Cábrea Sansão fez por 25 anos o trabalho pesado no cais santista
Porto de Santos, 10 de junho de 1951. A expectativa pairava no ar e a curiosidade dos presentes ao longo do cais era visível enquanto aguardavam ansiosamente o momento de testemunhar o desempenho do monumental monstro metálico. A Companhia Docas dava as boas-vindas a um guindaste flutuante incomum, especialmente em termos funcionais. Embora equipamentos similares (cábreas*) já estivessem em operação há alguns anos ao longo dos berços de atracação, realizando tarefas relacionadas à carga e descarga, bem como no processo de expansão do cais santista, as dimensões e capacidades excepcionais do novo equipamento eram algo inusitado (34 metros de comprimento, 18,5 de largura e 50 metros de altura). Não havia outro de tamanho comparável operando nos portos sul-americanos, o que tornava o gigante de Santos um verdadeiro pioneiro.
Seu teste inaugural consistia em erguer uma locomotiva de 80 toneladas e posicioná-la no convés de um cargueiro argentino. Operações como aquela eram altamente arriscadas, mas se intensificariam quando do incremento das exportações de trens e ônibus para outros países latino-americanos. O Porto de Santos, desse modo, desempenharia um papel crucial como o principal ponto de escoamento daquele tipo de produção industrial, bem como atuaria como a grande porta de entrada do país para cargas extraordinariamente pesadas. Por essa razão, o reforço titânico foi considerado de vital importância.
Aliás, Titan era o nome do único guindaste de elevada capacidade de carga que até então atuava no cais santista, mas era incapaz de enfrentar os desafios que se avizinhavam . Afinal, o novo guindaste mostrou a que veio, tornando o que seria dificultoso em algo completamente tranquilo. Em sua primeira ação, o “novato” ergueu a locomotiva como se fosse um brinquedo. Estupefatos, as testemunhas do fato aplaudiram a operação.
Batismo bíblico
Como o novo equipamento era flutuante, havia a necessidade de dar-lhe um nome de registro para o controle do Tribunal Marítimo Administrativo. Porém, ao invés de buscar inspiração na mitologia grega, como o Titan, o novo personagem metálico do porto santista foi batizado sob a luz da famosa figura bíblica conhecida por sua extraordinária força: Sansão. Mas a ideia não veio por um acaso. É que na época em que o guindaste foi encomendado junto aos estaleiros da Industricelle Handels Combinatie Holland, ao preço de 1,62 milhão de florins , o mundo se encantava com a superprodução hollywoodiana de Cecil DeMille, “Sansão e Dalila”, com Hedy Lamarr (Dalila) e Victor Mature (Sansão). A força descomunal do personagem, de fato, era algo que se “via” no sansão de metal. E com esse nome foi registrado em 26 de junho de 1951.
Capacidades
A cábrea Sansão atuou no porto de Santos entre 1951 e 199, operando com uma equipe de 12 tripulantes, entre operadores, marinheiros e comando. Durante os anos 1950 e 1960, suas atividades principais eram a movimentação de cargas pesadas. Com a introdução do uso de contêineres na década de 60, ela passou a ser utilizada na movimentação de unidades de 20 e 40 pés. Só a partir dos anos 1970 é que suas tarefas foram diminuindo, quando da chegada de guindastes terrestres de grande capacidade e alcance (de braço), encomendados pelas Docas para atender a demanda cada vez maior de tráfego e operações de carga e descarga.
Sansão “salva-vidas”
Em 1976, a Companhia Docas trouxe a cábrea “Pará”, com capacidade para 250 toneladas, tornado a Sansão a segunda em força. Foi o primeiro passo para a ressignificação de sua função. Nos anos 1980, já sob o comando federal da Companhia Docas do Estado de São Paulo, a cábrea Sansão passou a ser menos acionada, pelo menos nas operações de carga. Mas uma outra necessidade pareceu encaixar-se como uma luva às qualidades ímpares do gigante santista: as operações de salvamento. Em junho de 1981, ela foi utilizada para resgatar do fundo do canal, junto ao cais do armazém 5, a barcaça do navio “Delta Norte”, que sofrera um terrível incêndio em 22 de maio. Em setembro do mesmo ano, um “lash” (navio que transporta barcaças em seu interior) afundou enquanto era rebocado do cais privativo da Cosipa para o armazém 35. Neste resgate, a Sansão teve problemas, com os cabos se arrebentando muitas vezes. Era como se os “cabelos” do Sansão santistas o fizessem perder as forças. Foram necessários três meses de trabalho para concluir a operação. Outro resgate enigmático foi o do rebocador Minuano, que afundou no canal próximo ao cais do Armazém 7 em fevereiro de 1986. Com o auxílio de mergulhadores e quatro cabos de aço, a Sansão conseguiu içar a embarcação de impressionantes 110 toneladas, em uma operação arriscada devido à força da maré vazante. E assim se deu a vida do gigante santista nos anos 1980/1990, como “salva-vidas” de pesqueiros, lanchas particulares, barcaças, navios, batelões e barcas.
O fim
Nos anos 1990, a Sansão já não era nem a sombra do que fora trinta anos antes, e acabou sendo gradualmente deixada de lado, encostada no cais da Mortona (antigo nome do Cais da Marinha, onde está a sede da Capitania dos Portos de São Paulo, entre os armazéns 27 e 29). E dali não mais sairia. Em 22 de julho de 1994, ela foi retirada do inventário e colocada em leilão, com um valor mínimo de R$ 42 mil. Mas a venda fracassou. Somente em outubro de 1997, é que o guindaste foi arrematado, pela empresa Lígiamar Comércio e Serviços Marítimos. O velho gigante foi, então, desmontado no cais do Armazém 5, determinando o fim de uma era épica, quase bíblica, na história portuária.