
Cidade japonesa abriu a galeria das cidades irmãs de Santos em 1971.
Santos, 6 de outubro de 1971. O relógio do Salão Nobre da Prefeitura marcava 16 horas quando a movimentação ganhou outro compasso. As portas do gabinete se abriram e, com elas, o prenúncio de um gesto que a cidade jamais havia testemunhado. Após meses de expectativa anunciada pela imprensa, Santos estava prestes a firmar, pela primeira vez, um pacto oficial de irmandade com uma cidade estrangeira. Um ato carregado de simbolismo, que inauguraria uma nova forma de amizade internacional.
Porém, quem, naquela sala, poderia prever que o destino reservaria ao Japão — tão distante em geografia quanto singular em cultura — esse papel pioneiro? Muitos talvez imaginassem um elo com a cidade do Porto, berço lusitano de Braz Cubas, nosso fundador. Ou com Coimbra, onde se formaram figuras decisivas de nossa história, como José Bonifácio de Andrada e Silva e Alexandre de Gusmão. Quem sabe Barcelona, com quem compartilhamos a devoção à Virgem do Monte Serrat. Mas, como a própria amizade ensina, nem sempre o caminho mais esperado é o mais profundo.
E foi assim que Santos estendeu a mão à longínqua Shimonoseki, cidade portuária da província de Yamaguchi, no sul do Japão. Uma escolha que não se impôs por semelhança imediata, mas por afinidade de trabalho e vocação. E o que se firmou ali foi o nascimento de uma amizade selada com emoção, diplomacia e propósito.
No âmbito oficial, o ato foi formalizado como um convênio de cidades-irmãs. Na prática, tratou-se do estabelecimento de uma parceria entre Santos e Shimonoseki, fundamentada em interesses comuns voltados ao desenvolvimento cultural, educacional, tecnológico e institucional. O acordo não teve como foco vantagens econômicas imediatas, mas sim o fortalecimento de valores compartilhados, com destaque para o trabalho, o progresso, a educação e a amizade entre os dois povos.
A cerimônia
A cerimônia, enfim, teve início com a assinatura do documento pelos dois representantes máximos das cidades: Katsumi Igawa, prefeito de Shimonoseki, e o general Clóvis Bandeira Brasil, interventor federal em Santos (nesta época, os prefeitos santistas não eram eleitos pelo povo, mas indicados pelo Governo Federal). Na declaração conjunta, ambas as administrações destacaram as semelhanças entre as cidades, como a topografia, a vocação industrial e portuária e a importância cultural. Declararam-se empenhadas em colaborar mutuamente no desenvolvimento das relações culturais, científicas, tecnológicas, comerciais e sociais. Propuseram, também, aproximar seus povos por meio de ações públicas que reforçassem o sentimento de irmandade.
Katsumi Igawa, sempre sorridente, falou com clareza sobre os princípios que nortearam esse tipo de compromisso. Segundo ele, “lucros ou aspecto material, o acordo de cidades-irmãs não previu, porque acima de tudo estávamos interessados na amizade, na harmonia espiritual com todos os povos.” Para o prefeito japonês, a irmandade entre cidades foi um esforço contínuo de paz, entendimento e colaboração, iniciado em 1955, quando a sua cidade firmou o primeiro desses acordos com Minesota, nos Estados Unidos. Desde então, Shimonoseki firmara dezenas de parcerias semelhantes — mas Santos, afirmou, foi a primeira cidade brasileira.
A chegada da comitiva japonesa ao Brasil havia se dado por Viracopos, às 8h55 da manhã do dia anterior, num voo vindo de São Francisco, Estados Unidos. A delegação estava composta pelo prefeito Igawa, pelo presidente da Câmara de Shimonoseki, Toshiichi Hatakenaka, e pelo chefe de gabinete Kazuhiko Harada. Recebidos por uma comitiva organizada pela Associação Japonesa de Santos, composta por nomes como Jorge Suga, Issamu Okamoto, Tosuki Nomura e Yoshio Mizobe, os visitantes seguiram para Santos em meio a grande expectativa. Coube à Banda da Polícia Militar executar os hinos nacionais quando os visitantes chegaram ao Paço Municipal.
A agenda oficial começou no mesmo dia, com a assinatura do termo de compromisso às 16 horas no Salão Nobre da Prefeitura, seguida por uma sessão solene na Câmara Municipal. Durante a solenidade, o vereador Ely Carvalho da Silva, da Arena, fez um discurso de saudação, recordando a chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, em 1908, a bordo do navio Kasato Maru, que aportou justamente em Santos. O parlamentar também reconheceu o papel fundamental de lideranças locais na aproximação entre as duas cidades, como Jorge Suga, João Yogui e Tomoichi Kobuchi, bem como o apoio diplomático e institucional do dr. Áureo Rodrigues (então secretário de Saúde e intermediador do acordo) e do interventor Clóvis Bandeira Brasil.
Troca de presentes
Em retribuição à hospitalidade brasileira, a comitiva japonesa presenteou as autoridades locais com medalhas, diplomas de cidadania honorária e objetos simbólicos. O interventor Clóvis Bandeira Brasil recebeu o título de cidadão honorário de Shimonoseki — o primeiro brasileiro a receber tal honraria. Já Remo Petrarchi, presidente da Câmara dos Vereadores de Santos, também foi homenageado. A cidade, por sua vez, presenteou os visitantes com uma bandeja de prata com o escudo de Santos ladeado pelas bandeiras do Brasil e do Japão, e uma pasta de couro de crocodilo marrom.
À noite, um banquete no Salão de Mármore do Parque Balneário selou a primeira jornada com elegância. No dia seguinte, os visitantes cumpriram uma programação que incluiu visita ao Panteão dos Andradas, ao Orquidário, ao Aquário, à Praça Engenheiro José Rebouças, e a empresas da colônia nipo-brasileira. O encerramento foi com um jantar no restaurante Jangadeiro, oferecido pela Associação Japonesa de Santos. O retorno da delegação a São Paulo se daria na manhã seguinte.
Legado
Cinquenta e três anos decorridos daquele outubro de 1971, a semente da amizade plantada floresceu em muitos caminhos. Santos mantém hoje irmandade com 26 cidades ao redor do mundo, espalhadas pelos cinco continentes. Shimonoseki, no entanto, seguirá sendo a primeira — a que abriu as portas e os braços. Porque a amizade entre cidades, como entre pessoas, se constrói com confiança, respeito e troca. E como bem disse o prefeito Katsumi Igawa na época, “A amizade é a mais valiosa das pontes. Uma irmandade de muito valor”. Preserve suas amizades como tesouros da existência — são elas que dão sentido aos caminhos da vida.
CURIOSIDADES DESTE FATO
Foi a esposa de Katsumi Igawa que o substituiu na Prefeitura de Shimonoseki enquanto ele veio a Santos para a celebraçao do termo.
“Boa tarde” e “Obrigado” foram as duas primeiras palavras da nossa língua que o prefeito Katsumi Igawa aprendeu.
