Santos, 10 de outubro de 1901. José Marques Pereira, o mais famoso fotógrafo da cidade, posicionava pacientemente sua máquina nos arredores da Praça dos Andradas. Há algum tempo ele vinha coletando imagens da urbe santista para enviar à capital federal, onde seriam utilizadas em uma edição especial sobre Santos para a Revista da Semana, editada pelo influente “Jornal do Brasil”. Pereira já havia fotografado quase todos os prédios públicos e privados de importância comercial ou social, bem como figuras ilustres da sociedade santense. Ainda lhe faltavam alguns pontos de destaque e curiosidades. Naquela tarde, ele decidira registrar em suas lentes dois personagens das ruas, tipos populares que “causavam” no dia a dia.
Um deles era um senhor de nome Santos, que contava com quase 70 anos de idade, um velho alfaiate que, diziam, perdera tudo, inclusive a família, e vivia pelas ruas colhendo esmola, sempre muito educadamente. O “mendigo”, por conta da sua antiga profissão, vestia-se bem, pelo menos para os padrões de sua “nova classe”, fazendo uso de gravata borboleta, camisa branca de gola alta e um terno que ele mesmo costurara. Era um tipo tranquilo e só ficava irritado quando trombava com outro cidadão que perambulava sem direção na velha Santos. Este era o Camarinha que, ao contrário do alfaiate, era relativamente jovem, contando com pouco mais de trinta anos.
Rapaz inteligente, vivia muito alegre e costumava narrar histórias do cotidiano para os passantes, coisas de fato interessantíssimas que, provavelmente, lia nos jornais que circulavam na cidade. Camarinha gostava de falar de política e às vezes do que acontecia na questão sanitária da cidade. Ele chegou a ridicularizar a “Liga Contra a Tuberculose” em vários de seus comentários, o que desagradava algumas figuras importantes.
Unir os dois tipos populares era algo praticamente inimaginável, pois ambos viviam às turras, brigando mesmo, pelos espaços e pela atenção do público passante do Largo do Rosário, onde Camarinha costumava vender seus bilhetes de loteria, para sobreviver. O velho Santos só perambulava mesmo, coletando o resultado da caridade dos santistas.
Mas, naquele dia 10 de outubro, o fotógrafo Marques Pereira decidiu “cutucar as duas onças com vara curta” e gentilmente convenceu-os a posar para uma fotografia, juntos. Marcou o encontro na Praça dos Andradas, porém só o velho alfaiate apareceu. Parece que Camarinha se recusou a ser fotografado em outro lugar que não fosse o seu habitat, ou seja, o Largo do Rosário.
O rapaz era mesmo “casca de ferida”. Todos na cidade diziam que ele era a encarnação do dipsomaníaco incorrigível (pessoa que tem necessidade incontrolável de ingerir bebida alcoólica) e do boêmio impenitente. Camarinha era, de fato, um sujeito sujo, roto, esmulambado, que bebia desbragadamente e sempre tinha uma anedota para contar. Houve ocasião em que o secretário do Interior da Província de São Paulo, por ato largamente difundido, proibiu que se escarrasse nas ruas e o Camarinha, grande gozador, apareceu com uma caixa de charutos nas mãos, cheia de areia. E a quantos encontrava, pedia que escarrassem na caixinha. Era, enfim, uma figura folclórica, muitas vezes retratado em jornais e revistas da cidade.
Deixado falando sozinho, Marques Pereira, entretanto, não se deu por vencido. Pegou seu equipamento fotográfico, desmontou-o da Praça dos Andradas e rumou, ao lado do alfaiate, para o Largo do Rosário, onde encontrou o Camarinha sentado, como a “ver navios”. O sujeito estava, obviamente, embriagado. O fotógrafo até que gostou de ver a situação, pois seu retratado acabaria não refutando o que ele precisava fazer. O problema é que o velho alfaiate parecia constrangido por ter que sentar-se ao lado do bebum.
Pereira decidiu não mudar o Camarinha de lugar. O jovem estava sentado em um banco de madeira, ao lado da porta de um estabelecimento comercial do Largo do Rosário. E ali ficou. O Santos Alfaiate disse que desejava ser retratado segurando uma edição do Diário de Santos, não se sabe por quê. Pereira, enfim, decidiu não debater aquela vontade do seu personagem e pediu-lhe apenas que se sentasse ao lado do rival bebum.
O velho, então, percebeu que aquela era uma boa oportunidade para “tirar uma casca” (zombar) do “desafeto”, que estava ali, vulnerável como tantas outras vezes. Antes de posicionar-se para a foto, o alfaiate tomou emprestada uma garrafa de cachaça vazia e pediu para o “amigo” abraçá-la, no que ele fez sem resistência ou compreensão. E ainda colocou várias outras vazias no chão, para evidentemente dar a ideia de que o bebum havia “tomado todas”. O fotógrafo riu da cena e tampouco se importou com a zombaria. Afinal de contas, Camarinha era o rei da gozação e estaria prestes a sentir o gosto do próprio veneno, de maneira tranquila e inocente, oferecido pelo desafeto das ruas.
A fotografia, afinal, saiu bem. Camarinha abraçando o elemento que tanto apreciava na vida (a garrafa) e o velho alfaiate com o jornal nas mãos, com uma altivez que não combinava muito com seu passado recente. Mas, o final da história é que a imagem foi parar nas páginas de um dos jornais mais importantes do país, perpetuando a presença desses dois personagens na trajetória santista.
Camarinha, segundo o jornalista e memorialista Olao Rodrigues, teria morrido em 12 de junho de 1907. Em sua coluna, “Nos Tempos de Nossos Av��s”, publicada nos anos 1970, ele escrevera: “Pouco antes de morrer , o que se deu a 12 de junho de 1907, Camarinha mandou chamar seu protetor e, dizendo-lhe adeus, agradeceu-lhe por todos os favores recebidos. Ao desaparecer, ele revelara uma gratidão serena e comovida, que é o apanágio das almas boas”.
Santos Alfaiate deve ter falecido mais ou menos nesta época, ainda antes de 1909. Prova disso é um anúncio provocador publicado no jornal “A Vanguarda”, que dava conta de que ele e Camarinha apoiavam, juntos (!), para a eleição federal, aos cargos de deputado e senador, os candidatos do Partido Municipal recomendados por Cincinato Costa e Augusto Filgueiras, ditos como “influentes correligionários” de ambos. Na assinatura do anúncio, a evidência da chacota: Saboó, Santos, 27 de janeiro de 1909. É que ambos estavam, enfim, sepultados naquele campo santo. Vê-se que, mesmo mortos, os dois tipos mais populares das ruas de Santos ainda provocavam a sociedade.