No final de 1958, o encontro de duas gerações vitoriosas do Santos FC

Em 1958, o Santos Futebol Clube, o mais importante clube futebolístico da cidade, conquistava seu quarto título paulista. Mas aquela não fora uma conquista qualquer. O escrete alvinegro de Vila Belmiro praticamente massacrou todos os adversários, anotando um recorde em número de gols: 148, em apenas 38 jogos (uma média de 3,8 por partida). O menino Pelé, então com 17 anos de idade, tornava-se artilheiro com a impressionante marca de 59 gols, em 33 jogos (1,7 gol em média). A performance santista ganhou destaque na imprensa brasileira e mundial. A popular revista O Cruzeiro abordou o feito do time peixeiro e, de lambuja, produziu um encontro histórico, entre os “Meninos da Vila de 1958” e os “Meninos da Vila de 1927”. É um texto que não pode deixar de ser lido pelos que admiram a história do clube alvinegro e do próprio futebol brasileiro, pelas peculiaridades apresentadas.


 

DE FEITIÇO A PELÉ, TRINTA ANOS DE GLÓRIAS

O Santos de 1958 repete o feito de 1927 – Defesa menos vazada e ataque recordista: 143 gols

Reportagem de Neil Ferreira, George Torok e Ronald de Moraes

A maneira com que o Santos F.C., campeão paulista de 1958, está se apresentando nos gramados não é, positivamente, a de um quadro comum de futebol. Mas de um circo, O circo da Vila Belmiro, do qual Pelé, Pagão e Pepe são a marca registrada e os maiores astros. Em 38 jogos perdeu 3, empatou 6 e ganhou o resto de goleada, conseguindo impingir ao Corinthians (um dos maiores clubes do Brasil) a sua maior derrota dos últimos anos, os memoráveis 6×1.

Dorval é carregado em triunfo pelos santistas em Campinas, ao final do jogo que deu o troféu de campeão de 1958 ao time praiano.

A sua defesa sofreu somente 40 gols e o ataque marcou 143, recorde absoluto dos certames profissionais brasileiros. Somente a ala esquerda, Pelé e Pepe, marcou sozinha mais gols do que todos os outros times do campeonato, exceção feita à Portuguesa de Desportos. E a marca de fábrica dos “Demônios da Praia” – o trio Pagão, Pelé e Pepe – assinalou, durante o campeonato, mais gols do que todas as outras equipes.

Em Campinas, no estádio do Guarani, o Santos F.C. iria decidir o campeonato, duas semanas antes do término do mesmo. Das trinta mil pessoas que lotavam o estádio, pelo menos vinte mil tinham vindo da cidade de Santos para torcer pelo seu clube. Um empate bastaria para garantir o título, tal era a diferença que separava o Santos F.C. do segundo colocado na tabela, o São Paulo F.C.  O Santos entrou em campo e começou a jogar como sabe. Isto é, a dar “show”. O ataque dos 143 gols começava a funcionar e a defesa menos vazada do certame dominava todas as ações. Pelé marcou o primeiro, o segundo e o terceiro da série de sete com que o Santos carimbou o Guarani. A bandinha “peixeira” começou a tocar, a torcida invadiu o gramado e carregou seus ídolos. Para coroar, uma enorme faixa foi aberta: “Nunca foi tão fácil ganhar um campeonato”.

A revista O Cruzeiro reuniu, na Vila Belmiro, os “meninos” de ontem e de hoje. Encontro de “cracks” de 2 gerações.

Quando a equipe do Santos F.C. de 1927, que há 31 anos atrás assombrava as plateias esportivas, pisou na última terça-feira o gramado de Vila Belmiro, não parecia, absolutamente, um grupo de provectos senhores cinquentões e barrigudos.  Ao contrário, assemelhava-se muito mais a um bando de garotos lépidos no início de uma pelada. Athiê, o goleiro de ontem e hoje o dinâmico presidente do clube, correu imediatamente para as traves. Bilu, respeitável funcionário da Recebedoria de Rendas, foi para o bico da área e espichou o dedo:

– Não sei se foi bem neste lugar que a canela de um cara virou farelo.

Davi, de terno branco, o carimbo do Levante na cabeça chata e no nariz adunco, gordo e sorridente, apontou a arquibancada:

– Aquilo ali era tudo fechado com zinco. Nós mesmos fizemos o trabalho!

Júlio, calvo como uma bola de bilhar, reclamava:

– Me deixem pegar numa bola que eu mostro o que é bom para o Zito!

Hugo, o “Espanador da Lua”, alto funcionário do IBC (Instituto Brasileiro do Café), puxou o repórter para um lado:

– E aqueles cinco vagabundos que a gente, nós aqui da defesa, carregávamos nas costas, onde estão?

O “meninos”do Santos FC de 1927, posando na Vila Belmiro, durante o encontro com o peixe campeão de 1958: No alto, da esquerda para a direita: Júlio, Hugo, Bilú, Athiê, David e Guilherme Gonçalves. Agachados: Siriri, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista. Era uma verdadeira máquina de fazer gols: 114, em 18 jogos.

Hugo refere-se a Siriri, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista, o arrasador ataque santista que, num campeonato de 18 jogos, marcaram 114 gols, estabelecendo a média recorde de 6,6 gols por partida, sendo que somente Feitiço e Araken fizeram 78 dos gols, mesmo deixando de disputar quatro jogos. Mas eles logo iriam aparecer. Araken viajara especialmente para Brasília para reencontrar seus companheiros, Siriri deixara a sua firma em São Paulo e viera para conversar com Guilherme Gonçalves, o presidente de 1927, e Feitiço estava lá. A turma da “pesada”, a defesa antiga, estava lá no fundo do gramado sacudindo a banha em grandes risadas e gostosas recordações, quando o ataque entrou, com a sua formação habitual. Isto é, o venenoso Siriri, baixinho, gordinho, puxando a fila e falando mal de todo mundo:

– Quem me vê entrar ao lado destas peças de museu – apontou para os companheiros – vai pensar que eu sou velho. Mas não é nada disso. Ainda sou bem capaz de correr uns três ou quatro metros sem ter uma trombose. Velho é o Feitiço. Espia só. Quando ele ri parece que sai teia de aranha da sua garganta.

Logo atrás, o irmão de Siriri, o Camarão. Mais baixinho ainda, mais gordinho, vermelho e calado.

– Os da velha guarda dizem que para a gente imaginar o Camarão dentro do campo tem de somar o Zizinho ao Jair.

Camarão dá uma olhada em volta e comenta, apontando os companheiros:

– Porque estes velhos não estão num asilo?

Todo mundo explode em gargalhada. Era a primeira piada que o Camarão dizia em 31 anos. Junto, vinha Feitiço, uma lenda dentro do futebol brasileiro. Em média de gols, por partida, ele tem um recorde que ainda está em pé: 3,2, totalizando 46 tentos em 18 jogos. Monstruoso, alto e forte, destaca-se dos demais, abaixa-se, arranca um pouco de grama e vira-se para o Hugo:

– Lembra-se da dificuldade que foi gramar o campo pela primeira vez?

E cala-se, pensativo. Depois vem o Evangelista. Calado, magro, procura omitir-se de tudo. E por último, trazido pelo ex-presidente Guilherme Gonçalves, rijo, olha para o lugar do médio-esquerdo. As suas mãos firmes de cirurgião tremem. Sua voz está embargada pela comoção:

– Falta o Alfredo.

O grupo fica em silencio. Começa a chover.

Mas do outro lado aponta o esquadrão campeão de 1958, o Santos Futebol Clube de hoje. Na frente, o técnico Lula, seguindo-o vem Manga, Laércio, Getúlio, Dalmo, Ramiro, Zito, Urubatão, Dorval, Afonsinho, Pagão, Pelé e Pepe. Só não está o mestre Jair. Sua mãe adoecera e ele seguira para Barra Mansa.

Os “Demônios da Praia”, de ontem e de hoje, da esquerda para a direita: Dorval, Siriri, Afonsinho, Camarão, Pagão, Feitiço, Pelé, Araken, Pepe e Evangelista. Os dois ataques totalizaram duzentos e cinquenta e sete tentos, em dois campeonatos (1927 e 1958). A revista “O Cruzeiro” os reuniria pela primeira vez.

Era outro esquadrão recordista: assinalara 143 gols num campeonato profissional, número nunca igualado no Brasil. Vinha também Pelé, o Deus Negro do futebol brasileiro, com 58 gols, recorde absoluto dos certames profissionais. Era o Santos de hoje que, de maneira singela, iria homenagear o Santos de ontem, aquele mesmo Santos que conseguira o título de “Campeão da Técnica e Disciplina”, o mesmo Santos que cercara e gramara, com as suas mãos, o estádio de Vila Belmiro.

Estavam, pois, reunidas as duas maiores equipes que o futebol brasileiro já conhecera. Separavam-nos, 31 anos. Unia-os o amor à camisa. Guilherme Gonçalves separa-se do grupo. Emocionado, finge limpar um cisco nos olhos. Desvia o rosto do olhar do repórter e comenta:

– É o Santos de sempre!

Mais adiante, Siriri pega Dorval pelo braço:

– Você precisa ser menos individualista.

Camarão chama Afonsinho, acariciando-lhe os cabelos:

– Continue assim.

Feitiço, enorme, ao lado de Pagão, confia-lhe:

– Nós dois jogamos de maneira diferente. Mas tome cuidado, não admita que lhe metam o pé dessa maneira.

Araken junta-se a Pelé:

– Menino, o que eu poderia aconselhar a você?

Evangelista aposta com Pepe para ver quem fala menos. Empatam. Ficam mudos como dois peixes.

Mas a opinião dos antigos é unânime: Pelé é o ídolo! Feitiço se adianta e diz:

– É o maior jogador de futebol que conheço.

Athiê, o goleiro de ontem e presidente de hoje, no entanto, faz uma ressalva:

– Só que não marca gol de longe!

 

Feitiço e Pelé, em 1958. Encontro de duas lendas.

PELÉ, O FEITIÇO DO PRESENTE, ENTREVISTA, EM SANTOS, FEITIÇO, O PELÉ DO PASSADO

Pelé, o Deus Negro do futebol brasileiro, e Feitiço, o Luiz Mattos, do Santos FC de 1927, são os dois maiores artilheiros que já passaram pelos nossos gramados. Ambos estabeleceram recordes que ficarão em pé muitos anos. Feitiço marcou 46 gols em 18 jogos, estabelecendo a média por partida que ainda não foi superada. Pelé fez 58 gols num único campeonato, estabelecendo um recorde que dificilmente poderá ser ultrapassado. Ambos estão separados por 31 anos e uma barriga, mas unidos pela camisa do Santos, que Pelé cobre de glórias e que Feitiço traz no coração.

Pelé conhecia Feitiço de nome. Quem não o conhecia? E, segundo manifestou ao repórter, sempre desejou conversar longamente com aquele que é ainda um grande ídolo e uma lenda dentro do nosso futebol. Disse Pelé:

– Eu tenho certeza de que ele poderia me ensinar muita coisa.

Foi quando apareceu a oportunidade. Os veteranos do Santos FC reuniram-se na Vila Belmiro e Pelé agarrou-se ao Feitiço. E entrevistou-o. À sua maneira. Feitiço também não se fez de rogado. O ídolo de ontem e o ídolo de hoje – ídolos de sempre – ferraram prosa que durou bem mais meia hora.

A primeira pergunta de Pelé a Feitiço foi engraçada:

– Como é que o senhor jogava futebol com todo esse corpo?

Feitiço passou o dedo pela carapinha de Pelé e sorriu:

– Bem, eu não tinha toda essa barriga, mas era bem grande. O meu jogo era um pouco diferente do seu. Ambos somos rompedores de defesas. Você somente rompe o sistema tático do adversário. Eu rompia o adversário.

Pelé arregalou os olhos e disparou outra pergunta, que tinha na ponta da língua:

– É verdade que o senhor marcava gols chutando de “bicão”?

Feitiço fechou os olhos e se pôs a pensar:

– Olha, meu filho, até cego marcava gol jogando ao lado do Camarão e do Araken.

Pelé sorriu e retrucou:

– Bem, eu também digo o mesmo, pois jogo ao lado do Pagão e do Jair.

Aí foi a vez do Feitiço perguntar:

– E como você faz para nunca repetir um gol, sempre marcando de maneira diferente?

Pelé fez cara de quem estava envergonhado. Baixou a cabeça, enfiou a mão no bolso e respondeu:

– Bem, o Jair e o Pagão também nunca dão dois passes iguais. Tenho de seguir a “escola”. Mas, se não me engano, quem faz as perguntas sou eu.   

Feitiço, então, arrastou Pelé para um canto, sentaram-se e a conversa continuou. Feitiço falava, falava, e Pelé ouvia, atento. De vez em quando fazia que sim, com a cabeça. Depois perguntava, e Feitiço respondia. Fizeram boa camaradagem.

Araken, Siriri, Zito e Davi assistiam de longe. Em dado momento, tentaram uma aproximação. Mas Pelé pegou Feitiço pelo braço e foram dar uma volta. Sozinhos, na arquibancada vazia, formavam uma dupla curiosa. Encarnavam, de maneira diversa, a volúpia santista pelo gol, o prazer de visitar as redes adversárias. Eram duas épocas diferentes do futebol. Mas duas épocas que ficarão vivas eternamente. Depois despediram-se e Pelé veio contar o que Feitiço havia ensinado:

– Bem, ele exagerou um pouco. Disse que eu sou completo, que não tem nada para me ensinar. Bobagem dele. Durante a conversa, alguma coisa sempre foi saindo. Primeiro, que a gente não pode se descuidar do físico. Depois ele me contou como se livrava dos adversários. Explicou também que eu devo tomar muito cuidado com as botinadas dos outros e fazer o que faço sempre. Isto é, sair do marcador da maneira mais difícil. Eles nunca esperam por isso. E descreveu algumas jogadas que me lembro de ter feito por puro instinto e explicou que aquela era a melhor maneira de se jogar futebol. O home é mesmo “fino”. Depois de falarmos bastante, ele perguntou quanto eu ganhava. Fiz as contas e calculei que neste campeonato, só neste, ganhara o equivalente a CR$ 15 mil por jogo. Então quem arregalou o olho foi ele. E contou que o maior “bicho” que recebera, durante seu tempo de jogador, foi um jantar e duas entradas para o cinema.

Com o título, cada atleta recebeu de prêmio o valor de Cr$ 150 mil (cruzeiros), o que equivaleria, em 2018, a cerca de R$ 240 mil.

Premiação pelo campeonato de 1958

Sem alarde e sem comemorações mais espalhafatosas, o Santos FC resolveu premiar com cento e cinquenta mil cruzeiros cada um dos seus jogadores pela conquista do titulo de 1958 (o equivalente hoje – 2018 – a cerca de R$ 240 mil).

Reunidos ao lado do busto erigido em homenagem a Urbano Caldeira, um dos iniciadores da glória santista, Athiê Jorge Cury, goleiro de 1927 e presidente de 1958, discutia com Modesto Roma, o “Banco do Brasil” da equipe santista, sobre como seria pago o prêmio. Foi quando aproximou-se Guilherme Gonçalves, presidente da grande equipe de 1927.

– Vocês vão pagar mesmo tudo isso de contos de réis a cada jogador?

Athiê sorriu.

– No nosso tempo não tinha isso. Mas agora as coisas mudaram muito.

O antigo presidente ficou pensativo. Abrangeu com o olhar as modernas arquibancadas da Vila Belmiro, espiou o ritmo acelerado com que se processavam as novas obras e puxou Athiê para um lado.

– Quem diria que aquele nosso time iria crescer tanto assim. E dizer que nós mesmos cercamos o Estádio e plantamos a grama. Era esse o nosso prêmio: pegar um martelo e ir pregar as cercas, puxar um rastelo e plantar grama. Mas eram os bons tempos do amadorismo.

Athiê ficou calado e Guilherme Gonçalves prosseguiu:

– Lembra-se do nosso Santos de “casaca e luvas brancas”, aquele das atitudes verticais? Pois sinto que renasce. Embora eu não consiga entender o profissionalismo.

Athiê tentou responder, mas fez um gesto largo. Ele também era do tempo de ouro do amadorismo. Pegou num canto do alambrado e apontou:

– Eu também construí aquele pedaço. Mas esta equipe atual, vale ou não vale o prêmio?

Guilherme Gonçalves não respondeu.