Um dos mais importantes historiadores do Carnaval Santista, Bandeira Júnior, fazia questão de enfatizar nos seus escritos: “O Carnaval Santista é, talvez, o único na face da Terra que nasceu numa data certa – 14 de fevereiro de 1858“.
Como forma de homenagear esta grande festa, que em terras santistas tem um significado estrondoso, e o próprio Bandeira Júnior, um baluarte do Carnaval de Santos, este blog vai se dedicar nos próximos dias, até a quarta-feira de cinzas, a falar sobre a “memória momística” santista.
Hoje abordaremos a gênese do Carnaval na cidade de Santos.
Antes do “Big Bang” carnavalesco por aqui, a terça-feira “gorda” era marcada por manifestações um tanto quanto exageradas, beirando a total falta de senso. Os jovens da cidade santista brincavam o “entrudo” (primeiro nome do Carnaval, introduzido no Brasil pelos portugueses, no Século XVI) e literalmente “tocavam o terror na cidade”.
O entrudo era praticado de maneira violenta e grosseira, pelas ruas das cidades brasileiras. Seus principais atores eram os escravos e a população das ruas (ou seja, os menos favorecidos), e sua principal característica era o lançamento mútuo de todo tipo de líquidos (até sêmem ou urina) ou pós (geralmente pó de arroz) que estivessem disponíveis.
Naqueles anos 1850, Santos possuía pouco mais de 7.400 habitantes. Boa parte da população se incomodava com a brincadeira de mau gosto. Assim, em 1857, vários homens, representantes da classe mais abastada, se reuniram para criar a Sociedade Carnavalesca Santista, que nasceu com a tarefa de organizar uma festa sensata e alegre, que pudesse ser usufruída por toda a família. O primeiro presidente da Sociedade foi Antônio Marques de Paes, que era o presidente da Câmara Municipal, ou seja, o Manda-Chuva da cidade (a Câmara Municipal era quem conduzia os rumos administrativos de Santos).
Depois de produzir o estatuto da Sociedade, no domingo de Carnaval de 1858, os foliões realizaram o primeiro desfile da cidade, saindo do Teatro do Largo do Campo (atual Praça Mauá, esquina com Riachuelo) e percorrendo as principais vias santista.
Bandeira Júnior, em suas pesquisas, conseguiu obter um jornal da época, “O Comercial”, que possui um texto pitoresco sobre como foi o primeiro evento de Carnaval da cidade de Santos, transcrito logo abaixo:
“Ao meio-dia em ponto, atroaram os ares numerosos foguetes queimados à porta do Teatro. Já o prazer fazia pular todos os corações, e a ansiedade se pintava nas feições do povo: estava prestes uma interessantíssima festa. Às 3 horas, novos e sucessivos foguetes fizeram-se ouvir partindo do mesmo ponto: era o aviso, a chamada dos máscaras. Com efeito, às 4 horas, no Largo do Campo, era digno de apreciar-se a chusma de carros enfeitados que se achavam reunidos, os muitos cavaleiros que campeavam em seus vistosos ginetes, os sons elétricos da banda de música, o povo que se apinhava à roda dos grupos de elegantes máscaras, a alegria, a curiosidade, o entusiasmo que transluziam em todos os semblantes!
Começou o passeio: descrever a animação que houve, no jogo de ramalhetes e confeitos a boa ordem que presidiu todo divertimento, a galhardia dos máscaras e desembaraço das senhoras, fora impossível; por isso damos mão a tal empresa. Diremos somente, quanto aos máscaras, que se apresentaram em geral vestidos (fantasiados) com riqueza, e, o que é ainda mais apreciável, o que é ouro sobre azul, com o mais apurado bom gosto. Todos trajavam por figurinos, quer representativos de costumes históricos e de atualidade, quer fantásticos. E respectivamente às senhoras, que se portaram como verdadeiras brasileiras que são, amigas do progresso e das inovações próprias da civilização moderna.
Segunda-feira gorda nada houve durante o dia, mas à noite realizou-se o prometido baile da Sociedade Carnavalesca Santista no Teatro Lírico. Eram apenas 8 horas da noite, já as galerias do Teatro, resplandecentes de luzes, ostentavam uma brilhante exposição do belo sexo. A princípio frio e desanimado, do meio para o fim o baile assumiu outra fisionomia, esteve magnífico; compareceram máscaras interessantes, sérios e burlescos, e muito se dançou.
Amanheceu o terceiro dia, tão lindo e risonho como os dois dias passados. Ao meio-dia, da porta do Teatro, soltaram-se numerosos foguetes e ali tocou algumas bonitas peças a música do batalhão da Guarda Nacional. No mesmo momento, um carrinho, carregando dois máscaras grotescos, percorria as ruas da Cidade anunciando que, naquele dia, havia o enterro do Carnaval.
À tarde, repetiu-se o divertimento do primeiro dia com mais animação, mais entusiasmo, mais alegria, mais loucura, recolhendo-se o congresso ao Teatro às Ave-Marias …
Não nos esqueçamos de mencionar que, no primeiro dia de passeio, o congresso foi obsequiado com magnífico copo de água, pelo ilmo. sr. tenente-coronel Bernardino Ferreira da Silva, e no terceiro com uma lauta e delicada mesa de viandas, doces e bebidas, pelo seu digníssimo diretor (e prefeito da cidade), o ilmo. sr. vereador Antônio Marques de Paes.
Às 11 horas de terça-feira procedeu-se ao enterro do Carnaval. Uma charola carregada de presuntos e garrafas de vinho, no meio de archotes e lastimosos cantos de adeus, percorreu as ruas da Cidade iluminadas pelos habitantes, prevenidos com antecipação. À meia-noite dançava-se no Teatro o galope infernal, última peripécia da soberba comédia, o Carnaval.
Tais foram nesta cidade os folguedos dos dias consagrados ao deus da Folia. Correram rápidos para nos deixarem saudades de tantas loucuras e prazeres”.
Praza aos céus que, nos anos vindouros, o Carnaval se festeje com tanto entusiasmo, tanto gosto, tão grande harmonia!“
Como se pode notar, o primeiro desfile, do primeiro Carnaval de Santos, foi uma festa inesquecível e merecedora de ser continuada por muitos e muitos anos.