Numa pequena viagem aérea pelo tempo e espaço, compreedemos a rica ramificação de rios, riachos e ribeirões da terra santense
Aqui, convido os estimados leitores a “voarem” comigo em um exercício criativo, mergulhando na história hidrográfica de Santos, com foco especial em sua parte insular, a qual dedicamos esta narrativa. Vamos começar imaginando que somos como uma espécie de gaivota viajante do tempo e espaço, que plana livremente ao sabor das brisas salgadas sobre a ancestral Ilha de Gohayó (renomeada por Américo Vespúcio como Ilha de São Vicente em 22 de janeiro de 1502). E, sob esse olhar aéreo, quase aerofotogramétrico, admiramos a geografia estuarina deste pequeno Éden incrustado no litoral de Piratininga, onde correm dezenas de “veias” vivas da ilha — pequenos rios e ribeirões que alimentavam a explosão de vida de um ecossistema rico em aves, mamíferos terrestres e marinhos, répteis, anfíbios, peixes e crustáceos. A visão que temos é simplesmente deslumbrante. Alguns dos pequenos rios revelavam garbosas cachoeiras que deixavam despencar suas águas cristalinas morro abaixo, adornando o coração de Gohayó com pureza e serenidade.
Não fosse a tarefa de compartilhar o destino desses cursos d’água doce, nossa gaivota imaginária certamente viveria para sempre naquele tempo livre do homem europeu, para nunca deixar de se deleitar com a extasiante visão ancestral. Porém, a missão de nosso guia alado exige um salto no tempo e, assim, pulamos para 1541, onde chegamos ao Enguaguaçú, o povoado que deu origem à cidade de Santos.
Desterro, Jerônimo e Itororó, os rios do velho Centro
Nesta época, o porto da Capitania havia sido transferido por Braz Cubas, da Ponta da Praia para as margens do Outeiro de Santa Catarina. Naquele pedaço de chão do Gohayó, três pequenos riachos cruzavam o espaço hoje tomado pelo Centro Histórico de Santos: o de Nossa Senhora do Desterro, o de São Jerônimo e o Itororó. O primeiro brotava nas encostas do Morro São Bento, passava em frente ao convento do Valongo (onde hoje está a Estação do Valongo) e dali desaguava no Estuário. Conhecido também como “riacho Macaia” e “riacho São Bento”, sua nascente chegou a se tornar uma bica pública, inaugurada em 1846 pelo imperador D. Pedro II. Nos dias atuais, tanto a bica quanto o riacho desapareceram da paisagem. Antes da virada do século XIX para o XX, o ribeirão já havia sido canalizado.
O segundo, o de São Jerônimo, era ainda mais importante. A força de suas águas impulsionou, por décadas, as pás do moinho São João, cujos proprietários eram irmãos Adorno, nobres genoveses que se estabeleceram na região junto aos primeiros colonos enviados por Portugal sob a liderança de Martim Afonso de Souza. Esse curso d’água, também canalizado no século XIX, ainda corre sorrateiro sob o solo santista, passando sob locais importantes como a Cadeia Velha e o Teatro Guarany. Curiosamente, seu traçado original é parcialmente preservado na Rua Conde D’Eu, sinuosa como o próprio rio, a partir da Rua do Comércio. É possível testemunhar, em algumas bocas de lobo dessa via, um filete de água resiliente, que mantém viva a presença do São Jerônimo.
Nossa gaivota viajante do tempo sobrevoa agora o rio Itororó, também pontuada nos mapas como “rio do Carmo”, numa referência ao Convento Carmelita (esquina da Praça Barão do Rio Branco e Rua Augusto Severo), que era banhado por seu curso. Com nascente no sopé do Monte Serrat, ele se tornou popular por abrigar a fonte mais tradicional e aprazível de Santos, e chegou a inspirar a conhecida canção “Fui no Itororó”. Canalizado também no século XIX, o ribeirão ainda desagua no estuário. O nome Itororó, de origem tupi, significa “água corrente” ou “manancial”, e deriva da forma indígena “Tororó”, corruptela de “Xororó” e “Y-xororó” (ou “I-xororó”).
Ainda na mesma face da Ilha de São Vicente, encontramos o rio Saboó (um de seus braços, mais tarde, ficou conhecido como rio Lenheiros). Com nascente no Morro do mesmo nome, seu curso passava pela área hoje ocupada pelo Conjunto Habitacional Mário Covas — mais especificamente na Rua Flamínio Levy —, atravessando a atual av. Presidente Getúlio Dorneles Vargas, a área da ferrovia, e finalizando no Estuário. Foi canalizado em 2004, enquanto o rio Lenheiros ainda corre nos dias atuais a céu aberto.
O rio que deu origem ao primeiro dos canais de Saturnino
Até meados do século XIX, para os santistas, as principais veias hidrográficas de convívio diário eram aquelas já mencionadas. No entanto, com o avanço das moradias para além do núcleo situado entre o Valongo e os Quartéis (cujo limite correspondia à Rua da Constituição), outros riachos começaram a ganhar a atenção dos habitantes. Foi o caso do “rio Guaranchin”, mais conhecido como “Rio dos Soldados”, cuja nascente se encontra nas encostas do atual Morro do Jabaquara, com um fluxo que atravessava as regiões hoje ocupadas pelos bairros do Jabaquara, Vila Mathias e Vila Nova. Com a expansão populacional em direção à Vila Mathias, os santistas perceberam a necessidade de canalizar o curso d’água, já que, em períodos de chuva, ele causava frequentes cheias e alagamentos. No início do século XX, sob a liderança do engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, o Rio dos Soldados foi canalizado, mas de maneira distinta dos ribeirões do antigo Centro. Esse projeto resultou nos icônicos canais abertos do plano sanitário de Santos, inaugurados em agosto de 1907, com estrutura que permitia até mesmo a navegação.
Dois Rios, a “veia cava” do Gohayó
Agora, nossa gaivota do tempo alçou um voo ainda mais distante, sobrevoando o trecho remoto da barra, hoje transformado na orla praiana. Ali, afastado do cotidiano santista, encontrava-se a foz do lendário “Dois Rios”, o maior curso de água doce da Ilha de São Vicente, que estendia-se por mais de 7 quilômetros. Seu nome evocava suas duas nascentes. A primeira brotava no Morro do Jabaquara, descendo pela Vila Mathias, Vila Belmiro e Campo Grande, em direção noroeste-sudeste, até alcançar o ponto onde hoje está a avenida Marechal Floriano Peixoto. Ali, o rio curvava-se para leste, atravessando a avenida Ana Costa nas imediações da Praça Independência, seguindo o trajeto que hoje corresponde à rua Galeão Carvalhal até atingir a altura da atual rua Mário Carpenter. O segundo braço nascia no bairro do Macuco, percorrendo inicialmente o sentido leste-oeste, cruzando o antigo Caminho da Barra (atual Rua Osvaldo Cruz) até a atual avenida Washington Luiz, onde se unia ao outro braço para desaguar, juntos, na praia, exatamente no local onde hoje se encontra o Canal 3.
Outras artérias do Gohayó
Ao final do passeio, já quase concluindo sua missão espiã, a gaivota sobrevoou o rio Branco, no José Menino, onde existia uma bela cachoeira que chegou a abastecer a população santista com água potável. Passou também pelo rio do Conrado, na Ponta da Praia, próximo ao antigo Forte Augusto (hoje Museu de Pesca), e por dois rios na Zona Noroeste: o São Jorge, utilizado para o escoamento da produção de açúcar do Engenho dos Erasmos, e o rio Jabaquara, que também ostentava uma cachoeira, a do Tachinho, na Nova Cintra. Ao alcançar o Século 21, do alto já não se vê quase nada, exceto o rio São Jorge, em uma visão difícil de acreditar, especialmente ao lembrar que aquele recanto do Goyahó foi, um dia, um verdadeiro paraíso.