O dia em que a Vaca (Boi) foi para o Brejo (Canal)

Nas últimas semanas, o noticiário regional e as redes sociais foram tomados pela polêmica sobre o embarque da inusitada carga de 25 mil bois, vivos, pelo Porto de Santos. Coincidentemente, há 40 anos, um outro espécime bovino também foi protagonista de manchetes de jornais e rodas de conversa por toda a cidade. Porém, ao contrário da massa de “gado anônima” que embarcou rumo à Turquia para o abate, o bovídeo que virou personagem de uma cena rara naquele final dos anos 1970 na cidade santista tinha nome, endereço e até “profissão” (embora também não fosse tão bem tratado, como se constatou na época)! O boi Semblante era uma das principais atrações da Companhia Furacão de Rodeios que, em dezembro de 1977, armou o circo no gramado do estádio Ulrico Mursa, da Associação Atlética Portuguesa.

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O boi Semblante, logo depois de sua “queda” para dentro do canal 1, defronte ao Estádio Ulrico Mursa, onde foi armado o rodeio.

Um boi fujão

Nossa história, surreal, como diríamos nos dias de hoje, começou às 9 horas da manhã de uma terça-feira, dia 13 de dezembro de 1977. Uma das grandes estrelas da companhia, o touro Semblante, belo espécime da raça zebu, dono de 400 quilos bem distribuídos, resolveu mudar o script de sua rotina diária e, ao invés de seguir tranquilamente para o caminhão que utilizavam para transportá-lo pelas estradas do showbusiness, decidiu fugir, driblando os peões do rodeio até chegar à avenida Pinheiro Machado. Cercado pelos homens da Companhia Furacão e assustado com os carros, o boi fujão resolveu lançar-se para dentro do famoso Canal 1, dando início a uma aventura que chamaria a atenção de toda a cidade.

Semblante deu vários dribles em seus perseguidores.
Semblante deu vários dribles em seus perseguidores.

Dando um baile nos bombeiros

Poucos testemunharam o fato inicial. Mas assim que a notícia se espalhou, os curiosos chegavam às dezenas, centenas, milhares, tamanha a dimensão do inusitado para uma cidade de características urbanas e praianas. “Um boi no canal? Você só pode estar brincando!”, era a frase mais repetida ao longo do dia à medida que a informação chegava a novos ouvidos (num tempo sem internet e, portanto, sem redes sociais, a forma mais ligeira de uma notícia se espalhar era no boca a boca ou pelas estações de rádio).

O povo se aglomerava nas duas pistas da avenida Pinheiro Machado. A festa do rodeio, definitivamente, havia se transferido para dentro do Canal 1 e, gratuitamente, promovia a alegria da criançada, que vibrava a cada “drible” que Semblante aplicava nos homens da guarnição de salvamento AS-17 do Corpo de Bombeiros, acionada quase uma hora depois da burlesca queda do bovino para dentro do patrimônio histórico e sanitário santista (os peões da Companhia Furacão ainda tentaram puxar o boi fujão com o uso de cordas, mas sem sucesso). 

A Polícia Militar também se fez presente, rígida no combate aos abusos do povo, que vibrava como se estivesse num clássico de futebol. Desistindo da ideia de “içar” Semblante para a avenida, os bombeiros julgaram que a melhor solução era “tocá-lo” até a praia.

A imprensa acompanhou passo a passo da aventura do boi no canal.
A imprensa acompanhou passo a passo da aventura do boi no canal.

Cobertura da imprensa

A notícia do fato insólito correu feito rastilho de pólvora. O telefone da redação de A Tribuna não parava de tocar. Para lá foram designados o repórter Carlos Pimentel (hoje editor do site Novo Milênio) e o fotógrafo Arnaldo Giaxa. Na apuração dos fatos, junto aos peões da Companhia Furacão, a argumentação para o ocorrido foi a de que “o boi se jogou no canal devido ao forte calor, não agüentou. Boi gosta muito de água, por isso ele fez isso”, disse de forma singela o peão de rodeio Ivani Cândido.

Giaxa não economizou no dedo e no filme de sua máquina, registrando as cenas, divertidas, de várias formas. Os bombeiros, naquela altura, haviam descido um barco para dentro do canal, a fim de “escoltar” Semblante durante sua jornada ao longo de todo o caminho até a praia, o que acabaria por levar quase duas horas e meia. Segundo a Polícia Militar, cerca de cinco mil pessoas acompanharam a marcha do gado solitário pelo Canal 1. Era engraçado assistir a movimentação do touro fujão em relação aos bombeiros. Uma hora, o boi ia à frente puxando os seus seguidores. Noutra, Semblante invertia a posição e era “puxado” pelos soldados da guarnição de salvamento. O autêntico balé aquático era, então, aplaudido entusiasticamente pelo povo, gerando enormes gargalhadas a cada “drible” bovino. Várias crianças chegaram a entonar: “Aonde o booooi vai, o bombeiro vai atrás”.

Parando o trânsito

A avenida Pinheiro Machado ficou um caos, registrando vários pontos de congestionamento. Além da curiosidade por parte dos motoristas (que chegavam a descer de seus carros para testemunhar de perto o espetáculo inesperado) e até dos passageiros dos ônibus (que se aglomeravam nas janelas para entender o que acontecia), a polícia se viu obrigada a interromper o fluxo de trânsito nas pontes e pontilhões ao longo do Canal 1, para oferecer espaço aos soldados que acompanham a cômica operação.

Após o famoso Curvão, na altura do número 500, a corda que prendia Semblante ao barco foi solta pelos bombeiros, e ele começou a correr. As crianças deliravam!

Todos queriam sair na foto ao final da aventura. Fosse hoje, não iam faltar selfies.
Todos queriam sair na foto ao final da aventura. Fosse hoje, não iam faltar selfies.

Marketing oportunista

Não bastasse o drama de Semblante e o transtorno causado com o espetáculo fora de propósito, a Companhia Furacão aproveitou a audiência para fazer circular seus carros de publicidade que, com alto-falantes, convidavam o público para o rodeio noturno, no campo da Portuguesa. Havia até um caminhão exibindo outros animais, como o touro Veludo, outra sensação do rodeio. Mas, de acordo com os produtores da empresa de entretenimento, aquela ação não era oportunista.  “Pelo amor de Deus, não foi de propósito não. Se fosse propaganda, a gente fazia no sábado ou no domingo, e atraía mais gente para os espetáculos. Mas a gente está indo embora hoje. Se a gente tivesse feito isso dias antes, até as notícias nos jornais seriam promoção para a gente, mas não houve essa intenção. Esse boi ia ser carregado para São Paulo, lá no campo da Portuguesa, e aí escapou. Com isso, sem querer acabamos dando um presente de Natal para a criançada, que assim está vendo um rodeio gratuito no canal”, disse na época o senhor Antônio Veloz Barbosa, conhecido como Tião Mascarado.

 

Fim da linha 

Depois de vários olés, tombos, passagens sofridas pelas comportas ao longo do Canal 1, Semblante finalmente atingiria as areias da praia do José Menino por volta de 11h30. A polícia paralisou o trânsito no trecho da orla e o povo, curioso, corria por entre os carros para assistir de perto os lances finais daquele verdadeiro drama da vida real, e rural. Acuado, o boi ainda conseguiu escapar do cerco formado pelos bombeiros e peões do rodeio, adentrando no mar, tal qual um autêntico banhista de Verão. Por entre as ondas, a estrela do rodeio ainda tentou escapulir dirigindo-se no rumo da Ilha Urubuqueçaba mas, esgotado, acabou capturado. A Semblante, então, finalmente pego e dominado, a cerca de 200 metros da praia, não sobrou outra alternativa a não ser ter virado a atração da praia e alvo de inúmeras fotos. Fosse nos dias de hoje, o boi talvez se tornasse um grande “meme” e, certamente, um campeão de selfies. No fim da linha, ao menos ele voltou para suas tarefas como estrela de um espetáculo que todos os santistas já imaginavam como poderia terminar.

CENAS HISTÓRICAS (ACERVO A TRIBUNA) Fotos de Arnaldo Giaxia

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