Nossos olhares se encontraram e, de repente, pareceu que todo o mundo congelou à nossa volta. A aproximação foi inevitável, como se os nossos corpos fossem imãs de polos opostos. O rosto dela se inclinou para cima, lentamente, e foi possível, de alguma forma, ver dentro dos seus olhos o desejo latente. Sem dizer uma só palavra, nossos lábios se tocaram, inicialmente tímidos, um gesto quase protocolar. Mas, em fração de segundos, nosso beijo se tornou intenso, voraz, deliciosamente apaixonado.
Pera lá, pode parar tudo! A cena romântica acima descrita (e, certamente, podemos reputá-la como um autêntico lance de amor) decididamente não teve lugar em um dos eventos mais… como poderíamos dizer… curiosos… da memória santista. Abrindo a série “Esquisitices da Nossa História”, vamos relembrar a Maratona do Beijo, evento promocional lançado pelo Shopping Miramar, do Gonzaga, no ano de 1993, responsável por suscitar grandes discussões na cidade. Afinal de contas, beijar na boca por horas a fio, em pleno espaço público, numa exibição quase que circense, pode ser considerado um ataque à moral e aos bons costumes?
Essa história nasceu da cabeça dos marqueteiros responsáveis pelo maior centro de compras de Santos à época: o Shopping Miramar, fundado havia apenas seis anos em pleno coração do Gonzaga. O espaço comercial abrigava então 132 lojas e movimentava cerca de 3 milhões de dólares mensais. A proposta do evento era atrair a atenção dos consumidores por meio de uma promoção que tinha por objetivo o aquecimento das vendas a partir do Dia dos Namorados, 12 de junho. Para potencializar a estratégia, os organizadores tentaram envolver o Guiness Book of Records, uma vez que todos acreditavam na possibilidade da quebra da marca estabelecida para o beijo mais longo da história (dentro de regras com intervalos), de 17 dias, registrada em 1984, por um casal norte-americano.
Os representantes do Guiness no Brasil, contudo, acabaram não enviando um fiscal a Santos, o que não desmotivou, em absoluto, as dezenas de casais que se inscreveram no inusitado certame. O que todos realmente desejavam, e estavam dispostos a lutar até a última saliva, era pelo grande prêmio da contenda, um automóvel Gol 1000, zero quilômetro, avaliado em 342 milhões de cruzeiros. Desta feita, naquele 12 de junho de 1993, cinquenta e um casais começavam a protagonizar uma das batalhas mais excêntricas da história santista, um briga de beijoqueiros que prometia abalar o cotidiano da cidade.
A regra era simples. Os casais se “atracavam” das 10 às 22 horas, com direito a um intervalo de uma hora para o almoço e dois de cinco minutos para idas ao banheiro. Se quisessem dizer alguma coisa, deveriam falar com o canto da boca. É, não chegava a ser exatamente romântico.
Paixão e stress
Estava mais do que claro que a paixão não fora, em nenhum momento, o combustível motriz que movimentou os “acalorados” beijos exibidos em público pelos participantes da curiosa maratona. Até porque, os que se arriscavam a manter contatos labiais, digamos, mais convencionais, ou arrebatadores, estavam sujeitos a abandonar prematuramente a prova. E como não havia ninguém disposto a sair dali com as mãos abanando, a tática comum adotada pelos “atletas dos lábios” era a mesma: colar-se à boca do parceiro e manter-se, por horas a fio, expostos ao curioso público, que se aglomerava a cada dia em maior número, boquiaberto diante do esquisito espetáculo.
Todos estavam cientes que os grandes inimigos da batalha eram o cansaço físico e, sobretudo, o stress mental. Para derrotar o segundo, o maior recurso, que se tornou comum à maioria dos participantes, era monitorar visualmente o movimento dos curiosos e contar, quantificando, o que havia à volta, fossem letreiros, objetos expostos nas vitrines das lojas e até consumidores que subiam e desciam pelas escadas rolantes. A distração matemática, na maioria dos casos, funcionou como um bálsamo para a alma dos “apaixonados”.
Outro suporte que ficou à disposição dos concorrentes foi uma equipe de atendimento médica e fisioterápica. Não era incomum testemunhar os participantes sendo submetidos à aferição de pressão arterial no pleno exercício do beijo.
Mídia nacional e cupido
O concurso atraiu rapidamente a atenção da opinião pública e, consequentemente, da mídia de todos os cantos do país. Assim, os casais, durante os intervalos, via de regra eram interpelados por ávidos repórteres de jornais, rádios e emissoras de televisão, todos à caça das melhores e mais inusitadas histórias. As entrevistas revelavam motivações e táticas adotadas para que fosse ao menos mantida a dignidade diante da exposição extravagante. Foi o caso, por exemplo, da dupla formada pela professora de natação Rita Oliveira, 20 anos e 1,59 metro, e o estivador Robson Quintella, 21 anos, 1,98 metro. Os 39 centímetros que afastavam suas bocas da linha imaginária ideal se contituía na maior disparidade longitudinal entre os concorrentes. Assim, para que o beijo funcionasse de maneira confortável, o casal precisou fazer uso, inicialmente, de um banquinho, providencial para que Rita ficasse no mesmo nível de Robson. Os dois, que mal se conheciam quando colaram os lábios pela primeira vez, seriam desclassificados alguns dias mais tarde, quando do endurecimento das regras, cuja alteração se mostraria altamente necessária no transcorrer do concurso. A professora de natação, após não poder fazer uso de sua pequena plataforma, sucumbiu diante do sofrimento do estivador, que padecia com fortes dores nas costas. Estafada, Rita decidiu “jogar a toalha”. Lamentando a derrota, o casal declarou à imprensa que, ao menos, haviam ganhado um prêmio: o amor. Os dois disseram que foram flechados pelo cupido, após duas semanas de beijos “descompromissados”.
Táticas e beijos técnicos
Para se manter “vivo” no jogo, valia qualquer expediente. Beatriz Panzoni, 31 anos, e seu parceiro, Jair Santos, 30, combinaram que, se desse vontade de, por exemplo, espirrar, a sistemática era avisar antecipadamente o parceiro que, por sua vez, morderia o lábio do outro a fim de evitar o desgrude no momento da “tragédia”.
Para manter a mente em ordem, além do exercício matemático, houve quem preferisse fazer uso da modinha de então, os mini-jogos eletrônicos. Quem passava para assistir ao espetáculo ficava chocado com a falta de romantismo da cena.
Mas se o prêmio fosse para quem caprichasse na atuação, o troféu poderia ser dado à dupla formada pelos atores Pietra Diwan, 18 anos, e Márcio Nevi, 21. Os dois não eram casados, noivos, namorados ou “ficantes”. Estavam ali para vencer a prova utilizando as táticas que aprenderam nas aulas de teatro. Pietra se mostrava confiante com sua tática. “Com o nosso treinamento em palco, sabemos beijar sem forçar a musculatura e respirar lentamente. Com isso acredito que chegaremos inteiros até o final”. Não chegaram.
Perdeu carro, mas ganhou perna
Outro caso interessante revelado na Maratona do Beijo foi o do ex-marinheiro Sandro Pons, 24 anos, que providenciara sua inscrição junto com a esposa, Shirlane Nunes, 21. O objetivo do casal era ganhar o carro para, logo depois, vendê-lo. Assim, angariariam recursos para a compra da tão sonhada perna mecânica que Sandro precisava para abandonar a muleta. O marinheiro havia sofrido um sério acidente automobilístico dois anos antes e teve uma das pernas decepadas. Mesmo desclassificado por dormir no ponto, Pons conseguiu alcançar seu objetivo, uma vez que, exibida sua história pela imprensa, o que não lhe faltou foi oferta de ajuda.
Aos macacos, amendoim
Histórias melancólicas à parte, desde o início do concurso os candidatos foram alvo das zombarias lançadas pelo público que, via de regra, soltava gracejos aos participantes. “Só falta jogarem amendoim na gente”, ressentiu-se Vanessa Gonçalves, 20 anos, uma das beijoqueiras. “Me sinto num zoológico, com tanta gente olhando pra nós”, disse Maria Nilce Ribeiro, então a mais velha participante da Maratona, com 39 anos. Seu marido, Arnaldo, 34 anos, chegou a raspar o bigode, para evitar o incômodo de horas e horas de lábios colados.
As gracinhas, entretanto, eram “fichinha” diante do cansaço físico. Para todos, não havia nada pior do que aguentar em pé, por horas a fio, numa posição extremamente desconfortável.
Polêmica
Desde o primeiro dia de prova, santistas e turistas se aglomeravam para ver de perto, e com os próprios olhos o dantesco espetáculo. Os jornais da cidade acompanhavam o dia a dia na maratona e publicavam as impressões dos espectadores. Lívia Soares, de 84 anos, mãe de quatro filho, dez netos e 28 bisnetos, opinou que reputava interessante a promoção, mas foi enfática ao dizer que em seu tempo “esse tipo de coisa jamais poderia ser feito em público”.
Tal pensamento “antiquado”, contudo, era compartilhado por muitos outros santistas. Parte da sociedade chegou a rotular a Maratona do Beijo como um “espetáculo de gosto duvidoso”. O jornal A Tribuna recebia diariamente dezenas de cartas e telefonemas, todos de leitores revoltados com o que chamavam de “exploração da miséria humana”. A Câmara Municipal de Santos entrou na discussão, tendo o então vereador Noé de Carvalho, como o mais aguerrido opositor ao concurso. Em pronunciamento, o edil rotulou a promoção como um atentado violento ao pudor. Como um tiro pela culatra, o que era pra ser apenas um evento curioso, assim, acabou se tornando alvo de uma enxurrada de censuras. Afinal, a maior parte dos participantes era formada por pessoas desempregadas, ávidas pelo prêmio a qualquer custo, ansiosas para aliviar suas condições financeiras caóticas.
Para os organizadores, entretanto, o tiro foi considerado como certeiro. Independentemente da visão dos curiosos, o faturamento do shopping foi catapultado para as alturas. Só a Mesbla, uma das lojas âncoras do Miramar, faturou 900 mil dólares a mais naquele mês, em função da atração.
Entre tapas e beijos
Com quatro dias de prova (16 de junho), 26 das 49 duplas inscritas já haviam abandonado o barco. Mais quatro dias, outras seis desistências. No dia 26, ainda resistiam 16 casais, todos, contudo, à beira de um colapso estressante.
Somava-se às críticas de parte do público, a nítida rivalidade entre os participantes. O clima de guerra já tomara espaço desde o dia 17 de junho, quando, no horário reservado para o jantar (entre 18 e 19 horas), dois casais que contavam com o patrocínio de uma das lojas do shopping chegaram a ser agredidos por concorrentes insatisfeitos com o que definiram como “evidente favorecimento”. O caso, que chegou a ser registrado no 7º Distrito Policial do Gonzaga.
Os ânimos iriam ficar ainda mais tensos quando o concurso ultrapassou a marca dos 25 dias. Em 7 de julho, os promotores da Maratona do Beijo, notando o prolongamento exarcebado da prova, muito em função da determinação demonstrada pelos casais disputantes, resolveram dificultar a brincadeira, reduzindo os horários de almoço, jantar e as paradas ao banheiro. Sob a nova regra, alguns casais caíram. Diante da mudança regulamentar, a luta pela “sobrevivência” se intensificou.
Tentativa de greve
No 45º dia de prova, os ânimos dos casais estavam à flor da pele. Alguns não se conformavam com a mudança severa na regra e foram para o confronto contra os mentores da Maratona do Beijo. Naquele momento, oito duplas ainda resistiam na contenda. Diante da possibilidade de maior arrocho no regulamento, houve um movimento favorável à paralização em protesto. Para alguns participantes, as mudanças nas regras eram arbitrárias e desumanas. Na manhã do dia 27 de julho, um dos concorrentes, mais nervoso, gritou palavras de ordem: “Ninguém entra, ninguém sai”. Um dos casais, porém, insistiu em iniciar a programação, e acabou barrado pelos outros. Diante da ideia de greve, os promotores não titubearam e fizeram a ameaça: “Vamos fazer a contagem de 30 segundos. Quem não voltar, está desclassificado”. Pouco antes do tempo anunciado, os oito casais já estavam boca a boca.
Maratona na Playboy
Quando a contenda atravessou o quinquagésimo dia de resistência, publicações de grande circulação nacional passaram a se interessar pelo inusitado certame que acontecia em Santos. A primeira a desembarcar na cidade praiana foi a “Veja”, a mais influente revista semanal do país, publicada pela editora Abril. Logo depois chegava o famoso semanário masculino Playboy, representado pelo premiado jornalista Audálio Dantas, nacionalmente conhecido por ter sido o primeiro presidente da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), entidade fundada em 1946.
Ao chegar no Miramar, o experiente jornalista ficou impressionado com o que viu. Três casais, altamente determinados, resistiam bravamente, com suas bocas ainda coladas no 57º dia de competição. Escreveria ele em seu artigo, publicado na edição de agosto de 1993 da Playboy: Cada um dos casais ainda na disputa tem uma história cujo fim é a razão de tanta resistência. O casal número 8 – os outros são o 2 e o 3 – é o que dá mais sinais de cansaço. O rapaz, magro, rosto negro encovado, olha para os lados com os cantos de seus olhos arregalados e aflitos. Sua companheiro é cheinha de corpo, morena jambo de bunda grande, arrebitada, fato que provoca um comentário de ordem profissional do médico encarregado de acompanhar os concorrentes: “Não sei como a coluna dela aguenta esse peso 57 dias seguidos”.
Audálio elegeu o casal 8 como figura central de sua narrativa. Acompanhando de perto os dias que se seguiram, o jornalista registrava os mínimos detalhes daquela prova de sacrifício. “Os pés da moça estão muito inchados, sobrando nas sandálias verdes. Ela olha em torno, com o rabo dos olhos semicerrados, como se avisassem que o sono pode desabar a qualquer momento, pondo um fim àquele sonho de aflições. A moça número 8 sonha ali mesmo, de pé, lábios colados aos de seu companheiro, a se agitar lentamente de um lado para o outro, o corpo indo e vindo, como um pêndulo, os pés em brasa. É um sonho de quem não pode dormir, quebrado em pedaços, de mistura com realidade – aquela gente em volta, olhando como se olham os bichos do zoológico, as luzes, os letreiros, os sons de vozes e de músicas embaralhadas. Ela sonha, imaginem, com seu próprio companheiro de maratona, seu namorado, aquele que está ali, de lábios colados aos seus. Mas estão em outro lugar, só os dois, beijando-se de verdade. Desespera, ele segurando sua cabeça para evitar que se descolem os lábios, porque o regulamento não permite.”
O arrocho na regra ficou implacável. O início da jornada diária foi antecipada para as 7h30, com o Shopping ainda fechado, e o encerramento das atividades beijoqueiras para as 2h30 da madrugada, quando as únicas testemunhas eram apenas os juízes. Além do beijo muito puxado, teve gente que protagonizou o inevitável xixi nas calças. “É pra derrubar mesmo”, admitiu um dos coordenadores da Maratona. Ainda assim, a resistência.
Beijo 24 horas
A direção do Shopping Miramar e os organizadores do concurso, diante da perseverança demonstrada pelo trio de casais, resolveu fazer uso, então, do que todos passaram a chamar de tática de “extermínio”. A partir do dia 9 de agosto, o beijo passaria a ser 24 horas. Não haveria mais intervalo. A partir dali, era tudo ou nada.
No dia D, cada um dos sobreviventes entrou no “Beijódromo” acreditando ser capaz de resistir à dura reta final e colocar as mãos no Gol 1000. Audálio, da Playboy, testemunhou o sofrimento dos competidores, em especial dos seus personagens centrais. “O rapaz anuncia à sua companheira, com gestos nervosos, a sua decisão de desistir. Ela insiste, apertando contra o seu corpo, o corpo do companheiro, mas ele repete o gesto, dizendo: não, acabou! Um fiscal considera que eles estão acabando o namoro, e a maratona continua, apesar daquele torpor, daquela incômoda sensação de ter o corpo boiando que tomou conta do rapaz número 8”
Dois casais vencem a Maratona do Beijo
Após 62 dias, 8 horas e 15 minutos de duração, terminou às 18h15 de ontem (12 de agosto) a Maratona do Beijo, realizada em um shopping de Santos. Marcio José, 20 anos, e Ivy Simões de Lima, 19, foram considerados vencedores após a desistência de Sandro Gemelgo, 20 e Neusa Ribeiro, 26.
Muita gente foi ver a entrega dos carros aos dois casais finalistas da Maratona do Beijo. Chave na mão, os ganhadores distribuíram beijinhos aos amigos e ao pessoal que acompanhou a competição desde o início. Neuza de Jesus Ferreira, 26 anos, que ficou em segundo lugar, disse, ao final da maratona, que ficou com fobia de beijo. “Quando subia a escada rolante para chegar ao beijódromo, a garganta secava e eu começava a tremer”.
É, o amor, ah, o amor!