Anatole France esteve por uma manhã na cidade, e causou verdadeiro frisson entre os intelectuais santistas
Santos, 18 de maio de 1909. Era manhã de um sábado agradável de Outono quando adentrava mais uma vez ao Porto de Santos o paquete francês “Amazone”, cumprindo sua costumeira escala na rota Bordeaux-Buenos Aires. Porém, aquela viagem trazia algo especial, que agitou a sociedade brasileira, principalmente o meio literário. A bordo do luxuoso navio de passageiros estava um dos mais ilustres escritores da época, o francês Anatole France, autor de dezenas de livros de grande sucesso na Europa e reconhecido conferencista. Antes de sua chegada à cidade santista, Anatole havia sido entusiasticamente recebido no Rio de Janeiro por membros do governo, como o Barão do Rio Branco, então ministro das Relações Exteriores, e da Academia Brasileira de Letras, na pessoa de Ruy Barbosa, seu presidente. Uma comissão de recepção havia sido especialmente montada para a recepção do eminente francês, que incluía até o precursor do futebol no país, Charles Miller.
O escritor tinha como destino a capital argentina, Buenos Aires, onde faria cinco conferências literárias, e vinha acompanhado de seu secretário particular, Jean-Jacques Brousson, do escultor Jean Victor Badin e o pintor Calmette.
Logo que o navio atracou no costado do armazém três do cais santista, já estavam em terra aguardando a chegada do famoso escritor uma verdadeira comissão de boas-vindas composta pelo cônsul da França em São Paulo, Jacques Dupas; representantes da Câmara Municipal de Santos; o presidente da “Sociedade 14 de Julho”, L. Grumbach; o presidente do “Cercle Français”, Maurice Grumbach; o lente da Faculdade de Direito de São Paulo, dr. José Luís de Almeida Nogueira, o representante da comissão promotora da recepção, Adolfo Nardi Filho e vários estudantes santistas, escolhidos entre centenas de jovens para o recepcionar Anatole France.
Visitando a cidade
Grato pela manifestação calorosa, o escritor aceitou o convite para conhecer a cidade de Santos, iniciando seu “tour” pela rua XV de Novembro, onde se apaixonou pelos doces vendidos na “Leiteria Modelo”. Dali, partiu de bonde com alguns artistas da “Comédie Française”, seus companheiros de viagem, até o Parque Balneário, onde foi lhes oferecido um almoço especial. Durante o evento, exaltaram o visitante o cônsul francês Jacques Dupas, o vice-presidente da Câmara Municipal, Benedito Moura Ribeiro e o dr. Almeida Nogueira, que falou em nome dos intelectuais paulistas. Ao final, o almoço foi brindado com o som da banda municipal.
Anatole France agradeceu o carinho da recepção santista e desejou prosperidade ao Brasil, que o acolheu tão bem. Às 14 horas, o escritor precisou regressar ao navio, que partiria no meio da tarde, já em direção a Buenos Aires. Assim, tomou de volta o bonde especialmente disponibilizado para seu transporte do Gonzaga até o cais do armazém três. Às 15 horas já estava de volta à bordo do “Amazone”, que levantou âncoras e partiu da cidade santista.
Uma das facetas do celebrado escritor francês era o seu humor, de zombeteiro. Na passagem por Santos, um caso ficou marcado, e acabou narrado pelo historiador santista Costa e Silva Sobrinho em uma de suas inúmeras crônicas do passado regional.
Quando o comandante do “Amazone” liberou a subida a bordo da comissão que prestava homenagem a Anatole France, um dos jovens estudantes do grupo saiu na frente, no afã de ser o primeiro a ter contato com ele. Depois de tê-lo procurado por quase todo navio, eis que numa sala o estudante se depara a um homem de “barba à Guise e barrete de seda preta sentado ao lado de uma mulher na madura pujança dos cinquenta”.
Acreditando ser aquele homem o notório literato francês, o rapaz indagou:
– Êtes-vous monsieur Anatole France? (É você o senhor Anatole France?)
O homem, levantando para o jovem uns olhos surpreendidos, prontamente respondeu:
– Non, non, mon jeune ami ! J’ài nom Bergeret, pére de Thais. (Não, não, meu jovem amigo! Meu nome é Bergeret, sou pai de Thais)
Desapontado por não ter encontrado com o homenageado da cidade, o jovem voltou à companhia dos amigos, lamentando-se:
– Amigos, eu acho que o homem não veio. O único que encontrei parecido com ele, está ali num salão, aninhado sobre um amplo sofá e perto de uma comediante que parece uma tartaruga. Mas é um tal monsieur Bergeret Perez de Thais.
Mas, o que o garoto não contava é que a comitiva já estava com Anatole, que era justamente o homem que encontrara no salão. Quando foram vê-lo, o ilustre francês recebia os cumprimentos do cônsul de seu país e de outras pessoas. Estava ele sorridente, matreiro, como se tivesse ganhado uma aposta. Este era o imortal autor do best-seller Thais, uma figura que, apesar de sisuda, gostava de aprontar, fazer pegadinhas com os amigos próximos e alguns desconhecidos, como o jovem santista.
Quem foi Anatole France?
Um dos maiores escritores da história, Jacques Anatole François Thibault (16/04/1844, Paris – 12/10/1924, Saint-Cyr-sur-Loire) adotou o pseudônimo de Anatole France porque seu pai, um livreiro em Paris, chamava sua loja de “Librarie de France”. Desde muito jovem, Anatole foi um leitor insaciável. Sua primeira coleção de poemas, “Poemas Dourados”, foi publicada em 1873.
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1921 (Doze anos depois de sua visita a Santos), seu primeiro grande sucesso foi o romance “Le Crime de Sylvestre Bonnard” (O Crime de Silvestre Bonnard), escrito em 1881, premiado pela Academia Francesa. Outras obras de grande sucesso foram: “Thais” (Tais, 1890), “Le Lys Rouge” (O Lírio Vermelho, 1894), “Le Puits de Saint Claire” (O Poço de Santa Clara, 1895); “La Rèvolte des Anges” (A Revolta dos Anjos, 1914). Também publicou uma importante biografia da famosa personalidade francesa, Joana D’Arc, em 1908, e pelo menos quatro peças de teatro bastante aplaudidas.
No ano de 1922, a Igreja católica pôs sua obra no “Índex” por criticar a sociedade e a Igreja. Anatole France filiou-se ao Partido Comunista no início dos anos 20. O escritor morreu, aos 80 anos de idade, em Saint-Cyr-sur-Loire, no dia 12 de outubro de 1924.