Santos viverá algo inédito e empolgante neste raro ano de dezenas repetidas (2020): será sede do evento anual das Cidades Criativas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). Tal honraria se dá pelo fato de o município ocupar lugar de destaque internacional no quesito da inovação, o que apenas corrobora o DNA da terra santense, vanguardista desde os idos coloniais.
Braz Cubas, nosso fundador, que o diga. O comandante da Capitania de São Vicente foi hábil e criativo quando decidiu, em 1541, deslocar o atracadouro do porto, da atual região da Ponta da Praia, para as cercanias do Outeiro de Santa Catarina. A consequência deste ato culminou na necessidade de dotar o povoado (que ainda ostentava seu nome ancestral – Enguaguaçú) de um hospital, haja vista que a nova localização do porto agradou navegadores e outros aventureiros que passavam por estas paragens, e estes se multiplicaram, assim como multiplicaram os necessitados por cuidados. Cubas foi igualmente criativo ao trazer para cá o modelo das Misericórdias de Portugal, fundando em 1543 uma Santa Casa sob invocação de Todos os Santos, uma vez que este ato se dera num dia 1º de novembro, dedicado aos festejos em honra a todos os santos e mártires da religiosidade católica.
À esta época, a região já contava com seus engenhos de cana-de-açúcar, uma inovação em se tratando da Terra Brasilis, sua primeira atividade econômica de produção (excetua-se neste caso a ação extrativista do pau-brasil). Entre 1545 e 1546, Cubas elevaria o povoado à categoria de Vila e lhe daria o nome “Santos”, como referência, e deferência, ao seu hospital inovador.
A primeira fase colonial santista (1532-1615) foi repleta de boas e más ideias. A região dera um belo salto em termos de estrutura e aprendera muito com seus erros. Fortificações, capelas, engenhos, curtumes, prédios públicos e colégios surgiram neste período, cada qual pontuando sua vanguarda em termos nacionais.
Um salto sem criatividade
A partir de 1615, Santos viveu um período longo de ostracismo. Após a Metrópole (Lisboa) decidir concentrar a atividade açucareira na região nordeste do Brasil, a Capitania de São Vicente teve sua importância minorada. As atividades comerciais eram pequenas e este lado do país só pensava em avançar interior adentro na busca das jazidas de pedras preciosas que descobriram nos sertões das Minas Gerais e Goiás. Dentro deste período letárgico que, de acordo com muitos memorialistas e historiadores, seguiria até a segunda década do século 19, podemos dizer que a região só se destacou com inovações em uma oportunidade: quando da construção da Calçada de Lorena (1790-1792), tida como a maior obra de engenharia da América do Sul no século 18. A estrada, que passou a ligar o Planalto de Piratininga à Baixada Santista com uma qualidade inconteste, foi um importante ponto de partida para a grande virada histórica de São Paulo e, podemos afirmar, do Brasil.
O século da transformação
Um pequeno grão de cor esverdeada que, num processo de torrefação, torna-se matriz para uma das bebidas mais apreciadas no mundo, foi a mola propulsora que colocou Santos definitivamente num patamar extremo de inovação. A vila, que ganharia o status de cidade em 1839, mais conhecida agora por ter sido o berço de homens notáveis, como Bartolomeu e Alexandre de Gusmão, José Bonifácio de Andrada e Silva e José Feliciano Fernandes Pinheiro (o Visconde de São Leopoldo), experimentaria um novo caminho evolutivo, gradual, porém com muitos efeitos colaterais.
Os santistas potencializaram seu porto em função das emergentes safras de café e abriram suas portas para a modernidade. O século 19, também chamado de século da transformação, de fato impulsionou a vida santense, trazendo para cá o que havia de mais tecnológico em termos de transporte, serviços públicos, comunicação e até de lazer. Correndo lado a lado com a então capital do Império, e depois da República, o Rio de Janeiro, os santistas viram chegar no Brasil o telégrafo, a ferrovia, a fotografia, o cinema, o sistema de bonde, a imprensa, a iluminação elétrica, a telefonia, o luxo e o requinte dos espaços hoteleiros, a aviação e o automóvel, sem falar de outros inúmeros itens menores.
A cidade “explodiu” em termos demográficos e, em função disso, mergulhou num caos sanitário. Assim como o Rio de Janeiro, Santos viveu décadas enterrando milhares de vítimas em razão de sua evolução descontrolada. Foi aí que protagonizamos outra excepcional ação criativa, liderada por um engenheiro sanitarista que dispensa maiores referências: Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. Seu plano geral de saneamento se tornou referência mundial e outorgou a Santos uma nova vida, como um renascimento, apropriado para uma nova era.
Vanguardas em profusão
Ao mesmo tempo em que Saturnino entregava sua obra para a cidade, Santos sentiu-se à vontade para “voar”, desabrochar-se de vez como um lugar de vanguarda, de pura criatividade. O porto crescia a olhos vistos, a urbe avançava para os lados da orla com qualidade e inovações. O bonde, principal meio de transporte coletivo urbano, ganhou eletricidade, avançando sobre os bairros, que se formavam a olhos vistos. Passamos a ter o mais luxuoso hotel da América Latina, a primeira bomba de gasolina, os primeiros cursos profissionalizantes do país. Nossos céus eram rasgados pelos pioneiros da aviação. Pelo mar, a porta escancarada para a imigração, vieram novas ideias, ânimos, rumos. Nossos sindicatos surgiam, se fortaleciam e protagonizariam fatos históricos.
Nossas mulheres galgavam espaços na mídia com sua beleza e talento. Tivemos a primeira miss, Zezé Leone, e cantoras de rádio que romperam fronteiras internacionais, como Leny Eversong. Até o primeiro cachorro genuinamente nacional, o cão fila, teve seu berço de registro em Santos, nos anos 1950. Uma festa! Por falar em festa, o nosso Carnaval, iniciado no século 19, se tornou referência no Brasil. A folia de Momo era tão significativa que cultuamos o rei com o maior reinado da história carnavalesca brasileira (Waldemar Esteves da Cunha, por 50 anos).
E, por falar em realeza, o que dizer do nosso futebol, que encantou o planeta e até uma guerra parou na África, graças a um soberano de nome Pelé? Sim, o esporte mais popular do país teve em Santos inúmeras marcas. Marcas que ultrapassaram as quatro linhas do campo e ganharam outros ambientes. Em Santos, testemunhamos o nascimento do remo e do surfe para o Brasil. Nas areias de nossas praias, uma prática exclusiva, o tamboréu. Pelas ruas, o triátlon elevou Santos a um patamar internacional, sem falar do fisiculturismo, da canoagem, do ciclismo, da natação, do motociclismo, da ultramaratona e tantas outras modalidades. Nada mais justo para uma cidade que chegou a ser considerada a mais esportiva do país, vencedora nata das Olimpíadas brasileiras, os Jogos Abertos do Interior.
Do ponto de vista urbanístico, testemunhamos os prédios rasgarem os céus. A cada década, eles se sobrepõem, cada vez mais altos. Houve um tempo em que muitos vergaram, criando uma atmosfera curiosa na orla praiana, as nossas “Torres de Piza”. Hoje, com técnicas modernas e criativas, possuímos edificações que nos fazem parecer formigas. Olhando para trás, podemos ver, com orgulho, que nossa arquitetura eclética transformou nossas vias em um verdadeiro museu a céu aberto.
Nosso maior cartão postal, a praia, ostenta um jardim de primeira grandeza que, por sua vez, ganhou as páginas do famoso Guiness Book, assim como o criativo cemitério vertical do Marapé, que figurou entre os mais altos do mundo.Inovamos também no comércio, e de várias formas, tendo inclusive criado o “primeiro shopping da América Latina”, o SuperCentro Boqueirão.
Por tudo isso e muitos outros detalhes que dariam um caderno especial para relaciona-los, é que afirmamos que nossacidade respira ares criativos. O gênio inventivo e valoroso é parte indelével da alma santista. Nós, que abrimos espaço para a colonização deste imenso país, lutamos contra invasões piratas, defendemos a causa da Independência, da abolição da escravatura, da República, dos direitos dos trabalhadores, dos direitos humanos e tantas outras batalhas, aprendemos na marra a inventar e reinventar caminhos e soluções. Assim, figurar como protagonista mundial na condição de cidade criativa �� ter o reconhecimento amplo e irrestrito de algo que já está na nossa essência.