Intrépido herói ou cruel genocida? A incrível história de um pioneiro da aviação que viveu em Santos e fazia a alegria de crianças e adultos
Santos, 13 de janeiro de 1951. As crianças, da faixa de areia da Ponta da Praia, vibravam ao testemunharem a evolução ousada do pequeno hidroavião que sobrevoava rasante a boca do canal do Estuário. Os adultos presentes, não diferentemente, também se impressionavam com a habilidade do piloto, que manobrava o minúsculo hidroavião como se fosse ele um moderno caça de guerra. Logo o aparelho embicaria na direção da praia para amerissar, mansamente, nas tranquilas águas da Baía de Santos, levando o público que ali assistia o espetáculo ao delírio. Poucos minutos depois, com a aeronave já estacionada com segurança em terra, o intrépido aviador descia de seu “brinquedo”, ostentando um largo sorriso. E, com um sotaque típico dos europeus da Bavária, dizia aos que ali ficaram para lhe esperar: “Quem quer voar como os pássaros? Dar um passeio por este belo lugar?”.
As pessoas ficavam tentadas por viver aquela aventura nos céus de Santos. Afinal, aquele homem de aparência heroica inspirava segurança. Mas, por detrás de sua história, além de fatos realmente heroicos, épicos, havia um suposto rastro de dor e crueldade. O aviador, de origem báltica (ele nascera na Letônia, em 19 de maio de 1900), era, sem ninguém saber, uma lenda viva em seu país. Alvo da paixão das mulheres e inspiração para os jovens letônios, Herberts Cukurs fora um pioneiro da aviação de longa distância. Nos anos 1930, ele havia protagonizado travessias aéreas que ganharam repercussão internacional, como de Riga a Gâmbia, na África (cerca de 6 mil km) e de Riga a Tóquio (cerca de 8 mil km). Ousado, ele também desafiava o perigo. Certa vez ele voou por baixo da ponte do rio Kalpaka, passando apenas um metro da superfície da água. Era conhecido também por fabricar seus próprios aviões, que eram tão bons que até as Forças Armadas de seu país encomendava com ele. Enfim, era um homem venerado por todos seus compatriotas, até quando eclodiu a Segunda Grande Guerra Mundial, em 1939.
Uma história não comprovada
Segundo alguns biográfos, Cukurs teria se alistado a uma unidade militar nazista logo após a invasão alemã à Letônia, alcançando rapidamente um posto de liderança. Obediente às ordens de Adolf Hitler, teria sido ele um dos líderes das atrocidades cometidas em seu país contra judeus, ciganos, deficientes mentais e outros civis. Dados estatísticos comprovariam que o país báltico fora um dos mais mortais na Europa, registrando a morte de nove em cada dez prisioneiros de guerra. Alguns historiadores defendem que Cukurs era tão impiedoso que chegou a ordenar que queimassem uma sinagoga em Riga com mais de 300 judeus dentro, isso sem falar dos 13 mil mortos na Floresta de Rumbula (assassinados com tiros na nuca) e outros 1.200 afogados em um lago no interior do país. Por conta desta lista cruel de atrocidades, ele passou a ser um dos homens mais procurados pelos caçadores de nazistas no pós-guerra, intitulado como o “Carniceiro de Riga”. Alguns relatos davam conta que Cukors, ao final da Guerra, teria se misturado aos soldados de baixa batente para conseguir fugir com a família para a França e, de lá, obtido passagens de navio para o Brasil, que escolhera como refúgio por ser grande admirador de Santos Dumont.
Passeios aéreos
O aviador chegou ao Rio de Janeiro em 1946, onde resolveu fincar as bases de uma vida nova, tentando apagar os rastros de seu terrível passado (Há quem diga, porém, que ele chegara em terras brasileiras ainda durante a Grande Guerra, quando o nazismo dominava a Europa). Em terras cariocas decidiu trabalhar com o que mais sabia fazer: aviões. Utilizando boa parte do dinheiro que trouxera consigo, adquiriu um pequeno hidroavião, um modelo Republic RC-3 Sea Bees (Série 457), no qual passou a oferecer passeios turísticos na Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi ele quem instalou naquele local o famoso pedalinho, até hoje uma atração. Cukors permaneceu no Rio de Janeiro, e também Niterói, por alguns anos, até que decidiu mudar-se para Santos, onde fixou residência e passou a explorar seu negócio aéreo na Ponta da Praia.
Seus voos por sobre a Baia de Santos e região eram concorridos e faziam a alegria dos verões santistas no início dos anos 1950. Sua vida na cidade era de certa forma tranquila, embora ficasse ressabiado diante das notícias sobre a prisão de ex-agentes nazistas veiculadas na imprensa. Cukors, entretanto, não havia se escondido por detrás de nomes falsos, e o governo brasileiro havia lhe conferido visto de residência permanente, qualificando-o como engenheiro técnico de aviação.
Sua estada em Santos, contudo, não durou mais do que três anos. Em 1956, ele mudara-se com a família para São Paulo e passou a explorar o serviço de passeios de barcos e hidroavião na Represa de Guarapiranga. Essa atividade desenvolveu por alguns anos até que, em 1965, atraído por uma possibilidade de negócios no Uruguai, acabou assassinado por integrantes da Mossad (Serviço Secreto do Estado de Israel), numa emboscada arquitetada por agentes da Metsada (espiões da Mossad). O caso ganhou repercussão internacional pela maneira brutal como fora morto um homem, sem provas cabais e julgamento.
Quem poderia imaginar que aquele heroico aviador, que fazia suas estripulias aéreas para a garotada santista, seria dono de uma história tão polêmica, e que teria um destino tão inusitado quanto foi um dia a convivência de uma aeronave nas tranquilas areias da Ponta da Praia? Enfim, são esses detalhes curiosos da nossa história que a tornam tão empolgantes.