Santos, sábado, 16 de janeiro de 1954. Após empreender uma jornada de mais de 13 mil milhas náuticas (ou 25 mil quilômetros) a bordo do navio “América Maru”, um grupo de imigrantes japoneses desembarcava, esperançoso e aliviado, no porto santista. Membros da mesma família, originária das ilhas de Okinawa, eles eram liderados por um homem de aparência frágil, porém dono de uma alma determinada, confiante, impregnada dos preceitos de disciplina, responsabilidade, harmonia, humildade e dignidade, valores estes cultivados anos a fio sob a batuta de um honrado mestre.
Quem olhasse para o “franzino” Yoshihide Shinzato, com 27 anos de idade e modestos 1,5 metro de altura, dificilmente imaginaria tratar-se de um “gigante inabalável”, um personagem capaz de construir uma história sem precedentes no Brasil e comparáveis a poucas outras no mundo. O então jovem líder era o esteio de sua família: esposa, dois filhos pequenos, os pais e três irmãos, e não se permitia falhar na missão que se auto impôs na nova terra.
A origem
Yoshihide Shinzato nasceu em Haebaru, uma pequena vila localizada no centro da ilha de Okinawa, província insular situada no extremo sul do arquipélago do Japão, em 15 de março de 1927. Após completar o 1º ano do Ensino Médio na escola estadual local, foi mandado para um colégio militar em Tóquio, desejando tornar-se piloto da Marinha Imperial. Mas, por conta de sua baixa estatura, não tivera a oportunidade e acabou aprendendo o ofício de rádio-comunicador (talvez, se Shinzato tivesse alcançado seu objetivo, não teria sobrevivido à Segunda Grande Guerra, que acabou registrando milhares de baixas entre os pilotos niponicos).
No conflito mundial, Shinzato atuou na função a qual capacitara-se, a de rádio telegrafista, realizando a comunicação do exército entre as bases de Tóquio e Pequim (na China). Após o fim da guerra, ele retornava a Okinawa, para trabalhar como funcionário público nos serviços de importação e exportação da ilha.
O karatê e os mestres
O karatê entrou na vida de Shinzato quando ele completou doze anos de idade. O jovem Yoshihide já praticava o judô, arte marcial “curricular” para os meninos em todas as escolas do Japão, em especial no Colégio Militar. Porém, por conta do físico não avantajado, Shinzato optou em dedicar-se com mais afinco ao Karatê-Do (que era uma opção aceitável nas instituições educacionais), por conta de ser uma disputa onde o lutador combate “em separado” e não no corpo-a-corpo. Em pouco tempo, ele apaixonou-se pela arte marcial e percebeu que ela, de certa forma, iria conduzir o rumo de sua vida.
Nesses tempos de escola, teve como mestre Tokuda Anbun, contemporâneo do lendário Chibana Chosin, de quem também foi um disciplinado aluno. Com ambos, aprendeu os mais profundos segredos da arte marcial e tornou-se respeitado no meio. No período da Guerra, foi o karatê quem ofereceu a Shinzato o equilibrio emocional para atravessar um dos piores momentos na história de seu país.
Em 1953, Shinzato, apesar de feliz por poder praticar sua arte marcial ao lado de mestre Chibana, estava cansado da rotina profissional que levava na pequena ilha de Okinawa. Foi então que decidiu juntar a família e colocar na mesa uma proposta. Yoshihide reuniu-se com a esposa, os dois filhos pequenos, seus pais, dois irmãos e uma irmã, para anunciar uma decisão que transformaria a vida de todos. Estava disposto a aceitar o convite de um dos tios que migrara para o Brasil, o distante país sulamericano, para também buscar novos caminhos, bem longe da Terra do Sol Nascente.
Chuchu, beringela e pepino
Logo após o desembarque, ocorrido em 16 de janeiro de 1954, Shinzato e sua grande família foram morar no bairro de Tude Bastos, em Praia Grande. O maior sonho do jovem imigrante era poder divulgar o Karatê-Do no Brasil. Mas o desejo teve de aguardar um tempo na gaveta. Yoshihide e sua família, assim como muitos japoneses da Baixada Santista, partiram para o trabalho na lavoura, plantando chuchu, beringela e pepino. De quebra, Shinzato ainda trabalhava com transporte de verduras e adubo.
O Karatê, naquele período, ficoou apenas no plano pessoal, com treinos diários e solitários. Apesar de já possuir faixa preta no terceiro dan (numa escala que vai até dez), a prática era como se fosse uma espécie de hobby, ainda distante de tornar-se um ganha-pão. Com o tempo e ganhando a confiança de seus conterrâneos é que Shinzato foi “saindo do casulo” e passou a transmitir seus conhecimentos da arte que aprendera com mestre Chibana a outros jovens imigrantes nipônicos. Uma espécie de academia improvisada foi montada no quintal de sua casa. Um dos jovens amigos foi Matsutaro Uehara, o Tarô, que viria alguns anos mais tarde se tornar vereador na cidade de Santos. Foi ele quem mais incentivou Yoshihide a criar uma academia aberta para todos, inclusive os brasileiros, que passaram a se interessar, e muito, pela intrigante arte oriental.
O local escolhido para o debute profissional de Shinzato foi o salão da Associação de Okinawa (que ficava na Rua Bras Cubas). Com a ajuda de Tarô, Yoshihide conseguiu reunir doze alunos brasileiros, homens que tiveram oprivilégio de aprender com o grande mestre que surgia no país.
O discipulo prefeito
Entre os milhares de alunos que o mestre Shinzato treinou ao longo dos seus 46 anos de atividades, um dos mais icônicos foi o ex-prefeito de Santos (1984-1988), Oswaldo Justo. A relação entre os dois começou no final dos anos 1960, quando Justo apareceu em sua academia (na época situada na Rua General Câmara) necessitando de ajuda para tratar de uma doença que o consumia havia alguns anos: a poli-artrite-reumatóide crônica*.
Artrite reumatoide é uma doença inflamatória crônica, autoimune, que afeta as membranas sinoviais (fina camada de tecido conjuntivo) de múltiplas articulações (mãos, punhos, cotovelos, joelhos, tornozelos, pés, ombros, coluna cervical) e órgãos internos, como pulmões, coração e rins, dos indivíduos geneticamente predispostos. A progressão do quadro está associada a deformidades e alterações das articulações, que podem comprometer os movimentos.
Justo, que já vinha se tratando por meio de uma dieta à base de alimentação macrobiótica (ele havia perdido quinze quilos nos meses anteriores devido à rigosa dieta), foi atendido pelo professor Mauri Pimentel, que era um dos discípulos e primeiros alunos de Shinzato. Em questão de meses, o novo karateca já se dizia outra pessoa, tamanha a disposição que passou a ter para treinar e meditar.
Justo solidificou com o tempo sua amizade com o mestre Shinzato, principalmente após terem convivio anos à fio no chamado “horário da madrugada”, período que Yoshihide disponibilizou em sua academia para treinar o influente aluno, de modo individual. Oswaldo Justo tinha a incumbência de abrir o espaço, às 5h30, e cumprir rigorosamente seu ritual de treinamento. Discípulo e mestre também conversavam e filosofavam sobre os preceitos da arte marcial okinawana. Eram momentos de paz de espírito para o brasileiro, que acabou praticamente curado de sua doença, graças ao karatê.
A dedicação de Justo à arte marcial trazida do Japão pelo mestre Shinzato o levou até a faixa preta, conquistada em 28 de fevereiro de 1975. Quando tornou-se prefeito de Santos, em 1984, ele inseriu o karatê como prática desportiva nas escolas municipais e em vários departamentos públicos, como na Guarda Municipal, criada em seu governo. Até mesmo sua rotina de karateca foi agregada às práticas administrativas da Prefeitura de Santos. Justo criou a partir delas, por exemplo, as famosas “reuniões da madrugada”, em que exigia a presença de todos os seus secretários de governo no Paço Municipal às 6h30. E “ai” de quem faltasse ou chegasse atrasado.
Justo era meio ano mais velho que Shinzato, mas faleceu primeiro, em 14 de abril de 2003, aos 76 anos de idade. Na época, o velho mestre diria que seu famoso aluno havia atingido totalmente as principais finalidades e objetivos do karatê-do, o equilibrio mental e a harmonia para viver em paz. “Ele foi um exemplo para todos”, dizia Yoshihide aos amigos.
Reconhecimento nacional e internacional
Ao longo da sua trajetória, Shinzato participou de mais de mil campeonatos de karatê por todo o Brasil e treinou grandes nomes do esporte nacional. Também percorreu tatames de vários países, sempre sendo recebido com respeito e glórias.
Ao longo da vida foi-lhe outorgado vários títulos e homenagens. Mas nenhuma delas foi mais importante do que a que recebeu em 2003, a de “Comendador do Governo do Japão”, pelas mãos do próprio imperador Akihito. Superior a esta, só mesmo o privilégio de ter obtido o 10º Dan (até hoje o maior nível dado a um karateca na América Latina) e ter se consolidado como um dos ícones do .
Shinzato chegou a voltar cinco vezes à sua terra natal, mas jamais pensou em fazê-lo em definitivo. Santos, Praia Grande, o Brasil já estavam entranhados em sua essência. Assim como sua família. Yoshihide testemunhou o crescimento dela. Ao final da vida contabilizou, ao lado de sua amada Tomi Shinzato, oito filhos: cinco mulheres e três homens (Masahiro, Mitsuhide, Kazuo, Etsuko, Naoko, Yoriko, Valquíria e Kimi).
Sua morte aconteceu no dia 13 de janeiro de 2008, no ano do centenário da imigração japonesa ao Brasil. Seu enterro mobilizou diversas gerações de amigos, colegas e autoridades que convergiram à Santos para a despedida do inesquecível mestre, sepultado no Memorial Necrópole Ecumênica de Santos.