Quadro de Benedicto Calixto produzido no final do século 19, e cadastrado erroneamente, revela a embarcação que encalhou nas imediações do atual canal 5 em Santos
Peço licença aos meus leitores para, neste artigo, fugir à estética literária que permeia nosso trabalho. Ocorre que, às vezes, nos meandros de nossas investigações obstinadas, nos deparamos a descobertas tão empolgantes, que elas só nos remetem à vontade ensandecida de compartilhá-las.
O fato em questão foi estimulado pelo retorno às mídias sobre o caso do “misterioso navio” enterrado próximo ao canal 5. Em 2017, quando o tema ocupou freneticamente as manchetes de diversos jornais e sites mundo afora, alguns jornalistas me procuraram no intuito de ouvir a minha opinião, acreditando que eu pudesse contribuir para elucidar a pergunta que não queria calar (e ainda não calou): Afinal de contas, os restos encontrados na praia do Boqueirão são de qual embarcação? Glória, Nanny, Kestrel, Elitel Fritz, Madonna Della Costa? Ou nenhuma dessas? A memorialística naval nunca foi meu foco, apesar de já ter me debruçado sobre alguns casos interessantes, curiosos, como os do Cap Arcona, do Windhuk, do Al-Johffa, do Lorina ou de algumas visitas inusitadas ao porto de Santos, como os da força naval norte-americana em 1953 ou da esquadra japonesa em 1921.
Bom, quem me conhece sabe que, quando não tenho elementos fundamentados para externar teorias, não o faço. Simplesmente indico pesquisadores mais gabaritados no assunto. No caso do navio encalhado, a escolha foi óbvia, a do jornalista Zeca Silvares, autor do robusto trabalho intitulado “Naufrágios do Brasil”, lançado em 2010. E, assim, me tornei apenas um leitor/espectador da evolução do caso, observando, inclusive, o ingresso do competente arqueólogo Manoel Gonzalez na “brincadeira”. Profissional de respeito, ele e sua equipe fizeram várias coletas que os levaram a defender com “unhas e dentes” a identidade do navio como sendo o veleiro inglês “Kestrel”, que encalhara nas areias da praia do Boqueirão no final de uma tarde tempestuosa em 11 de fevereiro de 1895. Aliás, uma história muito mal contada, pois o navio estava sem sua tripulação e comando. A bordo apenas três homens inexperientes: um cozinheiro, o despenseiro e um marinheiro grumete, sem traquejo algum na lida do mar. O restante da tripulação, incluindo o capitão, o contramestre e o piloto, estava em terra. Isso sem falar que o rebocador “Rápido”, da Praticagem, conseguiu chegar a tempo de oferecer socorro, que foi recusado. Os meandros desta história, no entanto, eu conto no blog Memória Santista.
Com o ressurgimento marcante dos destroços durante este período pandêmico, e o reingresso do tema às manchetes, novamente fui procurado por colegas jornalistas ávidos por novidades. Mais uma vez refutei e indiquei o amigo Zeca Silvares. Porém, desta vez, o assunto despertou-me uma vontade. Por que não escrever sobre cada um dos casos que viraram suspeitos na origem da descoberta?
Resolvei começar pelo suspeito principal, o inglês Kestrel. Pesquisei jornais da época, em relatos de outras pesquisas e nos registros de navios em sites internacionais. Porém, foi em busca de imagens da embarcação que acabei me deparando a uma situação, diríamos interessante. Não sei por qual motivo, mas eu lembrava de ter visto um quadro de Benedicto Calixto que retratava um veleiro encalhado nas praias de Santos. Obviamente não se tratava do Glória (outro suspeito do canal 5), uma vez que ele era um pequeno vapor. O que havia visto era, de fato, um veleiro. Após um ligeiro trabalho de busca na internet, encontrei o que lembrava ter testemunhado. No entanto, o título do tal quadro era “O Encalhe do Veleiro Caldbeck em Praia Grande”.
O inusitado da situação era que o referido site (o famoso Novo Milênio, do genial Carlos Pimentel Mendes) demonstrava duas obras de Calixto com o mesmo título, catalogados como sendo o do encalhe do veleiro inglês “Caldbeck” ou “Caldebeck”. No entanto, havia algo gritante para os meus olhos naqueles desenhos: a topografia.
Quem conhece a Praia Grande, sabe que, olhando na direção do Oceano Atlântico, o único acidente geográfico local é a formação da Ponta de Itaipú, à esquerda. Olhando para o lado oposto, à direita, a vista é de quilômetros de faixa de areia (daí a alcunha “Grande”). Em um dos quadros de Calixto, a cena está correta. O barco está com a proa voltada para o espectador (na direção do Itaipú) e a popa voltada para o quase infinito trecho de praia. Ocorre que no segundo quadro, o acidente geográfico está à direita da imagem, com o adendo de alguns detalhes a serem observados. Primeiro: a Ponta do Itaipú está muito adentro do mar, o que só ocorre se relacionada à sua posição na Baía de Santos. Segundo: Calixto não iria fazer um desenho “espelhado”, ou seja, na direção oposta. Terceiro: Há claramente uma formação que se assemelha a uma ilha na imagem, no primeiro plano da extrema direita. Certamente é a Ilha Urubuqueçaba. Uma segunda formação mais à frente me remete à Ilha Porchat. Ademais, os veleiros retratados nos dois quadros não se assemelham perfeitamente e uma das obras retrata vários mastros partidos na areia. Tá certo que Calixto poderia ter produzido os quadros em momentos diferentes, mas não acredito nessa hipótese. Para consolidar a afirmação, ainda achei um velho cartão postal que retratou fotograficamente o encalhe do “Caldebeck”.
Pimenta no caldo misterioso
Entusiasmado com a constatação, a partir dos pressupostos geográficos, posso afirmar que em algum momento os catalogadores das obras de Calixto se enganaram ao afirmarem ser o veleiro “Caldebeck” o retratado no quadro que mostra os mastros partidos na areia. Para mim, certamente se trata do famoso “Kestrel”, não só por suas dimensões (o Nanny era muito maior pelos desenhos que tive acesso) , mas por seu posicionamento na areia, alinhado aos relatos sobre o encalhe descritos na imprensa da época (1895). E vale lembrar que ainda nem sonhavam construir o canal 5 (na verdade, o engenheiro Saturnino de Brito já sonhava, sim, com isso, mas o canal estava apenas no papel).
De uma forma ou de outra, ofereço a partir destes estudos e deste artigo, que a imagem que reputo como sendo a do veleiro inglês “Kestrel”, aqui publicada, componha o imaginário santista acerca dos misteriosos destroços que atiçam a fantasia dos passantes da praia do Boqueirão.