Figura folclórica das ruas de Santos, João Vicente Saldanha da Cunha foi um campeão de votos em 1988, incorporando, nacionalmente, o sentimento de decepção do eleitor pela classe política.
Santos, 29 de janeiro de 1957. Eram quase dez horas da manhã, quando dezenas de pessoas aguardavam ansiosamente a chegada, ao prédio da Associação Comercial de Santos, do carismático presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, que promovia, então, sua primeira visita oficial à cidade. Jornalistas dos mais variados meios de comunicação se preparavam para tomar algumas palavras do líder da nação, que anunciava, entre outras medidas, a implantação de uma política de aproximação com os Estados Unidos para o incremento das exportações de café. “Temos de enfrentar resolutamente as dificuldades que se apresentam, criando e provocando prosperidade”, diria JK, assim que desembarcara do carro que o levou até seu compromisso, no centro de Santos. Em meio aos microfones das principais emissoras de rádio de todo o país, de repente, eis que surge um estranho aparato de gravação, com um formato de lata de azeite e uma antena pra lá de inusitada (era de carro). Segurando-o firme, via-se um rapaz de semblante compenetrado, trajado de vestes tão simples, que destoava no meio dos elegantes representantes da imprensa. Aparentemente à vontade, sem importar-se com olhares repreensivos, o “reporter”, então, indagou: “Presidente, e o povo brasileiro?”. JK sorriu. A pergunta, apesar de fora do contexto, era algo muito apropriado aos que apreciavam proferir discursos populistas, como ele. Juscelino, então, discorreu sobre suas propostas para o Brasil, como a de avançar cinquenta anos em cinco. O que o presidente não imaginava, porém, é que aquela gravação jamais seria veiculada, uma vez que o estranho aparelho era, de fato, uma lata de azeite pintada.
Figurinha carimbada
Ao longo dos anos 1950/60 e 70, o “falso reporter” faria outras dezenas de “vítimas”. Porém, nenhuma delas viu qualquer tipo de malícia ou segundas intenções no “trabalho” de João Vicente Saldanha da Cunha, homem de origem humilde, originário da pequena cidade baiana de Vitória da Conquista, distante 518 quilômetros da capital, Salvador, onde nasceu no último dia do ano de 1933. Sua chegada à cidade de Santos só aconteceu em 1949, quando contava, então, com quinze anos de idade. Garoto ágil, franzino, costumava subir em árvores e evoluir tão soberbamente de galho em galho, que acabou ganhando dos amigos a alcunha “Zé Macaco”.
Quando desembarcou na cidade santista, junto com sua família, a ideia era buscar uma vida melhor e diferente. O que João Vicente, contudo, jamais poderia supor, é que o seu “diferente” ganharia contornos de extrema notoriedade.
Rádio Saboó
Zé Macaco era figurinha carimbada nos grandes eventos e, principalmente, no gramado da Vila Belmiro, casa do Santos Futebol Clube, o supercampeão dos anos 1960. A famosa latinha de azeite de João Vicente foi acionada muitas vezes para “ouvir” os maiores craques do futebol brasileiro de então, como Pelé, Pepe e Coutinho, do time praiano e adversários do quilate de Zagallo, Ademir Da Guia e Garrincha.
Para dar a impressão de que seu aparato, de fato, funcionava, João Vicente instalara uma lâmpada vermelha na borda da lata, que era alimentada por uma pilha. O “falso reporter”, a fim de garantir mais veracidade a seu disfarce, também fazia uso de fones de ouvido e, quando era perguntado para qual emissora trabalhava, dizia, sem titubear: Rádio Difusora do Saboó. Praticamente ninguém desvendou seu “esquema”.
Ninguém escapava
Para ganhar a vida, Zé Macaco atuava como estivador, mas só arrumava serviços esporádicos. No tempo livre, aproveitava para sair à caça de “entrevistados”, que foram muitos, e famosos, como os políticos Jânio Quadros, Garrastazu Médici, Franco Montoro e Paulo Maluf. Até mesmo o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, foi ouvido pela latinha de João Vicente, quando esteve na Vila Belmiro, nos anos 1960, assistindo um jogo do Santos de Pelé.
Zé Macaco marqueteiro e cobrador
No começo dos anos 1980, quase beirando os cinquenta anos de idade, Zé Macaco passou a ganhar a vida como propagandista. Dono de um triciclo equipado com gravador, amplificador, alto-falantes, bandeiras e espelhos, ele percorria as ruas do Centro fazendo propaganda nas portas das lojas. Irreverente, Zé Macaco utilizava de vários artifícios para atrais clientes para seus contratantes: usava perna-de-pau, engolia vidros e moedas – que depois fazia voltar.
Outra atividade que chegou a ter foi a de cobrador da agência Coringa. Vestido com uma fantasia verde e vermelha, cheia de guizos, seu trabalho consistia em ir à casa dos devedores para fazer barulho, com um sino, e anunciar aos vizinhos que ali havia um mau pagador. Ele ficava na porta do devedor e só ia embora depois que ele quitasse o valor. “Uma vez, um português recebeu a turma à bala. Ele saiu correndo atrás da gente com uma espingarda”, chegou a contar Zé Macaco ao jornal A Tribuna.
Foi durante a atividade de cobrador que João Vicente conheceu Filomena da Silva Cunha (nascida em 21/06/1932), com quem se casou.
Nesta mesma entrevista, ele contou também, às gargalhadas, sobre o dia em que acidentalmente ingeriu maconha. “Jogaram na minha bicicleta e eu nem sabia o que era aquele negócio. Minha esposa pensou que fosse erva comum e fez um chá. Ficou todo mundo doidão lá em casa”, afirmou à época.
Em 1986, depois de passar apuros financeiros, ele e a esposa foram despejados do porão onde moravam por falta de pagamento. O caso comoveu toda a cidade, que passou a pressionar o então prefeito, Oswaldo Justo, a dar uma ajuda ao foclórico personagem das ruas santistas. A Prefeitura acabou, assim, contratando-o para divulgar as promoções culturais da Secretaria de Cultura.
Vereador mais votado
Em 1988, ocorreria eleições para a escolha do novo prefeito e a composição da Câmara Municipal. Foi ai que um grupo de portuários teve a ideia de lança-lo candidato a vereador, como forma de protesto contra a classe política. Vários comerciantes “compraram” o desafio e bancaram o material de campanha. João Vicente, então, foi filiado ao extinto Partido Democrático Social (PDS) e ganhou o nú
mero 11.624. Seu mote de campanha era: “Já que os homens não resolvem, porque não votar nele?”. Zé Macaco foi um fenômeno das urnas, atingindo a marca de 10.913 votos, a segunda maior da história santista até então (ele só perdeu para o sindicalista José Gonçalves, que obteve 11.822 em 1976). A votação de João Vicente ajudaram a eleger outras figuras do PDS, pelo coeficiente eleitoral.
Logo após a contagem dos votos, o folclórico Zé Macacocomemorou bem ao seu estilo: com um estardalhaço pelas ruas do Centro, acenando de um jipe para as pessoas nas janelas, agradecendo a “confiança”.
Santa protetora
Zé Macaco chegou a colar seus santinhos em cemitérios e o fez inclusive na campa de Maria Féa, vítima de um assassinato que ganhou fama no país. “O número da campa dela era o mesmo da minha candidatura, 11.624. É minha protetora”, dizia o candidato.
A “porrada legislativa”
Eleito, de importante mesmo, Zé Macaco apenas abriu a sessão de posse da Câmara em 1º de janeiro de 1989, na imponente sala Princesa Isabel, quando entregou inclusive o diploma para a prefeita eleita, Telma de Souza. Depois disso, não fez mais nada de relevante, confirmando o que muita gente já achava. Até se esperava que o inusitado personagem propusesse alguns projetosmalucos, mas nem isso ocorreu. Sua atuação na Câmara resultou em 264 trabalhos, entre requerimentos e indicações ao Executivo, basicamente solicitando reparos de bueiros e buracos. Em termos de Projetos de Lei, apresentou três, todos eles concedendo honrarias, como a que conferiu ao ex-jogador do Santos, José Macia, o Pepe, o título de “Cidadão Emérito”, em outubro de 1990.
Na Câmara, João Vicente era visto pelos colegas como um sujeito de maneiras extremamente simples e refratário no que se referia a fazer parte de grupos. Em todo o seu mandato, ele não procurou compor nenhum tipo de “panelinha”. Por outro lado, o simplório João estava deslumbrado com o novo estilo de vida, e teria protagonizado vários “causos” engraçados no legislativo santista. Foi o caso de quando recebeu um cartão de crédito, em razão da conta corrente que teve de abrir para receber seus proventos. Disseram-lhe que podia efetuar compras ou ir a restaurantes “sem ter que pagar”. Na verdade não explicaram que o pagamento se daria em outro momento, por fatura compensável. Meses depois de ter recebido o cartão, as contas se acumularam de tal forma, que o gerente do banco o chamou para uma conversa e lhe perguntou quando pretendia pagar a dívida. Sem entender o tom da conversa, Zé Macaco emendou: “Não vou pagar nada. Me disseram que era tudo de graça!”. Demorou para o vereador compreender que havia um mal entendido e a conta foi paga muito tempo depois, com ajuda de outras pessoas.
Outro “causo” interessante foi contado pelo ex-vereador Adelino Rodrigues, um de seus companheiros de Câmara. Preocupado com o jeito rude e direto do edil novato em alguns de seus pronunciamentos, Rodrigues sugeriu a João Vicente que moderasse o linguajar porque, do contrário, estaria correndo o risco de ofender outro vereador a ponto deste igressar com pedido de cassaç��o de seu mandato por decoro. Zé Macaco, então, em uma das sessões teria dito: “Eu tenho visto muita coisa errada aqui. Se não mudarem, vou dar uma porrada legislativa na cabeça do sujeito”. Todos riram.
O também ex-vereador Odair Gonzalez, contemporâneo de João Vicente, contava ainda que ele era “um frequentador assíduo da Pink Panther, a casa noturna mais famosa da época. Ele ia lá e só passava o cartão. Em um mês, o banco avisou que ele gastou o que ia ganhar em três meses de salário”. Era mais uma das despesas que Zé Macaco achava que fossem gratuitas, por ele ser vereador.
João Vicente chegou a viajar para Brasília, junto com outros companheiros do legislativo santista, a fim de protocolar algumas reivindicações no Congresso Nacional. No avião, ele chegou a pedir whisky, e dizia que era para ser “on the rocks” (com gelo, em inglês), como aprendera com os pares de Câmara. No meio do voo, no intuito de “gozar”com o ingênuo vereador, disseram-lhe que era necessário pedir a nota fiscal da bebida, a fim de poder prestar contas. Zé Macaco, então, não pensou duas vezes e levantou do seu assento e foi acordar o comissário de bordo.
A morte da esposa, renúncia e aposentadoria
Em 1992, pouco antes de concluir seu mandato, João Vicente sofreu um terrível acidente de carro na saída de uma casa noturna em Santos, a Mingo Show Danças. No choque, sua esposa veio a falecer e ele se feriu a ponto de ter ficado com artrose na perna esquerda. Diante do problema, o assessor mais próximo de João Vicente, o amigo de juventude, Manoel dos Santos, o Maneco, resolveu dar entrada com um pedido de aposentadoria para o vereador. Aquela era uma saída para que ele obtivesse uma fonte de renda após o término dp mandato e o fim da carreira política. Campanha para reeleição nem pensar.
Assim, Zé Macaco acabou renunciando ao mandato em 24 de setembro daquele ano e se aposentou por invalidez.
A volta às ruas e o fim de Zé Macaco
De volta às ruas, tornou a ganhar a vida com seu triciclo sonorizado, embora bem menos “glamouroso” que os veículos do gênero que chegou a ter no passado. Em 2000, convidado por um candidato à Câmara, colaborou com sua campanha fazendo propaganda. Foi a última atividade onde ganhou alguma coisa. Nos anos que se seguiram, Zé Macaco foi sendo esquecido e tornou-se tão somente mais um cidadão à margem da sociedade, empurrando um carrinho de supermercado pelas ruas santistas, sem rumo, sem objetivos.
Em 4 de novembro de 2006, de causas desconhecidas, aos 73 anos de idade, Zé Macaco morreria, deixando uma interessante marca na história de Santos, como um exemplo, engraçado, porém irresponsável, de voto de protesto.