Com a saída da ordem religiosa é encerrada uma longa história dedicada à educação na vila santista
Santos, quinta-feira, 30 de junho de 1759. Como regularmente faziam logo pela manhã, os padres jesuítas do Colégio de São Miguel acordaram cedo e, após concluírem suas orações, foram cumprir, cada qual, sua parte na intrincada cadeia de afazeres da ordem religiosa. O dia amanhecera sombrio, repleto de nuvens negras conduzidas através dos cumes da serra ao sabor do forte vento que soprava de leste. Um claro sinal de mau presságio, praguejavam os colonos que atravessavam o largo da exuberante Matriz do Rosário, a caminho do forte da vila. Repentinamente, um jovem mensageiro surgia correndo na direção do velho prédio jesuítico. Trazia ele às mãos notícias preocupantes vindas da metrópole, Lisboa, depositadas em cartas rabiscadas de modo perturbador, possivelmente escritas às escondidas. Nelas, o remetente dava conta de que importantes membros da Companhia de Jesus estavam sendo acusados de traição, por terem supostamente participado de um atentado, fracassado, à vida do Rei José I. A inquietante situação, no entanto, tornou-se o aceno desejado pelo homem forte do Reino Lusitano, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, para iniciar uma perseguição feroz contra os jesuítas, não só em Portugal, mas em todos os territórios de sua posse, como o Brasil.
Os padres e freis alocados em Santos se entreolharam após a leitura da carta. Uma longa história de fé, catequese e ações educacionais, construída há mais de 150 anos por nomes como Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e tantos outros, estaria prestes a ser desmantelada, a qualquer momento.
A origem
Os jesuítas não foram os primeiros religiosos a pisarem no Brasil. Antes deles vieram os franciscanos, como o padre Gonçalo Monteiro, primeiro pároco da Capitania de São Vicente, integrante da expedição colonizadora de Martim Afonso de Sousa, de 1532. No entanto, foram os missionários da Companhia de Jesus (criada em 1534 por Inácio de Loyola) a estabeleceram, primeiro, estruturas complexas para a pregação e a catequese, com objetivos claros de converter os “gentios da terra” (os índios) à religião católica. Já em 1550, o jesuíta Leonardo Nunes criava, em São Vicente, o primeiro Colégio dos Meninos, dedicado à causa catequista. Nesta época, a vila de Santos (fundada em 1545) já começava a apresentar uma ascendência econômica na Capitania, mas ainda não era tida como prioridade aos padres da Companhia de Jesus. Somente em 1585 é que os jesuítas resolveram se estabelecer em terras santistas, principalmente por conta do gesto dos conselheiros da vila (equivalente aos vereadores), que doaram aos padres a área onde ficava a primeira Casa do Conselho, nas proximidades do Caneo (lagamar do estuário).
Durante dez anos, os padres se dedicaram a erguer seu complexo religioso, executando a obra projetada pelo jesuíta Francisco Dias (considerado o primeiro arquiteto da Companhia de Jesus a atuar no Brasil), concluída em 1598. Pelo colégio, dedicado a São Miguel, passaram muitos dos jovens santistas, como os irmãos Gusmão (Bartolomeu e Alexandre), antes de deixarem a região para alcançarem suas famas na Europa.
Os jesuítas e os escravos
A força jesuítica no Brasil era imensa e confrontava, muitas vezes, o interesse da Coroa, especialmente na questão indígena, uma vez que os padres da Companhia eram radicalmente contra a escravidão dos naturais da terra brasilis. Porém, a mesma postura não era adotada em relação ao escravo africano, tanto que muitos conventos jesuítas mantinham cativos negros sob sua posse. Um fato que corrobora a existência de escravos entre os padres do Colégio de São Miguel foram os relatos sobreo achado da imagem de Santa Catarina de Alexandria, em cerca de 1663, por pescadores cativos dos jesuítas (a imagem fora arrancada da capela que existiu no sopé do Outeiro de Santa Catarina, em 1591, durante a invasão da vila de Santos pelos piratas comandados por Thomas Cavendish, e atirada no mar).
Expulsão, fato consumado
Os jesuítas haviam se tornado uma “pedra no sapato” para o regime absolutista consolidado em Portugal após o restabelecimento de sua independência, em 1640, ainda que diversos monarcas fechavam os olhos aos métodos de ação propostos pela Companhia de Jesus em suas missões além-mar. Mas este não fora o caso de José I, que se tornara um opositor ferrenho da Ordem criada por Loyola, inflamado pelo Marquês de Pombal. Contribuiu ainda para o desfecho que se aventava, o movimento Iluminista, responsável por sacudir a Europa católica no século XVIII, por meio de seus princípios de antropocentrismo (o avanço da ciência e da razão) quebrando, assim, velhos dogmas (políticos, religiosos e comerciais).
Assim, ainda que este articulista tenha feito uso de linguagem poética para ilustrar os momentos que antecederam a expulsão dos jesuítas de Santos, os fatos concretos se revelaram catastróficos para a Companhia de Jesus no Brasil. A Coroa sequestrou todos os bens de seus membros (terras, imóveis, objetos, dinheiro), deportando-os ainda para os Estados Papais (situado na atual Itália), quando não os encarceravam em masmorras.
A situação dos religiosos só se inverteria após a morte de José I, em 1777, e a ascensão ao trono de sua filha Maria que, por sua vez, odiava o Marques de Pombal. Um de seus primeiros atos foi exonera-lo do governo. A despeito desta ação, a Companhia não conseguiu restabelecer-se em Portugal e suas possessões, uma vez que as propriedades que lhes haviam pertencido já estavam nas mãos de outros donos.
A edificação jesuítica
O prédio do Colégio de São Miguel ainda sobreviveria na paisagem santista por quase um século. Depois de desocupada, à força, pelos jesuítas, o local acabou tendo várias utilizações. Funcionou como hospital militar, como residência oficial dos comandantes gerais da Vila de Santos (inclusive teria sido o local onde D. Pedro I ficara hospedado em sua passagem pela terra santista em setembro de 1822), abrigou temporariamente a Santa Casa de Misericórdia, os correios e as atividades alfandegárias do Porto de Santos. Aliás, esta foi a última função da edificação, antes de ser demolida, em 1877, para dar lugar, justamente, ao prédio da Alfândega (não o atual, que é de 1934, mas um que existiu no mesmo lugar entre 1880 e 1927). O desaparecimento do velho prédio jesuíta é mais uma das perdas inestimáveis registradas na história santista.
Mito derrubado
Embora tenha sofrido várias modificações desde sua construção em 1595, por muitos anos alguns historiadores chegaram a acreditar que a antiga Matriz (1754-1908) fazia parte do complexo jesuítico, não levando em conta que a edificação possuía seu próprio templo (Igreja de São Miguel). Em 1948, esta teoria caia por terra com a descoberta de plantas originais que se encontravam no Arquivo Militar do Rio de Janeiro, revelando a existência de uma torre central, onde ficava o sino da igreja. Esta torre deve ter sido demolida nas primeiras décadas do século 19.