A trajetória de Milton Moreira Fernandes, o pracinha santista que sobreviveu aos campos de batalha da Itália, mas encontrou a morte no abandono e na miséria, em 1947.
Santos, 23 de setembro de 1947. O dia nasceu pesado sobre a cidade santista. Uma leve neblina descia dos morros como um manto de silêncio, cobrindo as ruas do Velho Centro ainda molhadas de sereno. No alto do Morro de São Bento, num barracão feito de tábuas frágeis e telhas de zinco, o ex-pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) Milton Moreira Fernandes travava aquela que se tornaria sua última batalha — não mais contra alemães nazistas, nem contra o frio das montanhas da Itália, mas sim contra uma implacável febre que lhe queimava o peito.
No interior do casebre, a mãe, Dona Joana, velava o filho de olhos fundos e respiração curta. Aquele mesmo rapaz que partira três anos antes, sorridente, farda nova, e a promessa de defender o Brasil gravada no coração. A guerra o devolvera mudado: o corpo magro, o olhar distante, o peito cavado por uma tosse seca que não cedia. Da Europa, trouxera apenas uma fotografia — seu rosto sobreposto à Torre de Pisa, símbolo do orgulho juvenil — e uma bandeira nacional dobrada, guardada como relíquia entre as poucas roupas.
A vizinhança sussurrava ao redor da casa. O morro inteiro sabia que o fim daquele jovem combatente se aproximava. No fim da tarde, o vento soprou do porto trazendo o cheiro do café torrados nos armazéns do Valongo. Eram, de certa forma, os mesmos cheiros que Milton sentira quando, em 1944, embarcara rumo ao desconhecido.
Lembranças do mar
Naquele tempo, o cais de Santos era uma confusão de chegadas e despedidas. Mães choravam, crianças acenavam, bandas militares tocavam dobrados heróicos para afogar o medo. Milton lembrava-se bem do apito longo do navio — o General Meigs — cortando o ar e fazendo pulsar forte o coração de quem partia. Do convés, jovem santista viu o morro sumir na neblina, e sua mãe, lá embaixo, no costado do cais, pequena, de lenço branco na mão, como se mandasse um pedaço do coração junto com ele.
Depois vieram as semanas no mar. O balanço constante, o cheiro de óleo e ferrugem, as noites em silêncio, todos deitados em redes, rezando para que não surgissem os temidos submarinos alemães que rondavam o Atlântico.
Quando o navio enfim tocou o porto de Nápoles, Milton encontrou uma cidade apavorada. Crianças magras pediam pão nas docas, e os sinos das igrejas soavam como lamento. O pracinha santista pisou em solo europeu com a mochila nas costas e o coração apertado — a guerra parecia ter devorado até o ar.
De lá, seguiu com o batalhão rumo aos Apeninos, onde o inimigo se escondia entre as montanhas. Lutou sob chuva, lama e medo, vendo companheiros tombarem e outros voltarem mudos. Cada dia era uma vitória mínima, cada amanhecer, um milagre. Ao final, sobreviveu e viu o regime nazifascista cair, as bandeiras se renderem e o silêncio da vitória cobrir os vales.
Mas aquele silêncio era também o prenúncio da saudade. Quando pode embarcar de volta, Milton chorou sem vergonha — chorou pelos que ficaram nas trincheiras e pelos que jamais voltariam a ouvir o som do samba ou as vozes de seus entes queridos.
Milton trouxe para casa o peso de um mundo que parecia ter se despedaçado, mas também da esperança de reencontrar o pequeno barraco no Morro de São Bento, onde sua mãe ainda o esperava com o mesmo café passado na hora. Foi assim que o herói voltou para casa — cansado, mas vivo.
O retorno e a ruína
Quando desembarcou em Santos, em agosto de 1945, a cidade continuava a mesma, mas o país não. O entusiasmo da vitória durou pouco. Os aplausos nas estações e os discursos patrióticos se dissolveram no cotidiano. Poucos falavam da FEB, e tampouco dos meninos que haviam enfrentado o inverno europeu com coragem e medo.
Sem emprego, com o corpo fraco e a alma cansada, Milton subiu outra vez o morro. Os meses seguintes foram de luta. O ex-pracinha procurou serviço, arrumou bicos de vigia no cais, mas ninguém se lembrava de promessas. O país vivia outros problemas e os heróis de ontem tornaram-se sombras de hoje. E a doença, que começara como tosse, virou sentença.
A última marcha
No dia 23 de setembro de 1947, já sem forças, Milton deitou-se num estrado rente ao chão. Respirava com dificuldade, o rosto pálido, a febre alta. Alguns companheiros de guerra, avisados por amigos em comum, subiram o morro para ajudá-lo. Encontraram-no exausto e decidiram levá-lo para o hospital. Improvisaram uma maca e o desceram nos ombros, pelas vielas enlameadas, em silêncio.
No sopé, uma ambulância da Santa Casa de Misericórdia os aguardava. Dentro do Pavilhão Soter de Araújo, o ex-combatente recebeu algum conforto — talvez uma injeção, talvez uma palavra amiga. Poucas horas depois, fechou os olhos para sempre. Tinha vinte e quatro anos.
A cidade que chorou
Na manhã seguinte, 24 de setembro de 1947, A Tribuna trouxe o título que ecoaria pela história: “O Fim de um Herói.” A reportagem descrevia o drama do jovem que enfrentara o inimigo estrangeiro e sucumbira ao inimigo doméstico — o abandono. O texto denunciava a falta de amparo aos pracinhas, o descaso do governo e a indiferença social que deixava morrer, em silêncio, aqueles que haviam lutado pela liberdade.
Dias depois, o escritor Afonso Schmidt, indignado, escreveu o artigo que se tornou epitáfio moral de Milton: “Nos outros países, esses homens são amparados, tratados com carinho. Aqui, morrem nos bancos dos jardins. Seria bom mandar examinar o sangue da República — talvez nele se encontrem três cruzes gamadas.”
O corpo de Milton foi sepultado no Cemitério do Saboó, levado pelos mesmos companheiros que o tiraram do morro. Nenhuma autoridade compareceu. Nenhuma bandeira foi hasteada. Apenas o pranto de Dona Joana e o ruído do vento entre os túmulos.
O silêncio depois do heroísmo
O nome de Milton Moreira Fernandes não aparece mais em manchetes nem em cerimônias oficiais. Sua história ficou restrita aos registros da imprensa santista de 1947 e aos poucos documentos que sobreviveram ao tempo. No entanto, o episódio que marcou sua vida — e sua morte — continua a representar o drama de muitos ex-combatentes da Força Expedicionária Brasileira que voltaram da guerra sem o amparo do país que defenderam.
Passadas as décadas, o caso de Milton permanece como testemunho de uma época em que o heroísmo foi seguido pela negligência. Ele simboliza todos aqueles que lutaram com bravura no exterior e, de volta ao Brasil, encontraram a miséria e o esquecimento.
E é com o propósito de não deixar que histórias como esta se percam no esquecimento que este memorialista cumpre seu dever de registrar os fatos, preservar a memória e reconhecer o valor de santistas como o Milton. Porque os heróis — os verdadeiros — não podem, e jamais devem, ser esquecidos.
