O castelo da Ana Costa

Há 100 anos, era colocada a pedra fundamental de uma das edificações mais belas da cidade.

Santos, 23 de agosto de 1925. Era um domingo festivo, com o sol de inverno aquecendo suavemente a cidade santense, como se também quisesse participar da alegria que tomava conta do terreno de número 285 da avenida Ana Costa. O burburinho de vozes, o colorido das vestes e o brilho de instrumentos  musicais davam o tom de que ali, no futuro breve, seria erguido o lar definitivo de uma obra que já nascera com vocação para acolher.

A expectativa era enorme, uma vez que aquele momento representava o fruto de uma luta coletiva da sociedade santista em prol das crianças mais necessitadas. Tratava-se de um capítulo importante de uma história iniciada em 5 de agosto de 1902, quando a professora Eunice Peregrino Caldas fundou a Escola Maternal “Anália Franco”, simultaneamente à criação do Liceu Feminino Santista, ambos voltados a oferecer acolhimento e instrução a crianças em situação de vulnerabilidade.

Vinte anos mais tarde, diante da iminência de encerrar suas atividades, a instituição foi resgatada por um grupo de cidadãos santistas mobilizados por Ibrahim Nobre, que reorganizaram a obra e criaram oficialmente a Associação Creche-Asylo “Anália Franco”, com estatutos aprovados e diretoria eleita. Poucos dias depois, em 29 de junho de 1922, a população demonstrou seu apoio em um evento beneficente promovido por jovens esportistas da cidade.

O esforço coletivo e a mobilização social resultaram, poucos anos depois, na conquista de uma sede própria. Desta forma, em 23 de agosto de 1925, a entidade instalou-se oficialmente em seu primeiro prédio, na Avenida Ana Costa, 285 — marco simbólico de estabilidade e continuidade para uma obra que se tornaria referência em assistência social e educação na cidade.

O evento de lançamento da pedra fundamental

Na tarde de 23 de agosto, uma multidão ocupou o espaço reservado para a solenidade de lançamento da pedra fundamental do primeiro edifício próprio da Associação Anália Franco. O evento reuniu autoridades civis, religiosas e militares, além de representantes da imprensa e de entidades diversas.

A cerimônia teve início às 14 horas, ao som da Banda Municipal do Corpo de Bombeiros — cedida pelo vice-prefeito em exercício, Arnaldo Ferreira de Aguiar —, acompanhada pela Sociedade Musical Colonial Portuguesa e pelo Instituto D. Escolástica Rosa. Meia hora depois, as autoridades chegaram, recebidas em alas formadas pelas crianças assistidas pela instituição. Entre os presentes estavam o bispo de Santos, D. José Maria Parreira Lara; o capitão Tenório de Brito, representando o presidente do Estado; Stockler de Lima, delegado do vice-prefeito; além de cônego Ângelo Rezende, juízes, parlamentares e lideranças comunitárias.

O discurso principal coube ao advogado e orador Ibrahim Nobre, que resgatou o histórico recente da instituição. Ele lembrou que, havia apenas três anos, o asilo atendia pouco mais de oitenta crianças em situação de extrema carência, à beira do fechamento. A reorganização promovida em 1922, com apoio de autoridades, empresas e benfeitores, deu novo fôlego à obra. Nobre citou nominalmente figuras como o senador Azevedo Junior, o deputado César de Vergueiro, a Companhia Docas, a Estrada de Ferro Inglesa e colaboradores anônimos.

O orador destacou a fé como força motriz para a concretização do projeto e evocou a memória de Anália Franco, inspiradora da obra, afirmando que seu espírito seguia presente na missão de acolher e educar crianças.

Após o discurso, o bispo de Santos abençoou a pedra fundamental, acompanhado por padrinhos ilustres. Uma urna com jornais do dia e moedas correntes foi lacrada para registro histórico. A cerimônia foi encerrada com um brinde de champagne, enquanto telegramas de autoridades ausentes, como o prefeito Joaquim Montenegro, e novos donativos reforçavam o caráter solidário do evento.

O terreno onde foi erguido o edifício havia sid adquirido por meio de campanha comunitária, o que garantiu à associação um espaço próprio e adequado para suas atividades.

Uma visita especial

Em 1 de novembro de 1926, ainda em obras, o prédio recebeu a visita do então presidente da Republica, Washington Luiz, que ali descerrou uma placa lembrando o fato. As obras foram concluidas em meados de 1927. Em 25 de junho daquele ano, os educandos atendidos pela entidade foram transferidos da antiga sede, que ficava na Rua do Rosário (atual João Pessoa), 537.

Prédio do Educandário Anália Franco nos anos 1930, com a banda formada por seus alunos e internos.

De lá pra cá

Ao longo de sua história, o edifício recebeu usos variados, mas sempre ligados à educação e à filantropia. Nas décadas de 1920 e 1930, abrigou o núcleo principal do Educandário; na década de 1940, após a construção do Liceu de Artes e Ofícios no terreno vizinho, passou a exercer funções auxiliares e representativas. Entre 1926 e 1982, sediou o Grupo Escolar Dino Bueno, transformado depois em Escola Municipal Dino Bueno, função que manteve até 2002, tornando-se amplamente reconhecido pela população santista por esse nome.

De 2002 a 2012, abrigou programas municipais voltados à inclusão digital e tecnologia educacional, até ser desativado em 2013 por desacordos entre a prefeitura e a associação quanto ao uso e aluguel. Desde então, permanece sem função ativa, mas é protegido pelo Nível de Proteção 2 e integra a zona de amortecimento de bens tombados da era industrial santista.

Arquitetonicamente, o “Castelinho” se destaca pela imponência de sua fachada eclética, que constitui elemento fundamental do sentimento de pertencimento da comunidade, associada a memórias afetivas e educacionais de várias gerações. Por isso, propostas de restauro e ressignificação defendem a preservação de seu invólucro original, conciliada a adequações internas para novos usos culturais e educacionais.

Quem foi Anália Franco?

Anália Franco (1853–1919) destacou-se como educadora, escritora, jornalista e ativista social, deixando um legado marcante na assistência a crianças e mulheres em situação de vulnerabilidade. Nascida em Resende (RJ) e criada em São Paulo, formou-se professora e defendeu ideias inovadoras para a época, como a educação feminina, a igualdade de direitos e a profissionalização das mulheres.

Ao longo de sua trajetória, fundou mais de uma centena de instituições, entre escolas, creches, asilos e oficinas, muitas delas ligadas à Associação Feminina Beneficente e Instrutiva, criada por ela em 1901. Sua atuação também se estendeu à literatura e ao jornalismo, com livros didáticos, peças teatrais e artigos que abordavam educação, higiene, cidadania e emancipação feminina.

Figura à frente de seu tempo, combateu preconceitos e dedicou-se a causas filantrópicas até sua morte, em 1919, durante a pandemia de gripe espanhola.

 

Prédio da Associação Creche Asylo Anália Franco nos anos 1940.