Santos, 8 de julho de 1884. Era madrugada, quando gritos de alerta soaram para os lados da praia do Valongo. “Olhem! Está acontecendo algum incêndio enorme na direção da capela de Nossa Senhora das Neves!”. Alguns poucos homens que já se dirigiam para a labuta do dia na estrada de ferro inglesa testemunharam, preocupados, o crescimento da claridade amarelada que trepidava intensa ao longe, nas proximidades da boca do Rio Jurubatuba. Aquelas paragens abrigavam também o velho sítio da Madre de Deus, o mais antigo do país, onde ainda operava um engenho de cana-de-açúcar (chamado de Cabraiquara), igualmente vetusto. A notícia sobre o incêndio espalhou-se rapidamente entre os santistas, e um grupo de bombeiros voluntários tomou rumo, pelo canal do estuário, ao local que ardia em chamas.
Ao atracarem no pequeno cais local, já era possível ver o tamanho da catástrofe que abatia a velha capela erguida em 1702, quase no mesmo sítio da primeira construída na região por Pero de Góis quando do início da colonização na Capitania de São Vicente, em 1532. As labaredas consumiam toda a estrutura do telhado e outras partes de madeira, bancos e altares. Pelo menos vinte negros escravizados que atuavam nos sítios locais, tentavam, em vão, conter a fúria do fogo. O desespero estampava o rosto daqueles homens, uma vez que Nossa Senhora das Neves era, afinal, a santa de devoção da maioria deles, que em seu nome buscavam refúgio espiritual de paz em meio às agruras da vida cativa. Ao menos a imagem da santa que ornava o altar-mor fora, milagrosamente, resgatada pela coragem de um negro fervoroso devoto e acabou sendo levada para um local seguro em Santos.
Foram horas de combate, até a extinção total das chamas. Ao final, os restos enegrecidos da Capela se erguiam para o céu como braços carbonizados indicando o fim de uma história, mas que marcaria o início de outra, que assinalaria um capítulo especial na luta pela abolição da escravatura em Santos.
Os antecedentes do caso
No Sítio das Neves trabalhavam algumas dezenas de escravos, a maioria na lida do plantio, colheita e moagem da cana-de-açúcar. Havia quase dois séculos, a capela se tornara o único refúgio de paz àquelas pobres almas, que ali permaneciam por alguns momentos, em preces e invocações por melhores dias, pois não podiam suportar as asperezas da jornada brutal de trabalho, de trabalho escravo, que iam além de suas forças físicas.
Era de vê-los, esquálidos e estropiados, ajoelhados diante da imagem da santa de sua devoção, em súplicas e rogos não para uma vida restauradora, de descanso e paz, mas pelo menos para evitar-lhes uma tarefa intensa e maldosa, que contrariava as suas condições humanas, sem tempo sequer para a tranquilidade de uma oração, que era feita sempre às pressas, com momentos contados.
A grande alegria daqueles homens e mulheres acontecia durante as procissões marítimas em devoção à santa. E esta felicidade, ainda que rara, incomodava algumas figuras nefastas, como o feitor Antônio Joaquim, braço direito dos senhores do Engenho Cabraiquara. Certa vez, ouvido por algumas pessoas que rezavam no pequeno templo, ele teria feito uma ameaça: “Um dia acabarei com a regalia desses negros, pois eles aqui vêm para fugir ao trabalho do canavial”. Pouco tempo depois, “coincidentemente” ocorreu o incêndio, que consumiu por completo a velha capela.
Vingança e virada de página
Algumas horas após ajudar a extinguir o fogo e testemunhar o regresso dos bombeiros voluntários a Santos, um grupo de escravos, revoltados com o que acontecera, decidiu engendrar um plano de vingança. Com a certeza de que o ocorrido havia sido planejado pelo feitor, eles se amotinaram e, aos gritos, como que feridos em sua condição de figuras humanas, afluíram ao sítio para atacar a propriedade. Os senhores do lugar, talvez prevendo o que estaria por vir, já haviam fugido para Santos.
Antônio Joaquim não. Aliado a outros empregados do sítio, ele permaneceu na Casa Grande, embarricado, à espera da invasão dos revoltosos. Ao cair da noite, um som de atabaques ecoou no ar junto com o canto chorado dos canhemboras (nome dado aos escravos fugidos). Com a noite fechada surgiram os negros, aumentados em número, carregando tochas e armas diversas. A devastação começou pela queimada das plantações. Em fração de minutos já ardiam as senzalas, a tulha, o paiol das ferramentas, as cocheiras, os carros e, por fim, também a Casa Grande, enquanto os negros, asselvajados e entregues ao natural instinto, dançavam ao som lúgubre dos atabaques e caxambus.
Antônio Joaquim conseguiu sair pela porta dos fundos e fugir para a serra, mas foi acossado pelos revoltosos. Tentou ainda escapar pela cachoeira, porém foi pego e, assim como ateara fogo à Santa das Neves, foi queimado vivo pelos escravos, tal como ele mesmo fizera ao lugar sagrado.
Ali findava o drama dos negros de Cabraiquara, mas ao mesmo tempo determinou o fim da relação amistosa em relação aos habitantes de Santos. Os fugidos rumaram com suas famílias, então, para as fraldas da Serra do Mar, onde criaram um quilombo (que ficou conhecido como o Quilombo do Jurubatuba), num lugar tão ermo que polícia alguma jamais se meteu naquelas solidões a persegui-los.
Pai Filipe e a abolição
Poucos anos depois, diante o ardor da causa abolicionista e o esquecimento do caso do incêndio, alguns negros do Jurubatuba migraram para Santos, entre eles um homem de pouco mais de sessenta anos de idade, conhecido como “Pai Filipe”. Ele chefiava os remanescentes do Engenho de Cabraiquara, os últimos vingadores de Nossa Senhora das Neves. Na terra santista, criou um núcleo, no sopé do Monte Serrat, nos lados da Vila Mathias, não muito longe de outro quilombo, o do Jabaquara. Neste recanto, Pai Filipe criou fama e desenvolvia os seus batuques, seu samba africano, sua dança do corvo, troando seus atabaques e caxambus, menos para os brancos do que para si mesmo e para os seus, atordoando no coração e no ouvido os ecos de todas as suas recordações.