Os 80 anos da “Linha da Máquina”

Lembro-me da cena como se fosse ontem. Um casal de turistas, aparentemente perdido, me solicitava informações enquanto caminhava nas imediações do cruzamento do Canal 1 (Avenida Pinheiro Machado) com a rua Carvalho de Mendonça, em meados dos anos 1980. – Rapaz, você pode nos dizer onde fica o Orquidário? De pronto, respondi: – Olha, vocês devem seguir por esta avenida mesmo e, logo depois da linha da máquina, virem na segunda rua à direita e logo chegarão lá!  Os dois, então, se entreolharam após a singela explicação. Com certeza, devem ter se peguntado. – O que é essa tal Linha da Máquina? 

A curiosa expressão referencial se tornou típica entre os santistas por décadas, em função dos trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), cujo surgimento, por aqui, completou 80 anos no dia 2 de dezembro (1937). A companhia ferroviária, entretanto, já existia desde 1870, fundada por empresários ligados ao setor de algodão da região de Sorocaba, sob a liderança do imigrante austro-húngaro Luís Mateus Mayalasky, figurão que chegou a receber o título de Visconde de Sapucaí, dado pelo próprio Imperador D.Pedro II.

Identidade visual da Estrada de Ferro Sorocabana
Identidade visual da Estrada de Ferro Sorocabana

A corrida pelo café

O Estado de São Paulo vivia, nas décadas finais do século 19, os tempos áureos do café, testemunhando a expansão acelerada da área de plantio para os lados do Oeste Paulista. Em 1880, identificando a enorme oportunidade de negócio que nascia, mais promissora do que o modesto transporte de algodão, a Sorocabana, desta vez nas mãos do banqueiro Francisco de Paula Mayrink, passou a investir em ramais para aquela região, objetivando atender os auspiciosos cafeicultores, atingindo rapidamente as cidades de Botucatu, Assis, Presidente Prudente e Presidente Epitácio.

Entretanto, as cargas transportadas pela Sorocabana não podiam seguir na direção do Porto de Santos, em função do contrato de concessão que o governo paulista mantinha com a São Paulo Railway (A chamada Inglesa), que lhe garantia o monopólio do transporte ferroviário pela Serra do Mar. No tratado com a SPR havia uma cláusula que garantia aos ingleses o privilégio de zona, permitindo-lhes o controle de todo o transporte de mercadorias de exportação e importação destinadas ao porto santista ou provenientes dele. Diante dessa situação, mesmo tendo formalizado grandes contratos para o transporte de café no Oeste Paulista, a carga tinha de ir, necessariamente, até São Paulo para que fosse  repassada aos vagões da rival. E assim foi por muitos anos

Governo Paulista assume a EFS e quebra o monopólio da Serra

De 1880 a 1919, a Sorocabana trocou algumas vezes de donos, até ser encampada pelo governo do Estado de São Paulo, durante a gestão de Altino Arantes. Foi ele quem resolveu enfrentar pra valer o privilégio da SPR, que vinha sendo questionado pelas autoridades paulistas desde os primeiros anos do século 20. Os ingleses eram constantemente acusados de cobrar altas tarifas, sem nenhum controle legal, o que acabava prejudicando o desenvolvimento do porto e da propria economia paulista.

Arantes, que se transformara no principal responsável pela recuperação da Sorocabana, foi o maior entusiasta da proposta pela quebra do monopólio e, assim que obteve êxito em sua empreitada, mandou construir um novo ramal através da Serra, ligando os trilhos da EFS a Santos. Para concretizar a estratégia foi necessário ainda encampar outra companhia ferroviária que atuava no litoral, a Southern San Paulo Railway, que mantinha trilhos desde a cidade santista até Juquiá, no Vale do Ribeira.

O presidente Getúlio Vargas viaja pela E.F. Sorocabana para inaugurar a Estação da Ana Costa, em Santos.
O presidente Getúlio Vargas viaja pela E.F. Sorocabana para inaugurar a Estação da Ana Costa, em Santos.

A Southern San Paulo Railway

A Southern Railway havia surgido em 1908, quando a Prefeitura de Santos permitiu a construção de uma linha ferroviária que atravessasse a cidade santista, de Oeste a Leste, cruzando ainda a vizinha São Vicente e prosseguindo até Itanhaém. A obra foi concluída em 17 de janeiro de 1914. O objetivo deste ramal era propiciar a expansão urbana às praias do litoral sul. Mais tarde os trilhos foram colocados  até a região de Juquiá, passando a atender as necessidades de madeireiros e exportadores de frutas, em especial da banana, que havia alcançado bom mercado consumidor na Argentina.

Enfim, a ligação dos ramais

Com o fim das obras na Serra, que propiciou a junção dos dois ramais, nascia a linha Mairinque, responsável por ligar, finalmente, o Porto de Santos à cidade de São Paulo, pelo lado oeste. No dia 2 de dezembro de 1937, o novo caminho ferroviário era inaugurado, consolidando em definitivo o fim do monopólio de acesso ao porto de Santos, longamente detido pela São Paulo Railway.

A Estação da Ana Costa

A partir de 1937, desse modo, começaram a trafegar, normalmente, trens de carga e de passageiros. Várias estações foram construídas ou recuperadas ao longo da linha revigorada, caso, por exemplo, da estação terminal de Santos, localizada na avenida Ana Costa. Reinaugurada em 26 de julho de 1938, com a presença do então presidente da República, Getúlio Vargas, e do interventor federal no estado de São Paulo, Adhemar de Barros, ela substituía a velha e pequena estação terminal da Southern. O prédio principal até hoje permanece ativo (em frente ao hipermercado Extra), desta vez abrigando atividades culturais e de cidadania.

O Fim da Sorocabana e a Fepasa

Na década de 1960, o governo paulista desejava, a exemplo do que fizera o Governo Federal com suas estradas de ferro, unificar as suas linhas sob a batuta de uma única empresa. Assim, em 1967, começou-se a dar os primeiros passos para a criação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que, em 1971, seria oficializada como Fepasa – Ferrovia Paulista S/A. E, assim, se deu o fim da Sorocabana.

Pátio de manobras da Fepasa. Com o crescimento da cidade, local se tornou um grande entrave.
Pátio de manobras da Fepasa. Com o crescimento da cidade, local se tornou um grande entrave.

“A linha da máquina”, um entrave na vida santista

Com o aumento do fluxo de automóveis na cidade, a apelidada pelos santistas como “linha da máquina”, virou um problema. Todos os dias enormes filhas de carros se formavam a cada “manobra” das composições para o “encaixe” no pátio (que ficava onde hoje está o Extra e o Mendes Convention), em especial nas avenidas Pinheiro Machado (Canal 1), Bernardino de Campos (Canal 2), Ana Costa e Washington Luiz (Canal 3). Durante anos os santistas conviveram com esse gargalo ferroviário no meio da cidade, testemunhando, inclusive, acidentes que envolvendo os trens com carros, ônibus e até bondes (enquantro eles existiram).

Em 1998, o então governador de São Paulo, Mário Covas, resolveu transferir a Fepasa para o Governo Federal, dentro do processo de renegociação das dívidas do estado. Posteriormente a União transferiu a empresa para a RFFSA, passando a ser denominada Malha Paulista, e com a extinção da RFFSA, as linhas foram transferidas sob regime de concessão para a Ferroban, que passou a operá-las. Em 2006, a América Latina Logística (ALL) comprou o grupo Brasil Ferrovias, que mantinha a Ferroban. Em 2015, a ALL foi fundida com a Rumo. Porém, o ramal que corta a cidade de Santos já havia sido desativado desde 1997, pondo fim no transtorno das manobras dentro da cidade. Hoje, 80 anos depois de toda essa história, é mais provável que um velho turista ainda se lembre da expressão “Linha da Máquina” do que os jovens santistas.

Estação Ana Costa, na década de 1940.
Estação Ana Costa, na década de 1940.
Interior da Estação Ana Costa, nos anos 1990.
Interior da Estação Ana Costa, nos anos 1990.
Composição da E.F.S. passando pela cidade de Santos no final dos anos 1930.
Composição da E.F.S. passando pela cidade de Santos no final dos anos 1930.

 

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