Na imagem produzida por Theodore de Bry, Santos é uma cidade acastelada
Fatos relacionados ao Século XVII propiciaram a criação iconográfica de uma Santos repleta de castelos, muros fortificados e elementos da Idade Média.
Nos primeiros anos de vida, em meados do Século XVI, a Vila de Santos não passava de um lugarejo bucólico situado em um dos cantos da Ilha de São Vicente, que os nativos chamavam de “Enguaguaçú”. Abrigando pouco mais de uma dúzia de construções simples, entre casebres, engenhos de cana-de-açúcar e capelas, além do Colégio dos Jesuítas, era um típico fim de mundo para os padrões europeus.
No entanto, na imaginação fértil de alguns cartógrafos e desenhistas, que recolhiam informações dos marinheiros que se aventuravam pelas novas terras descobertas na América, para produzir iconografias referenciais aos monarcas europeus, Santos era exibida de uma maneira muito, mas muito fantasiosa.
Um dos primeiros e maiores “viajantes da maionese”, sem dúvida nenhuma, foi o ilustrador de origem belga, Theodore de Bry (1528–1598), considerado por especialistas como uma referência em iconografia renascentista. As artes cartográficas (mapas) produzidas por ele sobre a região da atual Baixada Santista, que circularam amplamente pela Europa entre 1590 e 1634, revelavam uma fantasista influência medieval, uma Santos com castelos, muros e fossos.
Tais equívocos se deram porque o belga, nascido em Liège, justamente produzia suas gravuras baseadas na interpretação particular que construía a partir das histórias recolhidas entre dezenas de aventureiros participantes das expedições ao Novo Mundo. Em duas oportunidades, Bry desenhou fatos ligados à Baixada Santista. A primeira delas revelava uma batalha que teria ocorrido entre os colonos de Santos e São Vicente, contra índios contrários à presença portuguesa na região, provavelmente tupinambás da região norte.
A segunda ilustração retrata um naufrágio que teria acontecido na costa sul paulista, nas proximidades da Baía de Santos. Nesta imagem, os náufragos conseguem chegar à terra, no trecho onde hoje está a Praia Grande. O interessante nestes dois desenhos é, definitivamente, a ideia que Bry tinha em mente com relação às vilas existentes no novo mundo no final do século XVI, provavelmente entre 1580 e 1590. Na carta de Bry, Santos e São Vicente assemelham-se a cidadelas medievais, muito distante da realidade vivida pelas duas pobres vilas desorganizadas da colônia portuguesa no Atlântico Sul. Para se ter uma ideia da “visão fantasiosa” do artista belga, ele chegou até inventar uma outra cidadela na Ilha de Santo Amaro (atual Guarujá), que seria, inclusive, a maior de todas. Bertioga (Brikioka) e Itanhaém (ItengeEhm) também foram relacionadas nas obras de Theodore de Bry.
Janes retratou a tentativa de invasão holandesa em 1615
O desenho de Jan Janes
Outro ilustrador que não economizou na imaginação foi Jan Janes que, em 1621, adicionou um toque criativo à cartografia histórica santista. Uma de suas estampas, publicada naquele ano, retratava a tentativa de invasão holandesa às vilas de Santos (grafado no desenho como Sanctus) e São Vicente (St.Vincent) em 1615. O aspecto mais notável da obra de Jones é a representação do porto santista com duas entradas – uma real e outra hipotética, que supostamente se estenderia até o Tumiarú. Esta peculiaridade geográfica imaginária, que permitiria a passagem de grandes navios, destaca-se no desenho pela presença de um galeão holandês ancorado próximo à Praia de Paranapuã.
A criação de Jones foi baseada em descrições imprecisas de João Cornelissen de Mayz, escrivão da nau capitânia comandada pelo corsário holandês Joris Van Spilbergen, responsável pelo ataque. O desenho, embora historicamente impreciso em termos geográficos, oferece uma visão artisticamente rica de Santos e São Vicente, igualmente retratadas como se fossem cidadelas medievais europeias.
A vila de São Vicente, centro administrativo da Capitania, estava representada com a grandeza e o esplendor de uma importante cidade europeia. Jones detalhou igrejas e casarões de grandes dimensões, transmitindo uma ideia de pujança e desenvolvimento urbano. Por outro lado, Santos foi ilustrada como uma cidade portuária menor, porém estrategicamente protegida por uma fortaleza.
Uma segunda versão
Uma versão adicional da obra de Jan Janez, que circulou na Europa no século XVII, oferece uma perspectiva artisticamente rica sobre o ataque holandês ao porto de Santos. Nesta interpretação, o ilustrador representa apenas um galeão inimigo, mas o que realmente chama a atenção é a forma como ele imaginou o sistema defensivo do porto, com duas fortalezas de grande porte, posicionadas estrategicamente para criar um campo de fogo cruzado eficaz.
No entanto, o desenho contém algumas imprecisões geográficas severas. A fortificação no lado esquerdo do mapa, que deveria representar a Barra Grande, é posicionada erroneamente junto aos morros do Itaipú/Xixová. Da mesma forma, a fortaleza à direita, que se supõe ser o Forte de Bertioga, é mostrada muito próxima da Baía de Santos.
Além disso, o Monte Serrat é mostrado de forma poética como uma imponente muralha frontal. Santos e São Vicente são apresentadas com seus nomes em português, apesar de grafia “Vincente”, e , mais uma vez, transformadas em cidades fortificadas ao estilo das grandes cidades medievais europeias.
Esta versão do mapa, apesar de também apresentarem interpretações geográficas fantasiosas, destacava-se como uma autêntica obra de arte com uso sem moderação de licença poética, retratando de forma alternativa um trecho da história de Santos. Apesar dos pesares, isso se constituiu num privilégio raro e fascinante, outorgado a pocas localidades brasileiras. Afinal, quem não gostaria de ver sua cidade como um lugar cheio de castelos, muros fortificados e coisas do gênero?