Nos primeiros tempos da aviação, comumente conhecida à época como “navegação aérea”, os olhos da humanidade estavam voltados aos seus grandes feitos, desde o voo que encantou o mundo em 12 de novembro de 1906, tendo como protagonista o brasileiro Alberto Santos Dumont que, com seu 14-Bis, decolou do Campo de Bagatelle, em Paris, França, para se tornar o precursor da conquista definitiva dos céus. Dali em diante, outros intrépidos aventureiros passaram a perseguir os mais variados tipos de recordes e façanhas. A cada quilômetro conquistado, altura alcançada, território inóspito desbravado pelos ares, nomes como Henry Farman (França), John William Dunne (Inglaterra), Louis Blériot (França), Henri Fabre (França) e Clabraith Perry Rodgers (Estados Unidos) se somavam a uma seleta galeria de heróis da humanidade, dignos realizadores do antigo sonho de Ícaro (personagem da mitologia grega que traduzia o desejo eterno do homem em poder voar).
As travessias aéreas
Nada de Ásia, Oceania ou África. No início do século 20, o mundo praticamente girava em torno de Europa e América, principalmente no pós-Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918). Durante este triste capítulo histórico, as máquinas aéreas ganharam impulso e tecnologia, sendo utilizadas como eficientes armas de combate. Ao final do conflito, alguns pilotos, ex-combatentes, como os britânicos John Alcock e Arthur Whitten Brown, decidiram se lançar numa transloucada corrida por fama e fortuna. Em 1919, ambos se tornariam os primeiros homens a atravessarem o Oceano Atlântico num voo direto, a partir de St. John’s (Terra Nova, Canadá), de onde saíram à 1h45 do dia 14 de junho, chegando ao distrito de Connemara (Irlanda) após 16 horas e 12 minutos numa jornada que venceu 3.186 km.
As notícias sobre a incrível proeza britânica se espalharam pelo mundo e estimularam sobremaneira diversos concorrentes, como os portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho que, em 1922, marcaram seus nomes no mundo da aviação após atravessarem, por via aérea (com o hidroavião monomotor Fairey F-III Mkll, batizado como “Santa Cruz”), os 8.383 km de distância entre Lisboa e Rio de Janeiro, numa jornada reconhecida como a primeira travessia de avião do Atlântico Sul. Cabral e Coutinho amerrissaram (pouso na água) na cidade maravilhosa em meio ao júbilo do centenário da independência brasileira. Esta viagem, porém, ao contrário da realizada pelos britânicos em 1919, teve escalas (sete ao total). Os dois intrépidos pilotos lusitanos chegaram a visitar a cidade de Santos, na ocasião do lançamento da pedra fundamental do monumento em homenagem ao santista Bartolomeu de Gusmão (na Praça Ruy Barbosa), que é considerado uma espécie de avô da navegação aérea (por conta da sua invenção, a passarola, tido como o primeiro objeto voador desenvolvido pelas mãos do homem).
O Jahú
Na esteira dos entusiasmos globais, o jovem brasileiro João Ribeiro de Barros, descendente de antigos barões do café, da região de Jaú, interior paulista, resolve tonar-se piloto, com o claro desejo de inserir seu nome na seleta lista dos aventureiros da navegação aérea. Assim, se aproxima de Gago Coutinho, com quem estabelece laços de amizade e inicia um planejamento audacioso: repetir o feitos dos lusitanos, porém contando apenas com uma tripulação de conterrâneos. Com o dinheiro da família, adquire um hidroavião italiano, da fábrica Savoia Marchetti (Societá Idrovolanti Alta Italia – SIAI) e, orientado pelo companheiro Coutinho, promove alterações estruturais que seriam fundamentais para o êxito da empreitada (importante dizer que o hidroavião comprado por Barros já tinha tentado realizar a travessia atlântica, mas sem sucesso).
O idealizador da aventura forma, então, o seu time, convocando o mecânico Vasco Cinquini *, seu amigo; o navegador Newton Braga (capitão) e jovem piloto de caça Arthur Cunha (tenente). Com a equipe completa, o Jahú partiu de Gênova em 13 de outubro de 1926, sob a ovação dos italianos. Porém, ao contrário da viagem de Sacadura Cabral e Gago Coutinho, a jornada do Jahú não foi marcada por poucos momentos de desestabilidade, muito pelo contrário. A aeronave dos brasileiros encontrou diversos e seríssimos problemas na primeira metade da viagem, com registros de sabotagem, quebra de peças e até conflitos pessoais, que culminaram na expulsão de Arthur Cunha da equipe, substituído pelo tenente João Negrão, aviador da Força Pública Paulista, quando a equipe se encontrava parada no arquipélago de Cabo Verde (os pormenores desta história deverão ser contados em outro artigo).
Após meses mergulhados na crise interna que se formara em torno da jornada, e parados quase sem perspectivas na cidade de Praia (Cabo Verde), o Jahú finalmente conseguiu decolar, na madrugada de 28 de abril de 1927, rumo ao Brasil. Voando a uma altitude de 250 metros e uma velocidade recorde de 190 km/h, o hidroavião chegou à Fernando de Noronha depois de doze horas. O Brasil, ao saber da notícia, explodiu em comemorações. Da ilha brasileira até Natal, primeira escala no continente, foram mais poucas horas. Barros e sua equipe desceram o país, atravessando Recife, Salvador e Rio de Janeiro, onde foram recebidos como heróis.
O Jahú em Santos
Os santistas, a exemplo dos outros brasileiros, também celebraram a conquista de Barros, Cinquini, Braga e Negrão. Mas, de longe. Quando chegou à cidade a notícia de que o Jahú amerissaria nas águas do Porto de Santos, um verdadeiro frenesi tomou conta da população.
Era 28 de julho de 1927. Santos despertou com um entusiasmo fora do comum. A cidade praticamente parou para poder testemunhar a passagem do avião mais célebre da história nacional (juntamente com o 14-Bis). De bairro em bairro, casas e carros foram enfeitados com bandeirolas verde e amarelas e algumas com o desenho do Jahú. Às 13 horas, a ansiedade era tanta, que muita gente decidiu subir o Monte Serrat para ter a oportunidade de uma visão privilegiada da chegada dos heróis nacionais. O tempo ajudou. O céu estava límpido, azul, digno de uma recepção à altura da importância da aeronave. Quando o relógio marcava 15h15, um vulto surgiu no espaço, para os lados do oceano. Era, de fato, o possante avião nacional, tal qual um majestoso pássaro, a descrever um verdadeiro balé nos céus da cidade.
O Jahú fez algumas evoluções na região do Boqueirão, antes de rumar na direção da velha cidade, onde fez a alegria dos presentes no terraço do Monte Serrat. Partindo na direção do cais, às 15h28, o hidroavião pousou mansamente nas águas escuras das imediações da Ilha Barnabé, de onde foram levados até a Base de Aviação Naval, onde foram recepcionados pelas autoridades locais.
Às 16h30, finalmente os heróis brasileiros chegavam no cais da Alfândega, em Santos, levados pela lancha da Base, onde foram recebidos com uma chuva de flores e aplausos. O entusiasmo da população santista era tamanho, que foi difícil à força pública impedir que carregassem em triunfo os aviadores. Barros e seus amigos percorreram as ruas da cidade em cortejo de automóveis, com o detalhe curioso sobre o motorista do carro principal, uma mulher, Zezé Lara.
Ao longo do trajeto, milhares de pessoas saudavam os intrépidos desbravadores dos céus. O cortejo passou lentamente pela Praça da República, Rua XV de Novembro, Rua Frei Gaspar, Praça Ruy Barbosa, Rua São Leopoldo, Praça dos Andradas, Rua São Bento e Praça Marquês de Monte Alegre, onde ficava o Paço Municipal (que estava abrigado no atual prédio ocupado pelo Museu Pelé), onde foram recebidos pelo então prefeito de Santos, José de Souza Dantas.
“Marche Aux Flambeau”
Os heróis nacionais cumpriram extensa agenda na cidade, com missa solene na Catedral, visitas ao Asilo dos Inválidos e outras entidades benemerentes, deposição de flores no Panteão dos Andradas, conferência na Associação Comercial, espetáculo de gala no Teatro Coliseu e festa no Jockey.
O ponto alto do dia antecedeu o garboso jantar no exuberante Parque Balneário Hotel, tido como o mais luxuoso da América do Sul. Eram cerca de 20h30, quando os aviadores chegaram em sua comitiva, na Praça Independência. A partir dali, milhares de lanternas e bandeiras, carregadas pelo povo, formaram o que se chamava de “Marche Aux Flambeau” (marcha com luzes de tochas ou lanternas, tipo venezianas). Foi uma das cenas mais lindas já vistas na cidade santista até então.
A partida de Santos
No dia seguinte, 29, mais atividades foram cumpridas pelo quarteto de aviadores, com visita ao Monte Serrat, que contou com a presença de muita gente. A agenda ainda incluiu um almoço no Forte Itaipú, uma visita à Beneficência Portuguesa e um jantar dançante no Miramar, sem contar um “sauterie” (pequena festa) no Clube XV.
Os aviadores, de Santos, rumariam para a capital paulista, mas as condições do tempo na Serra do Mar os fizeram esperar até o dia 1º de agosto, quando finalmente partiriam, por volta das 13 horas, e amerissariam na Represa de Santo Amaro pouco mais de uma hora depois.
Grande público participou da despedida do Jahú, que deixou um rastro de orgulho e saudade. Os santistas viveram dias de júbilo e se lembrariam por muitos anos da grande festa provocada por um dos mais famosos e importantes atos de conquista já realizados por brasileiros.
O hidroavião Jahu, após o término de sua jornada, dias depois, nunca mais tornaria a voar. Barros, o mentor da inédita aventura, ainda tentou planejar outra viagem, com outro equipamento, mas seus planos não deram certo. Barros veio a falecer em julho de 1947, com 47 anos de idade e exatamente durante as comemorações dos 20 anos de seu maior feito. Outra triste curiosidade se relacionou à morte do mecânico Vasco Cinquini, que faleceu em acidente aéreo ocorrido na praia do José Menino, em Santos, em 11 de janeiro de 1930 (menos de três anos depois do voo do Jahú – veja artigo no Memória Santista sobre esse fato).
O Jahú, hoje
Não muito tempo depois da aventura de 1927, o hidroavião Jahú foi doado por Barros ao Museu Paulista, onde ficou ao relento por muitos anos. Na década de 1950, a aeronave foi passada para a guarda do Museu da Aeronáutica, em São Paulo, situada no Parque Ibirapuera, onde ficou por 40 anos. Deteriorado por falta de manutenção, o Jahú foi resgatado entre 2004 e 2006, sendo colocado à disposição do Helicentro Helipark, em Carapicuíba, em 2007. A cidade de Jaú, então, requereu a posse do avião. Porém, ela foi enviada a São Carlos, onde está até hoje exposta no Museu TAM.
IMAGENS DA PASSAGEM DO JAHU EM SANTOS (Revista Flamma)