para enfeitar a sala ou mandar a um parente querido? Aqui você tem por apenas 200 réis! Quase sempre dava certo.
O mote desses profissionais era oferecer uma alternativa acessível para quem desejasse eternizar sua imagem num retrato, em contraponto aos trabalhos realizados pelos estúdios fotográficos, bem mais pesados aos bolsos populares.
Desta maneira, vários desses trabalhadores da fotografia ocupavam, em especial, os pontos de maior aglomeração, caso da Praça dos Andradas ou o entorno da Fonte do Itororó, também bastante frequentada aos finais de semana, em especial por famílias em busca de lazer e descanso.
Avançando para a orla
A partir da década de 1920, com a ocupação mais frequente da região praiana, e a exploração do seu potencial turístico, os lambe-lambes também para lá se dirigiram e prosperaram. Essa ocupação, entretanto, foi permeada por disputas acirradas entre os fotógrafos urbanos. Não era raro testemunhar verdadeiras batalhas pela atenção dos clientes, e na base dos gritos, em particular nos melhores trechos da orla, como o Gonzaga, o Boqueirão e o José Menino, considerados os “filés-mignons” das praias.
Cartões postais
Muitos dos trabalhos executados pelos lambe-lambes recebiam um acabamento especial, depois de revelados, possibilitando a postagem pelos correios, o que incrementou ainda mais o negócio. Boa parte da memória fotográfica das cidades brasileiras se deve ao trabalho laborioso dos retratistas de rua. Em Santos, diversas imagens das décadas de 1910 a 1970, até hoje preservadas, são frutos do trabalho desses profissionais.
Retratos de uma sociedade
O mais interessante do resultado iconográfico produzido pelos lambe-lambes é o fato dele propiciar a avaliação das mudanças dos costumes da sociedade. É possível literalmente viajar no tempo e observar como mudaram os modos de se vestir, pentear, maquiar e de portar-se nos momentos de lazer, como na praia e em festas populares como o Carnaval. Os postais lambe-lambe também deixaram registradas a evolução urbana e dos transportes, em especial de automóveis. Diversas imagens produzidas pelos fotógrafos de rua mostravam seus clientes posando ao lado de carros, charretes ou bicicletas.
Mas, acima de tudo, o retratista de rua, o saudoso lambe-lambe, esse importante personagem da história, nos deixou de maior valor uma fração do tempo de nossos avós e bisavós, para que pudessemos, através desta janela mágica, revelar nossos mais belos sentimentos de saudosismo e respeito pelas boas práticas do passado.
Por que lambe-lambe?
Segundo estudiosos do assunto, há mais de uma versão que aponta a origem para o apelido desses fotógrafos de rua. Uma delas explica que eles lambiam as chapas de metal ou de vidro (os negativos da época) tanto para acelerar os processos de revelação, de fixação (devido ao cloreto de sódio que compõe quimicamente a saliva) ou de secagem, como também para identificar a textura do lado emulsionado com gelatina, que eram manipuladas no escuro do interior das máquinas-caixão. Em uma segunda versão, a saliva era usada para dar brilho ao positivo revelado ou então para simplesmente limpar as lentes das câmeras fotográficas. Há também a tese de que os fotógrafos ambulantes passavam a lingua nas chapas de vidro a fim de possibilitar a identificação do lado que estava emulsionado, permitindo que se definisse a sua posição correta no interior da câmera a fim de sensibilizar o negativo. O lado mais áspero, e que “colasse” na língua (causando maior atrito), denunciava a camada da emulsão, praticamente imperceptível a olho nú. Assim, o termo foi relacionado ao hábito de o fotógrafo lamber essas placas de forma constante. Ao longo dos anos, e diante dos avanços tecnológicos, este procedimento foi sendo descartado, mas o apelido já estava “fixado”.