Estudo ofereceu propostas de âmbito metropolitano com soluções urbanísticas, viárias e estruturais, em especial ao Porto de Santos
Santos, um hipotético dia qualquer do século 21 na visão de Prestes Maia, em 1948. Eram três horas da tarde, quando o empresário Pedro Oliveira, vindo de carro desde São Paulo pela moderna Via Anchieta, chegava à exuberante cidade santista. Ele tinha uma importante reunião no escritório central de sua empresa, sediado no coração da “Nova Santos”, a extraordinária urbe comercial e portuária situada na margem leste do estuário, dentro da ilha de Santo Amaro. “Espero pegar a ponte baixada neste horário. Estou bastante atrasado”, pensou ele.
Pedro até aventou a possibilidade de tomar um avião até a base aérea de Praia Grande, mas resolveu não abrir mão de ter a flexibilidade e comodidade do automóvel para que, na volta à capital, pudesse passar em alguns outros lugares. Tivesse decidido ir até o aeroporto regional da Baixada Santista, seria obrigado ficar à mercê de algum carro alugado ou de taxistas. Não, o sistema viário de Santos era bom e moderno o suficiente para não o fazer perder mais tempo do que o necessário quando chegasse aos seus limites.
Pedro decidiu não passar pelo velho centro santista, apesar da larga avenida central. Resolveu ir direto ao porto e, na altura do Cemitério da Filosofia, no Saboó, tomou o túnel que o conduziu à zona leste da cidade, acessando a avenida de ligação direta à Nova Santos, seu destino.
De fato, Pedro encontrara a imensa ponte levadiça, tão bela quanto à Bridge Tower de Londres, em plena operação de tráfego para os veículos, e a atravessou sem muitos problemas ao outro lado do estuário. Seguindo, agora, pela avenida central de Nova Santos, mais uma vez ele ficara deslumbrado diante do estilo arquitetônico ostentado pelos modernos edifícios da pujante e futurística cidade portuária. Ao final da via, um imenso obelisco adornava a praça central diante do majestoso prédio da Prefeitura, uma edificação tão bela quanto o velho Palácio José Bonifácio, da Praça Mauá, na Santos histórica.
Depois de estacionar o carro, Pedro fez uma breve pausa antes de ingressar no prédio de sua empresa para a reunião. Fazia tempo que não vinha pessoalmente a Santos e estava encantado com o rápido progresso e o respeito ao melhor dos projetos urbanísticos já realizados.
O Plano Regional de Santos
A narrativa introdutória deste artigo constitui-se numa obra de ficção que leva em conta o mais profundo desejo de um dos urbanistas mais respeitados da história brasileira: o engenheiro e arquiteto Francisco Prestes Mais.
Nascido na cidade interiorana paulista de Amparo, Preste Mais, como era comumente conhecido, formara-se em engenharia civil e arquitetura pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Seu primeiro emprego foi na Prefeitura de São Paulo, em 1918. Dez anos depois, já bastante experiente, se tornou o encarregado de elaborar um “Plano de Avenidas” para a capital bandeirante, concluindo-o em 1930. Em reconhecimento à sua capacidade de gestão, Maia foi alçado à condição de prefeito nomeado de São Paulo em 1938, durante o regime do presidente Getúlio Vargas, permanecendo no cargo até 1945. Depois disso, passou a promover estudos urbanísticos para várias regiões do Brasil, entre elas a Baixada Santista. Foi aí que nasceu o famoso “Plano Regional de Santos”.
O arquiteto externava suas ideias para a Baixada Santista em palestras e através dos artigos que publicava em vários jornais e também na revista da Associação Comercial de São Paulo, a “Digesto Econômico”. Suas propostas eram bem vistas pelas autoridades estaduais e dos municípios do litoral paulista, uma vez que faziam observações coerentes sobre o caráter estratégico para o desenvolvimento urbano regional, em especial nos quesitos transportes e circulação que, notadamente, haviam se tornado os temas centrais de suas preocupações.
Identificando o alvo
Prestes Maia debruçou-se à mesa de estudos sobre a cidade de Santos e seu porto na segunda metade da década de 40, por encomenda do governo do Estado de São Paulo. Nesta época, o cais santista restringia-se tão somente à margem direita do estuário, numa faixa relativamente pequena, com cerca de 3,5 km de extensão, que partia do centro da cidade na direção da Ponta da Praia, findando no lugar denominado “Outeirinhos” (local hoje ocupado pelo Terminal Concais).
Pouco depois do fim da Segunda Grande Guerra, em 1945, o movimento portuário brasileiro, em especial o de Santos, registrou um grande crescimento, em função da retomada das atividades de comércio exterior com a Europa e depois com a Ásia. De certa forma, a situação gerou uma crise viária na cidade, reflexo da falta de investimentos para o reforço da malha de acesso à cidade e ao porto. Em curto espaço de tempo, a situação se agravou e enormes congestionamentos eram registrados diariamente, fato que levou a imprensa paulista a apontar o porto de Santos como um obstáculo ao desenvolvimento do Estado.
Não era a primeira vez que a cidade se via diante deste tipo de polêmica (a de ser considerada um entrave para a expansão econômica paulista). Nas duas últimas décadas do século 19, a terra santista também era duramente criticada, daquela feita por conta da insalubridade resultante da ausência de um plano de saneamento básico, que atirou a população e os visitantes nos braços de epidemias de várias naturezas. Eram tempos terríveis, em que Santos até chegou a ser rotulada como o “Porto da Morte”.
Mas aí vieram Saturnino de Brito e outros bravos sanitaristas em socorro aos santistas, recuperando as condições de habitabilidade da cidade e do porto, que voltou a crescer e se tornar um dos mais importantes do mundo.
Progresso portuário, industrial e turístico
Prestes Maia produziu seu estudo para clarear as ideias do Governo do Estado, que desejava encontrar uma saída para a modernização de Santos, em especial de seu porto, duramente criticado desde meados da década de 1920, em relatórios produzidos por outros estudiosos do tema, como o engenheiro Hildebrando Góis, que enxergava falhas graves no sistema de transporte ferroviário, determinado por ele como o fiel da balança na crise portuária instalada na época. Expandir o porto e melhorar os sistemas modais se tornou a palavra de ordem, ou seja, era necessário garantir a dinamização da ligação com o planalto e a ocupação da margem esquerda do estuário, em Guarujá (que ainda pertencia ao município de Santos), fatores imprescindíveis para o sucesso de qualquer plano estruturante. Um fator importante gerado por esta discussão culminou na inauguração da primeira pista da Via Anchieta, em 1947, que se solidificou como um divisor de águas ao progresso da Baixada Santista, em todos os aspectos, industriais, portuários e até turísticos.
Maia estava ciente do desafio que tinha para a Baixada Santista. Ele percebeu que, mais do que nunca, era preciso desenvolver um plano, de fato, regional, que envolvesse os transportes rodoviário, ferroviário, aquaviário e de aviação. O porto, obviamente, era o foco central. Em artigo publicado no jornal Correio Paulistano, em 8 de junho de 1947, o famoso arquiteto argumentava que a expansão da área de atracação tinha de estar na ordem do dia. “Já aconselhamos a construção de cais para o lado da Ponta da Praia. Há ali alguns quilômetros de margem de estuário, onde a construção seria muito mais fácil, rápida e econômica. Para o lado do Saboó há, também, uma extensão interminável de mangues, prontos a receber obras tendentes à construção de cais, exigindo, porém, maiores dragagens e aterros. O porto de Santos não é obra para remendos e improvisações. … se não desejarmos ver o progresso de São Paulo retardado e paralisado pela falta de um escoadouro marítimo, precisamos pensar desde já na realização de uma grande obra, não de aspecto simplesmente local, mas de caráter nacional”.
Prestes Maia tinha conhecimento sobre os planos da Companhia Docas, que focava seu investimento de ampliação para os lados da Ponta da Praia e Alemoa, “com isso desprezando outros projetos relativos à outra margem do ancoradouro e do canal”. O engenheiro, de certa forma, tinha conhecimento de que a concessionária do Porto de Santos desejava esgotar todas as possibilidades de ocupação na Ilha de São Vicente, “já servida de acessos imediatos, deixando para uma etapa posterior as margens da Ilha Barnabé e da ilha de Santo Amaro, o que, necessitando de prévias ligações férreo e rodoviária, faria recair sobre a empresa uma despesa extraordinária”.
Nessa etapa posterior, havia um antigo projeto da Companhia Docas que, fosse colocado em prática, equipararia o Porto de Santos, em capacidade de atendimento, ao porto de Nova York. “Seriam utilizados a ilha de Barnabé, os mangues do rio Diana, todo o baixio da Bocaina, de Itapema até Conceiçãozinha”. O arquiteto, no entanto, tinha conhecimento sobre os focos de resistência ao plano, como o fato de o governo federal decidir por construir a Base Aérea de Santos na planície da Bocaina, considerada por ele como “o lugar mais desaconselhado para isso, tecnicamente e estrategicamente”.
Os planos gerais para o porto santista, previstos por Prestes Maia incluía o prolongamento do cais até o Saboó, de um lado e até a Ponta da Praia, do outro; a retificação do cais do Valongo até a Alfândega, com o alargamento da faixa portuária; a construção de uma segunda seção do porto, com cais corrido, pátio e instalações anexas, no outro lado do canal, na Ilha de Santo Amaro, entre Bocaina e Conceiçãozinha; a construção, sequenciais, de três grandes bacias de atracação, até o trecho onde estava a balsa; a construção de cais na Ilha Barnabé; a ligação ferro e rodoviária à nova seção do porto na Ilha de Santo Amaro, passando pelo Barnabé. Tal ligação envolveria três pontes: no fundo do ancoradouro (ou entrada do Canéu), sobre o rio Diana e sobre o Canal de Bertioga; e finalmente algumas modificações secundárias, assim como o melhoramento das instalações mecânicas do cais atual, incluindo o alargamento da rua Xavier da Silveira.
Apoio do governador
Depois de apresentar publicamente seus planos, Prestes Maia obteve importante reforço no apoio do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros. Ele ganhou carta branca para disseminar suas ideias no âmbito da Baixada Santista. Na região, o arquiteto e engenheiro encontrou espaço privilegiado nas páginas do jornal A Tribuna, publicando diversos artigos a respeito do Plano Regional de Santos, além de proferir palestras no Rotary Clube e Associação de Engenheiros de Santos, este apresentado por um ex-aluno da Escola Politécnica, o arquiteto Aníbal Martins Clemente.
Após considerar concluído os estudos, Maia encaminhou sua proposta à Secretaria de Obras e Viação do Estado e ao então prefeito de Santos, Rubens Ferreira Martins. O alcaide santista ficou encantado com o plano do renomado urbanista e não pensou duas vezes em levar a proposta para análise da Câmara Municipal, em 1948, para que ela fosse integrada aos estudos da Comissão do Plano da Cidade. O projeto de Prestes Maia, com algumas pequenas alterações, acabou remetido ao legislativo santista junto com um relatório elaborado pela Divisão (municipal) do Plano da Cidade e Projetos, devidamente assinado pelo arquiteto da Prefeitura de Santos, Carlos Lang.
Os técnicos municipais afirmaram que, por diversas vezes, se debruçaram sobre as propostas de Prestes Maia e enxergaram nelas vários pontos convergentes, e que também pensaram em soluções parecidas. “O túnel sob o Monte Serrat foi projetado de acordo com o traçado Prestes Maia, aliás coincidindo com os antigos estudos. A ligação Washington Luiz – Senador Feijó já foi, há alguns anos, prevista, constando mesmo projeto aprovado e em parte executado“, relatou Lang em seus despachos ao prefeito.
Plano Regional de Santos vira livro
A fim de facilitar o entendimento global sobre o Plano Regional de Santos, Prestes Maia mandou editar, em 1950, uma obra que reunia todos os seus artigos publicados na revista da Associação Comercial de São Paulo. Para isso ele teve importante apoio financeiro de alguns amigos e da municipalidade santista. O trabalho também teve alguns capítulos ampliados, em especial os preâmbulos, oferecendo ao leitor elementos informativos sobre a contextualização histórica da Baixada Santista, objetivando sua construção de ideias sobre o objeto final do plano. A estrutura dos capítulos ficou assim:
I – Histórico – Prestes Maia faz uma narrativa do período colonial, contextualizando o aspecto da ocupação dos espaços pelos primeiros habitantes estrangeiros;
II – O Porto – Explica a origem do porto e o seu lugar como mola propulsora da economia do estado de São Paulo, alinhado à questão urbanística na cidade de Santos e o impacto da faixa portuária neste contexto;
III – O Problema do Porto – Maia analisa o congestionamento portuário e estuda algumas propostas anteriores. Para ele a questão portuária é fundamental e defenda a ocupação de outras margens em sua ampliação, seguindo até o que a Companhia Docas chegou a planejar em 1926, onde se previa a implantação de uma indústria naval (estaleiros);
IV – Solução Pluriportuária – Maia apresenta alternativas para a construção de outros portos, mas defendendo a expansão do porto de Santos, apresentando-o como parte integrante da cidade, e não um trecho à parte da urbe santista;
V – Ligações com o Planalto – Um dos pontos nevrálgicos do estudo, apresenta soluções para todos os tipos de modais e as deficiências das comunicações com o interior;
VI – O Problema Portuário e Estaleiros – Uma das molas mestras do Plano, o engenheiro defende a estruturação para as bases de uma indústria naval;
VII – Aeroportos, Plano de Viação – Prestes Maia propõe a mudança da Base Aérea do Guarujá para Praia Grande, considerando várias modificações na malha ferroviária e rodoviária da Baixada Santista;
VIII – Pontes – A exemplo do que já vinha sendo discutido desde o final da década de 1920, ele apresenta alternativas para as pontes que fariam a travessia do estuário, em especial a que ligaria a “velha” Santos à “Nova Santos” (Esta cidade futurista estaria localizada onde hoje está o distrito de Vicente de Carvalho, no Guarujá), por meio de uma ponte elevadiça, a exemplo da Tower Bridge de Londres;
IX – Clima – Circulação – Maia dissertar sobre as questões climáticas da região e complementa com uma apresentação sobre a problemática do sistema de trânsito, justificando o uso de vias perimetrais;
X – Urbanismo – Com um desfecho em chave de ouro, Prestes Maia fala minuciosamente sobre todo o plano viário arterial, além da urbanização dos morros, implantação de parques (Ele considerava a paisagem santista privilegiada e propunha a preservação da mata, de modo a constituir um verdadeiro parque no centro da cidade, e a criação de áreas de lazer pela construção de balneários com piscinas cobertas nas praias e de instalações esportivas para crianças e adultos “proletários” nos bairros.) e jardins, melhor aproveitamento das praias, construção e manutenção de edifícios públicos, enfim, do crescimento da cidade, seu zoneamento, habitações populares, monumentos, plano financeiro, planejamento e sobre a “Comissão do Plano Regional”.
Uma nova perspectiva em relação ao Centro Histórico
Maia construiu uma proposta de caráter mais amplo e menos pontual, embora tivesse se concentrado com mais ênfase na problemática do trânsito, em especial na faixa portuária, levando em conta a exploração das duas margens do estuário. O Plano Regional de Santos pode ser considerado o primeiro a pensar a Baixada Santista como uma área metropolitana. O engenheiro chegou a dizer que “ao contrário dos planos que partem do centro para a periferia, (o seu) procede inversamente, pela consideração inicial da região, para depois, como num cerco gradual, encarar os problemas urbanos e centrais”. A proposta faria com que os desdobramentos mais impactantes acontecessem na cidade de Santos, núcleo central da Baixada Santista.
O atual Centro Histórico de Santos, na visão de Maia, não precisava manter suas características ancestrais, do ponto de vista viário, o que se tornou um contraponto ao plano do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, que preferiu preservar o traçado original da área central. Prestes Maia, em contraponto, desejava abrir e alargar algumas vias para “descongestionar” a área central, tornando-a uma espécie de “perímetro” auxiliar, como “uma grande incisão longitudinal, na direção leste – oeste”. (Saturnino de Brito apresentou na Câmara, nos primeiros anos do século XX, uma “Planta de Santos” que trazia fortes influências do sanitarismo de Camillo Sitte, da “beaux-arts, que prioriza basicamente a questão do saneamento. Brito, no entanto, imprimiu um cuidado estético que conciliaria o traçado existente no centro com as propostas de extensão sem rigidez, utilizando-se de desenho ortogonal, utilizando avenidas diagonais para estabelecer as ligações entre as partes do “arrabalde”). Em linhas mais simples, o Plano Regional de Santos colocaria abaixo prédios históricos importantes, sem se importar com seus valores culturais e patrimoniais.
Dentre outras as intervenções propostas, estavam previstas o alargamento e implantação de diversas ruas e avenidas na área central e bairros próximos, como o Túnel do Monte Serrat (construído nos anos 1950), saindo do eixo da praça dos Andradas até o Jabaquara, de modo a ligar o mais diretamente possível o centro com o sul da ilha, pelas avenidas dos canais 1 e 2 e Ana Costa. Um outro túnel também era previsto no Plano Regional, saindo este do trecho onde está hoje o Cemitério da Filosofia (Saboó), ligando diretamente a Via Anchieta à parte leste da ilha, chegando a altura do local onde está hoje a Santa Casa de Misericórdia, onde haveria uma imensa rotatória. Dali, sairia uma grande via, bem larga, que levaria o trânsito até a ponte de acesso à Nova Santos (Esse túnel acabou não sendo construído. Ao longo das décadas seguintes, a ideia deste novo túnel foi substituída, em termos de proposta urbanística, por um outro que ligaria a Rodovia Imigrantes e a Zona Noroeste diretamente à parte leste da cidade)
Industria Naval e a Ilha de Santo Amaro
Cubatão nesta época ainda não era um distrito industrial, embora já se discutia timidamente a implantação de uma refinaria de petróleo junto ao pé da Serra do Mar. Maia não previa este perfil. A única indústria por ele proposta no plano era a “naval”, com a introdução de estaleiros na região da Bocaina, situado na região Noroeste da Ilha de Santo Amaro, onde se instalou a Base Aérea. Aliás, a gigantesca ilha vizinha à ilha de São Vicente se tornou um dos focos principais das intervenções de Prestes Maia, em especial na margem esquerda do estuário santista. Ali, o engenheiro calculava o surgimento de uma nova cidade comercial e portuária, a qual nominou “Nova Santos”, acessada pela “Velha Santos” por meio de uma ponte levadiça, em estilo arquitetônico semelhante à famosa Tower Bridge, de Londres.
O arquiteto santista Fábio Eduardo Serrano, em trabalho produzido sobre o Plano Regional, em 1986, fala sobre o assunto, enfatizando que o desenho de Prestes Maia gerou muito interesse por três razões: “Em primeiro lugar, é bastante detalhado e coerente com a realidade do local em termos de acidentes geográficos e traçado urbano, permitindo a perfeita compreensão das soluções antevistas da ponte, do sistema viário, parcelamento do solo e edifícios públicos. Em segundo lugar, esclarece em termos de solução real a visão de urbanismo do autor, com sabor de século XIX, pelo seu traçado hipodâmico (Plano urbanístico introduzido pelos gregos, utilizado na planta da cidade de Alexandria no Egito ptolomaico. As cidades eram traçadas com ruas paralelas e perpendiculares a uma grande avenida. Os gregos começaram a usar esse sistema desde o século V aC.), vias radiais a partir de praça com obelisco, jardins geometrizados, quadras com os edifícios ocupando os perímetros e dotados de pátios centrais, edifícios públicos fechando as perspectivas das grandes avenidas.
Plano Arterial
As propostas de Prestes Maia para o sistema de circulação causariam grande impacto na malha urbana. Para minimizar os problemas, o engenheiro apresentou algumas ideias para a absorção dos possíveis efeitos colaterais, no que ele chamou “Plano Arterial”. Tratava-se, basicamente, de um sistema radioconcêntrico, ou seja, uma estrutura viária formada por anéis que circundariam a cidade e levariam o tráfego ao centro por meio de grandes artérias (Esta ideia se daria principalmente em Nova Santos). Os anéis externos se dariam em forma de parkway (estradas arborizadas e largas), fechando o perímetro da ilha de São Vicente pela Zona Noroeste, pelas avenidas portuárias e as da praia. Pelo lado leste, o perímetro ligaria ainda o “ferry-boat” às pontes.
Em Santos o sistema radioconcêntrico vinha embutido na proposta por meio de um anel menor no centro e um maior que contornaria a ilha. Porém, as radiais não estavam tão visíveis no projeto, o que pode ter sido um fator determinante para o município de Santos não ter absorvido suas propostas com tanta vontade. Maia se justificava, dizendo que “Santos não é, como São Paulo, cidade de desenvolvimento circular e livre em todas as direções, limitada como é de diversos lados pelo mar, pelos canais e pelos mangues”. Para o engenheiro, a velha cidade travava o plano em vários pontos, o que não acontecia com a ideia da nova cidade na Ilha de Santo Amaro, uma vez que as áreas ainda eram virgens.
Do ponto de vista das saídas da cidade para fora, Maia acreditava não ser possível, ainda em sua época, evitar o fluxo intensivo de veículos rodoviários pela Via Anchieta (que era nova), mas propunha a construção de marginais, na forma de vias expressas sem cruzamentos, prevendo um futuro agitado neste quesito. Ele também defendia a construção de uma rodovia ligando Santos ao Guarujá, na Ilha de Santo Amaro, através de pistas paralelas às ferroviárias, passando pela Ilha Barnabé. Era uma outra forma de acessar a Pérola do Atlântico e também a Nova Santos. Uma outra ramificação desta estrada seria tracejada na direção do litoral norte (Lembrando que a Rio-Santos só foi viabilizada nos anos 1980).
Solução Ferroviária
Prestes Maia enfatizou na questão ferroviária, tão importante historicamente para a Baixada Santista e bastante potencial tanto para uso do comércio por meio do porto, como para o trânsito de passageiros entre Santos e o Planalto. O engenheiro ofereceu duas duas propostas fundamentais para Santos. A primeira era a retirada da E. F. Sorocabana (Nesta parte da ilha a ferrovia foi implantada em uma das avenidas diagonais prevista por saturnino de Brito, o que dividiu a cidade de Santos em duas, com a valorização fundiária diferenciada em função desse obstáculo) da parte leste da Ilha de São Vicente, aproveitando-se do pátio de manobras para a implantação de um grande parque público (Vale lembrar que essa área, o pátio de manobras da Sorocabana, ponto estratégico na Ilha de São Vicente, por situar-se no centro geográfico de Santos, acabou sendo vendida pelo Governo do Estado, em 2000, para a iniciativa privada. Na época, a Câmara Municipal de Santos, após uma série de manobras legislativas, permitiu o uso dessa área para a construção de um hipermercado e um Pavilhão de Exposições. A ideia do parque, que seria um ganho para toda a sociedade, ficou para trás). A proposta de Maia era promover a interligação da Sorocabana com a E. F. Santos- Jundiaí, a partir de São Vicente. Potencializando o sistema ferroviário, seria também construída uma ponte de ligação entre as ilhas de São Vicente, Barnabé e Santo Amaro, o que possibilitaria aos trens acesso ao Guarujá e, de lá, para Bertioga e o Litoral Norte.
Maia entendia que este sistema poderia promover um amplo desenvolvimento urbano regional, que culminaria na formação de um novo núcleo urbano, uma cidade portuária e comercial a qual poderiam chamar de “Nova Santos”, situada na margem esquerda do estuário, na Ilha de Santo Amaro (No final das contas, esta ocupação acabou se dando, de forma totalmente desordenada, em especial no final dos anos 1950, por conta do alto número de desabrigados resultantes das fortes tempestades que assolaram a região. Desta “migração” é que acabou surgindo o distrito de Vicente de Carvalho, hoje um imenso bairro popular do município do Guarujá)
O engenheiro defendia que tudo o que se relacionava ao porto possuía ligação direta com o desenvolvimento regional, assim como para o Estado de São Paulo, que precisava por ali escoar sua produção agrícola e industrial. Assim, uma das linhas mestras da proposta era promover a integração entre o transporte marítimo e o ferroviário a partir do centro de Santos, em função da estação ferroviária.
Comissão Plano da Cidade
A Comissão do Plano da Cidade, criada no âmbito da Câmara Municipal de Santos, a pedido do prefeito Rubens Ferreira Martins, passou a pautar suas discussões de intervenções urbanas a partir do Plano Regional de Prestes Mais, por ele apresentar um caráter mais abrangente de alternativas para a cidade, considerando-a no seu conjunto. Porém, aparentemente, e da mesma forma que na polêmica entre a municipalidade e Saturnino de Brito (A Planta de Santos apresentada por Saturnino de Brito em 1910 gerou um desencontro de posições sobre sua aprovação, culminando numa série de arruamentos fora do plano, o que levou o engenheiro sanitarista a desabafar por cartas e artigos em jornais. A prefeitura contra-atacou por meio de pareceres jurídicos e técnicos, como o produzido arquiteto Francisco da Silva Teles. Tal situação gerou um extenso debate envolvendo outros personagens e órgãos de imprensa, como os jornais “O Estado de São Paulo”, de São Paulo, “A Tribuna”, de Santos, e “Cidade de Santos”), as soluções adotadas consideravam, principalmente, os estudos parciais apresentados pela Prefeitura e alguns interesses particulares.
Com esse filtro, as ideias de Prestes Maia foram aproveitadas em parte absorvidas, enquanto outras ganharam uma nova roupagem. A justificativa para tais alterações era evitar a abertura de vias que atingiriam prédios recentemente construídos ou terrenos importantes, como o do Hospital de Isolamento (que estava na rota da grande via de acesso à Nova Santos), além de atender interesses de agentes políticos e instituições poderosas como a Companhia Docas, que mantinha representantes dentro da referida comissão.
Uma das interferências das Docas nos planos de Prestes Maia resultou na mudança de posição da Estação Marítima de Passageiros proposta no projeto, sugerindo que a mesma ficasse em um armazém da empresa situado no prolongamento da rua João Pessoa, sem as instalações adequadas, sem a integração com a cidade ou com os demais meios de transporte (A estação marítima internacional prevista nunca foi construída, apesar do desembarque de turistas permanecer no local indicado pela Companhia Docas durante décadas. Em 1999 a Codesp, que substituiu as Docas nos anos 1980, permitiu a construção, através da exploração da estação por particulares, em local ainda mais distante do centro – no Outeirinhos – prejudicando a relação Porto/Cidade.).
O jogo de interesses políticos locais e, em especial, os empresariais, atrapalharam muito a viabilização do Plano Regional de Santos de Prestes Maia. A questão da autonomia dos municípios de Guarujá (em 1947) e Cubatão (em 1949), justamente durante o período de elaboração das propostas, foi determinante para engessar a aplicação das ideias, uma vez que, tornados independentes de Santos, esses novos municípios passaram a contar com “autoridades” sem muito conhecimento dos problemas regionais e inclinadas a pensar apenas de forma isolada, e não metropolitanamente (o qual o engenheiro rotulava como “authority”).
Prestes Maia, ainda diante dessas dificuldades, circulou a região levando suas ideias, apoiadas pelo governador, mas sem muito eco por parte de outros atores políticos. Mesmo em Santos, onde haveria o maior impacto positivo de ações, a absorção das propostas foi parcial, resultando em pouquíssimas realizações, como a do túnel Rubens Ferreira Martins.
Ganhos na discussão urbanística
Apesar da não aplicação dos planos, de forma ampla, e das intercorrências que acabaram impactando na ocupação de áreas importantes regionais (como o caso do surgimento do distrito de Vicente de Carvalho, onde seria erguida a Nova Santos), as ideias de Prestes Maia nortearam por muitos anos as discussões sobre os caminhos urbanísticos regionais, em especial no tratamento sobre o planejamento da cidade.
Segundo o arquiteto Luiz Antônio de Paula Nunes, mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, cuja tese de mestrado versou sobre o Plano Regional de Santos (e que embasou este artigo), “o urbanismo como desenho da cidade a partir do sistema viário, tão explícito no Plano de Avenidas, aliado à questão do transporte de cargas, crucial para o desenvolvimento da região, teve como consequência principal a institucionalização do planejamento no processo que resultou no último relatório da Comissão do Plano da Cidade (O prefeito que recebeu o relatório da Comissão do Plano da Cidade foi o engenheiro politécnico Joaquim Alcaide Vals que o remeteu à Câmara na forma de Projeto de Lei e passou a defende-lo como seu Plano de Governo), consubstanciando suas conclusões, e que se tornou a Lei n°. 1316, de 27 de dezembro de 1951, que aprovou o Plano Regulador da Expansão e Desenvolvimento da Cidade (Essa Lei ficou em vigência desde a década de 50 até a década de 90, determinando o traçado de vias. Ao atingir esse objetivo, reduziu-se consideravelmente sua importância, e as Comissões restringiram-se a discussões menores, com um envolvimento crescente na questão do zoneamento e índices urbanísticos) “.
Ainda de acordo com o arquiteto, pode-se “imaginar que a importância daquele momento estivesse associada à plena redemocratização nacional, mas o processo histórico do planejamento urbano em Santos apenas consolidou um modelo de cidade que já se permitia ver desde o começo do século, ratificando a maior parte dos interesses dominantes”.
Com isso, Santos e região deixaram a oportunidade de solidificar-se como uma área estruturada em todos os pontos de vista, da mobilidade urbana, dos assentamentos populacionais, de um aeroporto regional estratégico, uma rede ferroviária robusta e até mesmo um porto bem mais forte do ponto de vista da influência no mercado mundial e pelas oportunidades de ofertas. Neste século 21, diante de uma região repleta de problemas estruturais, a conta para deixar tudo ajeitado sai bem mais cara.
Sobre Francisco Prestes Maia
Formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em engenharia civil e arquitetura, começou a trabalhar na Prefeitura de São Paulo em 1918 e, em 1928, foi encarregado de elaborar o “Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo”, concluído em 1930. Colocou seu plano em prática quando foi nomeado prefeito de São Paulo em 1938, tendo permanecido no cargo até 1945. A partir de então passou a ser considerado renomado urbanista, elaborando planos e estudos para diversas cidades como Santos e, entre outras, Campinas, Campos do Jordão, Londrina, Recife, Poços de Caldas, e Maricá. Disputou as eleições para governador em 1950 e 1954 e para a prefeitura paulistana em 1957, até que obteve sua única vitória nas urnas em 1961 para a prefeitura de São Paulo, onde permaneceu até 1965, mesmo ano que morreu, em 26 de abril.