Sociedade Emancipadora liberta escravos no Teatro Guarany

Cerimônia ficou marcada como um dos maiores atos abolicionistas de Santos

Dia 14 de março de 1886. Teatro Guarany, Santos. Duas mil pessoas se aglomeravam na plateia, camarotes e bancadas da glamorosa casa de espetáculos da cidade para testemunhar um acontecimento único no país. Como um símbolo da luta santista pró-abolicionista, doze escravos ganhavam sua liberdade, para euforia dos presentes.

O Brasil já vinha discutindo a questão emancipadora dos escravos negros havia algum tempo, um passo iniciado, aliás, em terras santistas, por José Bonifácio de Andrada e Silva que, na década de 1820, libertara os cativos das terras de sua família. A partir daí, de forma lenta e gradual, outros avanços na questão foram registrados, em especial após 1850, quando da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu o comércio transatlântico de escravos africanos. Em 1871, com a Lei do Ventre Livre (a partir da qual toda criança nascida de mãe escravizada seria considerada automaticamente livre) e, em 1885, com a Lei dos Sexagenários (a partir da qual todo escravizado com mais de 65 anos seria considerado livre), estava claro o caminho para a abolição completa. Mas esta não viria sem luta e pressão social. E foi isso que os santistas mais fizeram.

Santos era reconhecida nacionalmente como palco de um dos mais organizados movimentos de abolição no Brasil. Desde a década de 1870, a maior parte da população militava pela alforria dos escravos que vagavam, aos montes, pelas ruas da cidade, carregando e descarregando café nos trapiches. Muitos destes cativos eram propriedade de “barões do café”, que os enviavam para servir em suas casas comissárias e trapiches.

Para os escravos fugidos das fazendas cafeeiras do interior paulista, Santos era vista como uma espécie de “terra prometida”, por abrigar diversos quilombos, sobretudo na área do Cubatão (que pertenceu a Santos até 1949), ao pé da Serra do Mar. O mais conhecido deles era o do “Pai Felipe”, que acabou transferido, em 1880, para dentro da cidade (na área hoje ocupada pela CET, na Vila Mathias). Esses agrupamentos de escravos fugidos estavam, por sua vez, cercados de bairros de africanos livres, os mesmos que haviam reformado a antiga estrada que ligava a capital bandeirante à cidade santista (Aterrado de Cubatão) e permanecido no seu entorno. O maior agrupamento era o do famoso Quilombo do Jabaquara, organizado e administrado por abolicionistas santistas e paulistanos, responsável por abrigar alguns milhares de fugidos.

Neste contexto é que surgiu, em 1886, uma campanha liderada pelo major Joaquim Xavier Pinheiro, que era então o presidente da Câmara Municipal de Santos, para a criação de uma sociedade com a finalidade de “libertar escravos”. No dia 27 de fevereiro, numa grande solenidade no prédio da Praça dos Andradas (atual Cadeia Velha), a Câmara santista promoveu uma cerimônia para a declaração da Lei Saraiva-Cotejipe, declarando livres todos os escravos com mais de 60 anos. Santos, então, comemorou bastante o ato e os proprietários de escravos da cidade, incentivados pelo movimento, resolvem libertar seus cativos, de qualquer idade, aplaudidos pela multidão que acorrera ao edifício da Justiça.

Pelo simbolismo da data, Xavier Pinheiro e outros notórios santistas, fundaram a Sociedade Emancipadora 27 de Fevereiro, e passaram a angariar fundos para poder “comprar” os negros ainda escravizados da cidade, para posteriormente oferecer-lhes a carta de alforria. E para demonstrar todo o êxito da empreitada, em 14 de março de 1886, promoveram um evento no Teatro Guarany, onde compareceram cerca de duas mil pessoas. A Sociedade havia adquirido doze cativos e, num ato de grande comoção, todos ganharam sua liberdade.

Assim, antes da Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353, de 13 de maio de 1888), que decretou a abolição total da escravatura no Brasil, Santos já era uma terra livre para todos os homens e mulheres. Um orgulho da nação.

Referências:
“Virtudes e limites de uma escravidão quantificada: a escravidão em Santos do século 19” – Maria Helena P. T. Machado
“Uma associação abolicionista na cidade de Santos: Sociedade Emancipadora 27 de Fevereiro – 1886” – Vera Lúcia Alba Rei Dias      

O Teatro Guarany (ao fundo)
O Teatro Guarany, quarta edificação do lado direito, com mastro frontal.
GUARANYLAIRE
O Teatro Guarany, palco de várias cerimônias de libertação de escravos, como a ocorrida em 14 de março de 1886
Quilombo do Jabaquara, maior reduto santista de negros libertos no século XIX.
Quilombo do Jabaquara, maior reduto santista de negros libertos no século XIX.

 

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