Há cem anos a colorização de fotos para cartões postais era feita à mão e fazia sucesso entre viajantes e colecionadores. Hoje, o mundo digital proporciona uma nova leitura para velhas imagens, com cores vibrantes e uma legião de admiradores virtuais.
Santos, maio de 1920. Cada detalhe da fotografia era minuciosamente colorizado por mãos hábeis e olhos atentos. O mercado de cartões postais era algo promissor à maioria dos fotógrafos da cidade santense, o que refletia, afinal, uma realidade global. Viajantes, imigrantes, pessoas de passagem pelo cais ou pela estação de trem, e até alguns moradores entusiastas adquiriam voluptuosamente as novidades iconográficas que chegavam às lojas de souvenires e bazares. Não importava a autoria das belas imagens da urbe santista e arrabaldes, fossem elas produzidas por nativos como José Marques Pereira, o mais notável entres os profissionais santenses do segmento, ou por fotógrafos estrangeiros contratados pela alemã Wessel, pela italiana F. Manzieri, pela francesa Union Postale Universelle ou pelos ingleses da Royal Mail Steam Packet. Cartão postal novo na praça era sinônimo de festa para os colecionadores e viajantes que, no verso do produto (ou até na frente, em cima da foto mesmo), depositavam suas impressões, relatos ou cartas de amor, enviando-as aos saudosos familiares e demais pessoas queridas (algumas, ardentemente desejadas).
As mãos seguiam sua rota na fina arte da cor. A cena trabalhada, em questão, era do aprazível Largo do Rosário, circundado àquela época pela Igreja do mesmo nome, pelo Polytheama Rio Branco (um dos primeiros cinemas da cidade) e pela redação da influente Revista “A Fita”, entre outras belíssimas edificações comerciais. O artista olhava satisfeito para o resultado final de seu acurado labor. E checou que não esquecera de pintar nada: as pessoas e suas vestimentas, a vegetação da praça, dos morros, o céu azul, os telhados avermelhados, o calçamento das ruas em tom bege claro e até mesmo os carris puxados a burros com sua inconfundível coloração esverdeada. Um verdadeiro primor. O fotógrafo artista tinha a exata noção de que seus postais coloridos seriam muito mais disputados. Afinal, que apelo havia de ter uma vida incolor diante da beleza infindável dos matizes que rodeiam a natureza? As cores traziam ao sabor da luz, enfim, não só o encanto pulsante da realidade, mas a reflexão contagiante da arte.
Por décadas, os cartões postais desempenharam um papel essencial como forma de comunicação rápida e deleitosa aos seus usuários, ao mesmo tempo que serviram de agente de difusão das tradições culturais e das belezas urbanísticas das cidades retratadas. Santos, devido ao seu renomado porto e às suas riquezas arquitetônicas e naturais, sempre esteve à frente, como uma das cidades do mundo mais exibidas por este tipo de material impresso. E, dentre a imensa coleção de imagens da terra de Braz Cubas, Bartolomeu de Gusmão e José Bonifácio, eram as colorizadas que ganhavam um lugar de especial destaque, para o deleite dos aficionados colecionadores. Foi somente com a popularização da fotografia colorida, nos anos 1960, que a arte manual de pintar imagens a mão deixou de ter espaço. A atividade, desta forma, parecia estar fadada à extinção, não permitindo espaços para seu renascimento. Ledo engano!
Uma arte repaginada
Santos, maio de 2020. Cada detalhe da fotografia era minuciosamente colorizado por mãos hábeis e olhos atentos. O objetivo do artista digital do século 21 não é tão somente publicar sua arte em papel cartão, para que sirva como repositório de mensagens saudosas ou apaixonadas, despachadas por correio ou mala postal. A palavra de ordem nestes tempos dominados por “bytes” e “streamings” é o compartilhamento, algo muito mais rápido e direto, em especial nas badaladas “Social Medias” (as redes sociais, como Facebook, Instagram, Youtube, Whatsapp, Pintrest, entre tantas outras que amealham milhares de participantes, ou seguidores).
Agora, em função do confinamento e o consequente isolamento social “físico” de parte deste público antenado nas redes sociais – necessários como defesa estratégica nesta guerra viral contra o famigerado Covid-19, vulgo “coronavírus” -, muitas mentes se abriram para velhas práticas, devidamente repaginadas. Entre elas, a de colorir imagens em preto e branco, digitalmente. No lugar da fina pena de outrora, o mouse do computador (ou a caneta eletrônica dos modernos tabletes de desenho) conduz o “cursor” a trechos mínimos das velhas imagens escaneadas em alta resolução. No lugar das tintas aquareláveis ou dos lápis de cera utilizados no passado está a pantone digital e sua quase infinita gama de cores, preenchendo os espaços de cada elemento, em camadas distintas, seja em fotos preto e branco, sépia ou monocolor (verde, azul, vermelha, etc). O descorado visual em tons de cinza ganha, então, a vibração das cores fortes ou, quando comedidas, com baixa saturação, conforme o gosto do artista e, obviamente, um mínimo de bom senso estético. O certo é que a tecnologia, enfim, chegou para tomar espaço neste segmento, permitindo novas leituras das imagens do nosso passado.
Há pelo menos dois anos a internet vem exibindo trabalhos de artistas gráficos (ou designers) das mais variadas tendências. Em 2019, a imagem de um carregador de café do porto de Santos, colorizada, chamou a atenção pela qualidade plástica. Suas cores “saltavam” da foto, propiciando uma leitura diferenciada daquele momento. Entrei em contato com o artista, Reinaldo Elias, e descobri que ele havia se especializado naquele tipo de trabalho, inclusive criando um canal no Facebook intitulado “Colorizando o Passado”, onde estão reunidas dezenas de imagens simplesmente sensacionais. A sensação de ver velhas imagens conhecidas ganharem “vida” (embora muita gente certamente irá torcer o nariz para estas “modernidades”, já que hipoteticamente “tirariam” a essência da imagem original) está provocando muitas sensações positivas na web. Curioso, até mesmo este articulista se arriscou a produzir algumas colorizações fazendo uso de softwares online específicos, como o Colourise (https://colourise.sg). O resultado é assombroso, como o resultante na foto da escultura do Jaguar confeccionado pela oficina de escultura do Instituto Escolástica Rosa, em 1935 (a famosa “leoa” dos jardins da orla). A imagem ficou perfeita após passar pelo filtro de inserção de cor do sistema. Obviamente, o uso de softwares de tratamento de imagens, como o renomado Photoshop, é o mais adequado, uma vez que ele não faz uma leitura superficial das cores que envolvem a cena. Exemplo deste trabalho foi o produzido recentemente pelo também designer gráfico, o santista Bruno Arena, que colorizou um conhecido postal panorâmico da praia do José Menino, da década de 1920. A imagem ganhou cores vibrantes e oferece uma leitura absolutamente diferente do espaço. Afinal, como já dito, sensações de releitura são essenciais para a expansão da mente e da alma.