Santos, 8 de dezembro de 1999. Havia meses que a presença de Ricardo Campos Mota era constante naquele ponto agitado da entrada da cidade de Santos. Até a terça-feira seguinte, dia 15, ou seja, dali uma semana, a intenção dele era permanecer cumprindo aquela espécie de rito, até que sua cria pudesse finalmente libertar-se, ganhar vida própria e conquistar seu espaço no coração dos santistas. Rica, como o artista plástico era chamado pelos amigos mais próximos desde os tempos da infância e como assinava seus inúmeros trabalhos, olhava abstraído na direção onde se erguia, imponente, a resistente estrutura de aço que nasceu da fragilidade do papel, recortado em tiras na gênese de sua criação. Obra simples na estética, porém sublime na genialidade da leitura, foi composta em vigas tubulares traçadas em duas linhas curvas unidas por uma junção no topo, na forma de um arco inverso, imitando a boca aberta de um peixe. Sim, um peixe, símbolo memorável de uma terra tocada pelo Atlântico, palco de tantas histórias e protagonismos.
Pensativo, Rica abriu seu caderninho de anotações, onde rabiscou algumas linhas reflexivas. Elucubrava o artista sobre o caminho percorrido até ali, iniciado havia cinco anos, em 1994, quando regressava à terra natal após uma enriquecedora experiência artística no norte da Itália (Turim).
A concepção
Quando Mota desembarcou no Brasil, após uma temporada de seis anos na região dos Alpes Europeus, seu maior desejo era retomar o trabalho escultórico na cidade. Em 1988, ele havia deixado uma importante marca na urbe santista, o monumento “Caravela”, dedicado à comunidade portuguesa e instalado nas imediações do Aquário Municipal. Mais experiente e dominando técnicas novas, principalmente com metais, Rica aspirava impactar as paisagens da cidade com suas ideias e concepções. O artista, contudo, vivia um momento de “crise existencial”, como confessara algum tempo depois em algumas entrevistas concedidas sobre sua trajetória. Porém, tal estado de espírito não o arremessou aos braços da melancolia, muito pelo contrário. Se tornara um combustível potente que o impulsionou à criação de obras que, ao longo dos anos, se solidificaram na paisagem de Santos.
A ideia do “Peixe” nasceu da proposta de criar uma identidade visual que traduzisse o DNA da cidade litorânea, simbolizando subliminarmente sua primeira “fonte de vida”. Munido de estilete e uma chapa de papelão, Rica recortou as linhas rabiscadas de sua idealização, extraindo dela a genialidade de uma leitura simples. Certo de sua proposta, iniciou, então, um périplo em busca de quem acreditasse no projeto e pudesse materializa-lo. Como o objetivo era basicamente fazer uso de aço na composição da obra, nada mais justificável do que bater na porta da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), uma das maiores produtora do metal. E assim foi. Rica apresentou seu plano à diretoria da empresa (já privatizada e controlada pelo Grupo Usiminas) que, encantada com o projeto, garantiu a matéria-prima. Mas ainda faltavam os recursos acessórios, obtidos a custo, depois de ter à sua frente muitas “portas fechadas”. Somaram-se à empreitada, ao final, o Grupo A Tribuna, o Dersa (administradora da Via Anchieta à época), a Universidade de São Paulo (USP) e a Associação de Engenheiros e Arquitetos de Santos (AEAS), entre outros.
Inicialmente a ideia era ergue-lo perto da junção da Avenida Nossa Senhora de Fátima com Martins Fontes, nas proximidades do lugar que os santistas chamavam de “Marilu” (por conta de um posto de gasolina com esse nome que ali existiu). Mas o Dersa ofereceu uma área cerca de 700 metros antes deste ponto, na área central da Via Anchieta, entre os bairros de Chico de Paula e Alemoa. Ao visitar o local, Rica ficou entusiasmado. Dali era possível enxergar sua futura obra de longe, pelo menos 1,5 km de distância. Tal escolha foi acertada, pois ela tornou o “Peixe” uma referência aos santistas na sua volta para casa. Até hoje, muitos dizem que quando veem o monumento, sentem-se seguros, aliviados, acolhidos à terra natal.
Mãos à obra
Rica inspecionou pessoalmente a forja das vinte e uma tubulações de aço Cosarcor 400 que comporiam as duas hastes, além da “boca”, do monumento. O material utilizado apresentava uma coloração marrom bem escura, tal qual um grão de café torrado. Isso se dá por conta da composição química das chapas, que contém cromo e cobre. O aço patinado (que se assemelha com uma peça enferrujada) foi a opção do artista em função da necessidade de resistir ao tráfego intenso local e à corrosão natural provocada pela atmosfera peculiar da Baixada Santista.
O “Peixe” seria, enfim, montado como um quebra-cabeças gigante. Todo o processo de implantação, que durou pouco mais de um ano, envolveu cerca de 100 trabalhadores e maquinário pesado, como os dois guindastes utilizados para elevar as peças de aço.
Iluminação para destacar
O monumento, enfim, foi inaugurado solenemente no dia 15 de dezembro de 1999. Para torna-lo ainda mais destacado, os patrocinadores mandaram instalar um sistema de iluminação especial, contendo 61 lâmpadas de vapor metálico, de 70 watts cada. O sistema mantinha iluminado o monumento em toda a sua extensão. E, como o formato das lâmpadas era arredondado, a maior concentração de luz incidia sobre cada parte focada da escultura, permitindo que ela fosse avistada a quilômetros de distância.
Os altos e baixos de um símbolo
A exemplo do que acontece praticamente com todos os monumentos e obras de arte urbanas do país, o Peixe também sofreu com o descaso daqueles quem deveriam cuidar de sua manutenção. A Cosipa mudaria definitivamente sua marca para Usiminas; a Dersa daria lugar à Ecovias e a Prefeitura de Santos não assumiria a tarefa de cuidar da obra de Rica. O abandono resultou na deterioração da peça e o artista foi à público denunciar tal situação.
Em 2007, com recursos da Lei de Incentivo Fiscal Federal (Lei Rouanet), o “Peixe” teve a oportunidade de “respirar” novamente. Um amplo programa de recuperação da estrutura foi viabilizado, contemplando hidrojateamento, pintura e reposição de novo sistema de iluminação (o original havia sido totalmente furtado), com apoio da Philips, que lá instalou quinze nichos contendo 19 projetores com lâmpadas Mastercolor CDM-R de 70 watts. Infelizmente, porém, o resultado cênico do “Peixe” não sobreviveu por muito tempo. Acabou novamente vandalizado, jogando o monumento mais uma vez nas “trevas”.
Em 2015, junto com os primeiros passos do programa de revitalização do sistema viário da entrada de Santos, a obra de Rica, tornada logomarca do projeto, voltou à pauta de discussão. Primeiramente se pensou em tira-la do local, arrastando-a para mais perto da Avenida Nossa Senhora de Fátima. Porém, em razão de questões técnicas, a Ecovias decidiu por mantê-la no mesmo lugar.
O futuro
A ideia é restaurar novamente o “Peixe”, dotando-o de novo sistema de iluminação e câmeras de monitoramento. Quem sabe, desta vez, a obra de arte de Ricardo Campos Mota ganhe o sossego que merece para cumprir seu papel de confortar o coração dos santistas quando estiverem voltando pra casa.
Uma obra de peso
O “Peixe” é um gigante em números. Ele tem 25 metros de altura e pesa 45 toneladas. É sustentado por 21 estacas tubulares enterradas a 20 metros de profundidade. Sua base é feita com dois blocos contendo 16 metros cúbicos de concreto.