Com de mais de 500 radionovelas escritas em seu currículo, Mastrângelo fez história na dramaturgia radiofônica brasileira.
Santos, meados dos anos 1940. Rosinha caminhava reticente pela Praça José Bonifácio, dirigindo-se, pensativa, na direção do Palacete Humanitária, onde haveria de participar de um encontro com Carlos Baccarat, o diretor da badalada Rádio Atlântica de Santos, PRG-5, emissora conhecida por seus ouvintes como “A Voz do Mar”. Jornalista ainda jovem, mas notadamente diferenciada e cobiçada por sua incrível capacidade criativa, ela não estava muito certa em aceitar a proposta para um encargo a qual não estava familiarizada e que, de certa forma, não se sentia à vontade, uma vez que era crítica contumaz do papel que iriam lhe propor: ser redatora de radionovelas.
Rosinha escrevia bem, fato, e se destacava neste campo desde 1923, quando, contando com apenas 12 anos de idade, vencera um concurso de redação promovido por um destacado jornal da cidade. Dali em diante não parou mais de exercer sua criatividade no papel. E não era para menos, afinal, seu maior sonho era se tornar jornalista. Em 1932, Indalécio Alves, redator e fundador de “A Farpa”, um folhetim literário e humorístico, convidou-a para escrever em seu periódico mensal. Não demorou para que os concorrentes, após terem tido contato com as publicações dos contos redigidos pela prodigiosa jornalista, iniciassem uma disputa para tê-la em seus times. Rosinha, afinal, acabou aceitando a oferta do Gazeta Popular e passou a integrar uma redação habitada predominantemente por elementos do sexo masculino. Era algo como uma flor do deserto, espécime raríssima de se ver na imprensa brasileira. Além do trabalho neste jornal, onde redigia pequenos contos, poesias e trovas, para deleite dos leitores da coluna “Gazeta Social”, Rosinha também colaborava com o Jornal da Noite e com o semanário carioca Fon Fon, onde fora apresentada pelo médico e poeta Martins Fontes, que declaradamente a enxergava como um fenômeno.
No final dos anos 1930, Mastrângelo já era uma espécie de estrela do jornalismo santista e orgulho absoluto da classe feminina, apesar de ela não ostentar a delicadeza e a estética visual própria das moças de sua época. Até o fim de sua vida ela não se envolveu sentimentalmente por nenhum homem e jamais se casou. Segundo algumas biografias, Rosinha era homossexual, algo que não era tolerado pela sociedade do tempo em que viveu. Extremamente reservada, Mastrângelo procurava fugir dos holofotes e flashes, a todo custo. Seu mundo era, efetivamente, composto de tinta, papel e boas histórias.
No início dos anos 1940, tempos difíceis de guerra na Europa, as emissoras de rádio brasileiras começaram a investir na dramatização radiofônica de peças teatrais na intenção de entreter um público que vivia aflito diante da situação global. Em Santos, a Rádio Clube (PRB-4, a mais antiga da cidade, criada em 1925) já mantinha em sua grade de programação algumas esquetes baseadas em narrativas literárias e, inclusive, Rosinha, que para lá fora em 1939, participava de uma delas. Era um programa de curta duração chamado “A Hora da Ave Maria”, onde narrava crônicas de caráter religioso, como, por exemplo, a viagem de José e Maria pelo deserto e o nascimento de Jesus.
O sucesso deste programa chamou a atenção de Carlos Baccarat, proprietário da Rádio Atlântica, emissora que vinha tomando conta da audiência regional. O dono da “A Voz do Mar” queria cooptar o talento de Rosinha para um segmento que vinha ganhando força no Brasil, de norte a sul: as radionovelas. A emissora santista havia lançado dois anos antes um programa chamado “Um Romance para Você”, que era dirigido pelo jovem redator Teixeira Filho. Ocorre que o rapaz teve de sair para cumprir o serviço militar e Baccarat não enxergava outra pessoa para ocupar o posto que não fosse a sensacional senhorita Mastrângelo.
No entanto, Rosinha, que se tornara uma crítica ferrenha das radionovelas que encantavam os lares brasileiros, pareceu não ter ficado muito interessada pela oportunidade. “São trabalhos muito clichês”, vivia dizendo, em crítica aos roteiros melosos repletos de mocinhas chorosas e galãs canastrões, levados a cabo nas principais radionovelas de sua época. Mastrângelo era da turma que gostava mesmo de crônicas curtas e reais, e inovadoras de preferência, tanto no roteiro quanto na estética da mensagem.
Enfim, a tarefa era desafiadora por demais. Por outro lado, a oferta era ainda mais tentadora e, talvez, pudesse lhe proporcionar a chance de se reinventar ou até mesmo incutir um novo olhar para as radionovelas. Rosinha, assim, aceitou o cargo e se lançou na ousadia, criando logo de partida um texto fora dos padrões. Nascia, então, a novela “Os Conspiradores”, com um roteiro bem distante dos clichês que permeavam a dramaturgia clássica, ou seja, não havia lágrimas, a mocinha não sofria e o galã era um sujeito interessante. Enfim, e ao fim, foi um retumbante fracasso!
Rosinha não se conformou e, então, num repente de orgulho ferido, bradou para todos os cantos que era capaz de redigir os roteiros esperados pelo grande público. A primeira a emplacar foi “Duas Mães”, lançada logo após “Os Conspiradores”. Além de quebrar a “má impressão” da estreia, esta radionovela, de sucesso estrondoso, deslanchou a carreira de Mastrângelo no universo radiofônico.
Dizem que Rosinha chegou a criar mais de 500 radionovelas ao longo da carreira, uma melhor que a outra. Algumas chegaram a despertar na cidade reações inimagináveis, como “A Vida de São Francisco de Assis”, cujo último capítulo fora transmitido da Igreja da Pompéia, que acabou mais lotada do que em dia de missa de domingo de Páscoa. Outra novela que abalou a cidade foi “Escrava ou Rainha?”. Em um dos episódios da trama, em seu ato final, a protagonista subia uma montanha e estaria prestes a ser devorada por lobos, que a esperavam no alto, cena que seria transmitida apenas no episódio seguinte. Porém, diversas ouvintes ligaram para a Rádio Atlântica e suplicaram para que alertassem a atriz sobre o perigo, avisando-a para que não subisse a tal montanha. Rosinha, enfim, se divertia diante do nível de absorção criativa demonstrado por seus ouvintes.
Certamente nessas horas ela deveria lembrar-se do dia em que caminhava pensativa ao longo da Praça José Bonifácio, considerando não aceitar ser redatora de radionovelas. Para a nossa sorte, ela mudou de ideia.
Rosinha Di Napolli Mastrângelo nasceu em 2 de maio de 1911 e faleceu em 17 de setembro de 1986. Este artigo é uma homenagem aos 110 anos de seu nascimento.