Santos, 7 de setembro de 1922, 16 horas. A cidade estava em absoluto júbilo, em razão das comemorações oficiais pelo primeiro centenário da Independência do Brasil. Desde as primeiras horas da manhã daquela quinta-feira histórica, os santistas celebravam com todo vigor e entusiasmo a data máxima da nacionalidade, obedecendo um roteiro de cerimônias jamais visto na terra de José Bonifácio de Andrada e Silva, o grande homenageado do dia. A cidade havia realizado uma missa campal, logo pela manhã, e recepcionado o presidente do Estado de São Paulo, Washington Luiz, que viera da capital especialmente a Santos para as comemorações. A partir das 14 horas, então, iniciou uma série de inaugurações, começando pelo majestoso monumento em louvor aos irmãos Andradas, instalado na novíssima Praça da Independência, no Gonzaga. Na sequência, as autoridades do Estado abriam pela primeira vez as portas do imponente prédio da Bolsa Oficial de Café. Uma hora depois, reta final da tarde, foi a vez de descortinar aos santistas e brasileiros, um outro monumento de grande valor e relevância históricos, que glorificava de forma justa o inigualável padre santista Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o precursor da navegação aérea mundial. E a festa não poderia ser mais digna e significante, honrando sua memória.
O local escolhido para abrigar o conjunto escultórico produzido brilhantemente pelo italiano Lorenzo Massa (o mesmo que havia construído o monumento de Braz Cubas, inaugurado em 26 de janeiro de 1908) foi o Largo do Rosário (atual Praça Ruy Barbosa). E ali, naquele espaço nobre da cidade, as mais de mil pessoas que se aglomeravam no seu entorno festejavam a grande conquista, sem imaginar o périplo que foi erguer o monumento do padre “voador”, numa jornada que se iniciou quinze anos antes.
A origem
A história do monumento em homenagem a Bartolomeu de Gusmão nasceu durante a sessão da Câmara Municipal de Santos, de 8 de maio de 1907. Durante as indicações, o vereador Estácio Corrêa, encaminha um termo pleiteando a justa homenagem: “Atendendo que é um dos deveres do poder público, como órgão da sociedade, concorrer para a glorificação dos homens ilustres, cuja vida foi voltada ao bem da humanidade, e de cujo esforço nasceram ideias de incontestável influência em nossa evolução; que essa glorificação em perpetuar-lhes a memória é imposta pelas leis da solidariedade, e pelos princípios da nossa gratidão tanto mais cívica quanto parte do seio do povo que teve a honra de o ter como conterrâneo. Atendendo que a justiça dessa glorificação está sendo reclamada por órgãos da imprensa na capital da República, em Santos é que a ideia não ficará alheia à população dessa cidade, cujo patriotismo tem sido demonstrado”. na sequência, o vereador completa: “Apresento a seguinte indicação: Fica o poder executivo municipal autorizado a contratar oportunamente a elevação da estátua de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, numa das nossas principais praças públicas e aberto o respectivo crédito até a quantia de 20 contos de Réis. A câmara municipal concorrerá com a sua dedicação para realização e brilhantismo das festas públicas que porventura se realizarem em favor desta ideia. Sala das sessões. 8 de maio de 1907. Assino: Estácio Correia, Augusto Filgueiras, Heitor Guedes Coelho, Francisco Hayden, Raymundo Soter de Araújo e Cincinato Martins Costa.”
No mês seguinte, durante a sessão de 5 de junho de 1907, foi o parecer das Comissões Reunidas posto em discussão e aprovado, havendo apenas três votos contrários, que opinavam pelo adiamento da homenagem a Bartolomeu de Gusmão para mais tarde. (Parecer nº 117, de 28 de maio de 1907). Logo a seguir a Câmara Municipal de Santos votaria o projeto, e foi aprovado.
Alfaya entra no jogo
Na teoria, tudo estava pronto. Mas era preciso que surgisse um homem de ação, prático, que não deixasse morrer o empreendimento. Este era o comendador João Manuel Alfaya Rodrigues, que já vinha trabalhando pela confecção de outra estátua, dedicada ao fundador de Santos, Braz Cubas. No final daquele ano de 1907, Alfaya aproveitou sua ida à Itália, onde tratava com o escultor genovês Lorenzo Massa sobre o monumento de Cubas, que estava pronto e prestes a ser embarcado de Gênova para Santos, para lhe comunicar sobre a nova e futura demanda. Massa era o artista ideal para a obra. Era um dos escultores mais reputados da Itália, tendo peças espalhadas em seu próprio país, mas também na Inglaterra e Argentina. Para completar, o genovês era ainda mestre da Academia de Belas Artes da Itália.
Porém, tanto Massa quanto Alfaya estavam concentrados na conclusão do monumento de Braz Cubas (que seria inaugurado em janeiro de 1908) e, portanto, deixaram as tratativas sobre Bartolomeu esfriarem um pouco. Para complicar, o italiano acabou assumindo na frente uma outra encomenda para a terra santista: a herma de Xavier da Silveira. O projeto Bartolomeu foi, consequentemente, colocado na gaveta.
Glorificação Mundial empurra o projeto
Em 1912, o nome do santista Bartolomeu Lourenço de Gusmão voltou a correr de boca em boca no Velho Mundo. A aviação era pauta, havia alguns anos, das principais rodas científicas e o nome do “padre voador” era consenso quando se tratava de apontar o homem que pensou primeiro no sentido da “navegabilidade aérea” e inventar algo que provasse tal possibilidade. Na cidade de Toledo, Espanha, onde o famoso santista morreu e estava sepultado, uma grande homenagem fora realizada, com a colocação de uma lápide no sítio onde jazia seus restos mortais: “En este templo de San Roman Martyr, reposan los restos de D. Bartholomé Lorenzo de Gusmán, presbítero português, nascido em la ciudad de Los Santos, Brasil, ano 1685, primer inventor de los aerostatos. Faleció en esta capital el 19 de noviembro de 1724. La ciudad de Toledo le dedica este recuerdo“.
Na mesma época, o Aeroclube Português, com a anuência da Câmara Municipal de Lisboa, Portugal, também descerrou uma placa comemorativa ao padre santista, posta na Esplanada do Castelo de São Jorge, com os seguintes dizeres: “Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Ao sábio português ilustre, que primeiro que nenhum outro realizou, em 1709, a genial ideia do aero navegador, elevando-se em balão na praça das armas do Castelo de São Jorge. Honra – Renome – Glória. Desta lápide comemorativa, recordando aos pósteros o arrojado invento. Glória também à Nação Portuguesa. Teve a iniciativa o Aeroclube Português, sendo a sua inauguração deliberada pela Câmara Municipal de Lisboa. Realizada em 8 de agosto de 1912.”
França se rende ao gênio
Em Paris, a então capital mundial da tecnologia e inovação, eruditos e investigadores de arquivos iniciavam uma ampla divulgação dos feitos do padre santista, que era tido até o final do Século 19 como uma espécie de “lenda”. A invenção da “passarola” de Gusmão foi tratada como uma autêntica prova do ineditismo da navegabilidade aérea. Os franceses, que vinham revelando ao mundo a evolução de suas invenções aeronáuticas, a partir de 1783, reconheciam o feito de Bartolomeu realizado em Lisboa no ano de 1709.
Em 8 de agosto de 1912, como parte das comemorações ao 203º aniversário da ascensão da Passarola, a Academia Aeronáutica Bartolomeu de Gusmão (criada em Paris) promoveu um jantar festivo no Luna Park, contando com a presença dos maiores vultos da ciência e das letras parisienses. Coincidentemente estava de passagem pela “Cidade Luz” o vereador santista Manoel Alfaya. Ele ficou absolutamente encantado diante das manifestações de apreço e admiração ao padre Bartolomeu, seu conterrâneo. Durante os discursos, o comendador Alfaya aproveitou a distinção para agradecer em nome dos santistas a brilhante homenagem e garantiu que a cidade natal de Gusmão estava providenciando um monumento à altura de sua memória.
Imediatamente várias entidades presentes se mostraram interessadas em contribuir para a viabilização do empreendimento. A Academia Aeronáutica Bartolomeu de Gusmão, promotora do evento, por interferência direta do Visconde de Faria, seu presidente, destinou a quantia de 25 mil francos para a perpetuação da glória do primeiro “nauta do azul”. Igual procedimento teve o Aeroclube de Portugal, que doou 10 mil francos.
Falta de recursos atrasou a obra
Apesar de ter havido uma conversa com Lorenzo Massa ainda em 1907, dois anos depois o então prefeito de Santos, Coronel Vasconcelos Tavares, chegou a iniciar tratativas com a escultora paulista, Dona Nicolina Vaz, para empreender a obra. Contudo, questões de ordem financeira atrapalharam a negociação e o plano com o genovês voltou à mesa, embora tenha se arrastado por anos, também por questões de verba. Massa foi contratado e seu trabalho levou alguns anos para ser concluído, uma vez que a obra avançava à medida da entrada de dinheiro. Em 1915, por exemplo, a Câmara Municipal reservou 10 contos de réis no orçamento municipal para ereção da estátua (artigo 22 da Lei Orçamentária de 1914).
À medida que chegava o ano do Centenário da Independência, as comissões formadas para fiscalizar a apoiar a ereção do monumento chegaram a conclusão de que seria mais proficiente aproveitar os festejos dos 100 anos, e os recursos que giravam em torno da festa, para concluir o que faltava da obra do padre “voador”. E assim foi. Lorenzo Massa conseguiu adquirir o material que faltava e antes mesmo de virar o ano de 1921 para 1922, o monumento estava praticamente pronto.
Praça Mauá ou Largo do Rosário?
Diante da iminência real de sua inauguração, faltava apenas definir qual espaço da cidade instalar o monumento. O plano inicial da municipalidade era colocá-lo em um dos ângulos da Praça Mauá, que já vinha sofrendo reformas de embelezamento. Porém, a ideia sofreu resistência, alegando-se que naquele espaço a obra de arte não estaria “valorizada” e que melhor solução seria dispô-la no centro do local, onde ficaria destacada em toda sua majestosa concepção estética. Mas essa decisão ensejaria a supressão de algumas árvores vetustas, plantadas no coração da praça. Foi então que surgiu a ideia de fazer uma troca, retirando a herma de Xavier da Silveira, de pequeno tamanho, do centro do Largo do Rosário (atual Praça Ruy Barbosa), e instalando-a na Praça Mauá. Assim, Bartolomeu ocuparia seu lugar no Rosário, onde havia espaços mais vistosos.
Peças chegam à Alfândega
As peças que comporiam o monumento a Bartolomeu de Gusmão chegaram ao porto de Santos em 21 de junho, a bordo do vapor italiano “Córdoba”, que partira de Gênova pouco mais de um mês antes. As partes da obra vieram acondicionadas em 111 caixas e estavam a cargo do Sr. Giuliano Molinari, assistente de Lorenzo Massa e membro da Sociedade Italiana de Esculturas. O escultor chegaria três dias depois, no vapor “Giulio Cesare”, trazendo as peças restantes, entre as quais os quatro candelabros que serviriam para iluminar o monumento.
Pedra fundamental com heróis aviadores portugueses
É muito provável que o monumento de Bartolomeu de Gusmão não tivesse uma cerimônia de deposição de pedra fundamental, uma vez que a obra já estava pronta para ser montada no Largo do Rosário em 1922. Contudo, em razão da visita dos grandes heróis aviadores portugueses, Sacadura Cabral e Gago Coutinho (eles protagonizaram a primeira travessia aérea sobre o Oceano Atlântico, entre a Europa e a América do Sul, ocorrida entre 30 de março e 17 de junho daquele ano) à cidade de Santos em 12 de julho, as coisas mudaram de figura. Assim, como forma de celebrar o grande feito lusitano, os santistas decidiram realizar uma cerimônia belíssima, relacionando a identidade de Bartolomeu de Gusmão, como o precursor da navegabilidade aérea, ao espírito desbravador de Coutinho e Cabral. O 12 de julho foi um ensaio à grande festa que seria a inauguração (prevista para o dia 7 de setembro), comparecendo aos arredores do Largo do Rosário mais de três mil pessoas, que saudavam os bravos portugueses de forma entusiasmada. Coube o discurso ao vereador José de Freitas Guimarães, que exaltou as figuras dos visitantes e os laços do povo santista com os portugueses. “Chegastes a Santos quando deveriam chegar, quando era aqui indispensável a vossa presença. Chegastes a esta cidade precisamente quando ela, com o seu amor de mãe que não se esquece dos filhos, prepara esta praça para nela erguer o monumento a Bartolomeu Lourenço de Gusmão, ao filho que deu à luz em 1685“. Ao final, lavrou-se uma Ata da Cerimônia e foi feito uso de uma pá cerimonial para assentar a pedra fundamental da obra de Lorenzo Massa.
Enfim, a inauguração
Quinze anos depois de ter sido pensada, finalmente os santistas inauguravam o monumento em homenagem a Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o homem que inventou um instrumento de navegabilidade aérea, o balão. A cerimônia aconteceu no dia 7 de setembro de 1922, e fez parte dos eventos alusivos ao Centenário da Independência do Brasil. Por conta dos compromissos agendados para a Serra do Mar, o presidente do Estado de São Paulo, Washington Luiz, não pode estar presente, mas foi representado pelo deputado Antônio da Silva Azevedo Júnior. Estavam presentes o prefeito Coronel Joaquim Montenegro, o presidente da Câmara Municipal, Benedito de Moura Ribeiro, o vice-cônsul de Portugal, Ribeira de Mello, entre outras autoridades.
Duas bandas de música abrilhantaram a festa: a do Instituto Escholástica Rosa e a do Corpo de Bombeiros. Às 16 horas em ponto, foi descerrado o pano que cobria a obra de arte de Lorenzo Massa. A multidão presente irrompeu o silêncio com uma grande salva de palmas. Em seguida, discursou o comendador João Manuel Alfaya Rodrigues, falando em nome da comissão executiva que viabilizou o empreendimento. Enfim, o padre “voador” ganhava a sua justa homenagem na terra natal. Santos, mais uma vez, orgulhava-se de um de seus grandes filhos.
O monumento
O monumento dedicado ao padre santista Bartolomeu Lourenço de Gusmão foi confeccionado com granito lucidado, partindo do pedestal um obelisco. Sobre uma das laterais, feitos em bronze, estavam livros e aparelhos de física circundados por um festão de louros e o emblema da glória. Na parte fronteira, assenta a figura, em bronze, tamanho natural, do Padre Bartholomeu; no côncavo do obelisco, é possível ver o balão “Globo”, em bronze, no momento da ascensão. Do lado posterior do pedestal, o busto em bronze do rei Dom João V, grande amigo de Bartolomeu e responsável pelos recursos pecuniários que garantiram a construção do aparelho e também que lhe facilitaram a fuga de Lisboa, quando Bartholomeu passou a ser perseguido pela Inquisição.
No cimo do obelisco vê-se o alvará, em bronze, com os dizeres do privilégio que o Rei lhe concedeu pelo seu invento. Na parte lateral do pedestal está esculpido um quadro em baixo relevo que representa o Castelo de São Jorge, a Casa da Ilha e o Terreiro do Paço de Lisboa, além da imagem do Padre Bartolomeu descendo no seu primeiro aparelho “A Naveta”.
Do outro lado do pedestal, há outro quadro, também bronze e em baixo relevo, que representam o “Trocadeiro”, de Paris; a Torre Eiffel, a “Mademoiselle”, dando a volta à torre, e o busto de Santos Dumont, o brasileiro conterrâneo quem proveu direção à navegação aérea, prosseguindo na invenção de seu compatriota.
Por baixo do busto do rei D João V, havia uma homenagem prestada pela Câmara à Academia Aeronáutica Bartholomeu de Gusmão, de Paris; ao Aeroclube de Portugal e ao Aeroclube brasileiro. No corpo do Monumento constavam, também, dizeres e dedicatórias.
O monumento possui altura de 9 metros. No pedestal foi colocado também uma placa em bronze, com os retratos de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, conforme indicação feita por Alfaya Rodrigues, aprovado em sessão da Câmara.