Menotti Del Picchia, o “santista” da Semana de Arte Moderna de 1922

Menotti Del Picchia, em 1913.

Apesar de não ter nascido em Santos, o famoso poeta e cronista quase sempre estava na cidade praiana (ele chegou a morar na cidade santista entre 1918 e 1920), espargindo suas ideias modernistas e se encantando com o cotidiano local.

Santos, 9 de fevereiro de 1919. O jovem e celebrado escritor Menotti Del Picchia estava sentado confortavelmente numa das cadeiras reclináveis dispostas no alpendre principal do Cassino e Recreio Miramar (situado no Boqueirão), observando ao longe a venusta paisagem da orla marítima santista, onde anotava, mentalmente, os detalhes do momento para, mais tarde, transformá-los em mais uma primorosa crônica, como tantas outras que publicava em periódicos da capital e que, a partir daquele ano, também passaria a ocupar as páginas de A Tribuna, assinadas por ele na condição de redator/colaborador do jornal. O autor do aclamado livro de poesias “Juca Mulato” (obra que lhe alçou ao estrelato literário nacional, em 1917, aos 25 anos de idade), tão logo pisou a terra santense, foi abraçado pelos mais importantes literatos locais, como Martins Fontes, Waldomiro Silveira, Afonso Schmidt, Salisbury Coutinho, Fábio Montenegro, Paula Gonçalves e Thales de Melo, tornando-se imediatamente um deles.

            Picchia redigiria a partir de sua experiência na orla do Boqueirão: “Domingo. O mar era azul; um veleiro, no estuário manso, procurava o largo, como uma grande borboleta de asas espalmadas. O auto rodava nas praias, de areia escura, plúmbea, elástica e lisa como asfalto. Fui ao Miramar. As crianças dançavam. Pedi um whisky e, amesendando-me no bar, ao lado do dr. Fontes, comecei a examinar o garbo e a galanteria com que os fedelhos se iniciavam para as justas fidalgas dos salões senhoriais e iluminados”. A crônica, intitulada “No Miramar”, publicada no jornal A Tribuna em sua edição do dia 24 de julho de 1919, revelaria a proximidade e o amor que o escritor nutriria ao longo de sua vida pela cidade praiana e portuária.

Semana de Arte Moderna

Em fevereiro de 1922, eclodiria no Brasil um movimento que romperia os paradigmas do modo de ver e interpretar as mais variadas formas do fazer cultural. Artes plásticas, literatura e música seriam revisitadas em seus conceitos, oferecendo uma nova variante em termos de proposta estética. Era, então, dado o pontapé inicial para a implantação do que rotularam como o “modernismo brasileiro”, que nortearia várias áreas da cultura e até mesmo da arquitetura. Nomes como os de Mário e Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti, Agenor Barbosa e Tarsila do Amaral, enfim, se somariam ao de Menotti Del Picchia, como os grandes expoentes do movimento.

Juca Mulato (1917), uma das grandes obras do escritor

Antes mesmo da eclosão do movimento, em 1922, Picchia já difundia os valores e preceitos do modernismo, incluindo através de sua coluna no jornal santista. Disse ele na edição de 5 de janeiro de 1920, que na cidade praiana já latejava a vitalidade cultural moderna, alinhada ao que estava por vir. “Santos, além de ser o mercado onde se resolve a vida econômica do Estado, pela sua cultura e pelos seus artistas, impôs-se singularmente como um centro mental notável. Os nossos pintores procuram a cidade de Braz Cubas, fazendo jus a duas espécies de consagrações artística e financeira. As melhores companhias representam nos seus teatros; concertistas célebres exibem-se nos seus salões. Promovem-se conferências e festas literárias nos seus clubes; organizam-se jogos florais e ligas. O trabalho mental, ao lado de uma efervescência comercial admirável, agita a sua vida intensa e febril. Talvez nem mesmo os próprios santistas observem esses fenômenos. Quem, porém, a certa distância, lhe segue o tumulto da sua vida e progresso, constata, com simpatia e admiração, todo esse latejar de vitalidade“.

Apesar de não ter nascido em Santos e tampouco ter morado na cidade, Picchia era um frequentador nato de nossas praias, salões de saraus e espaços acadêmicos. Se interessava pelo cotidiano da região e até se tornou amigo da primeira Miss brasileira, a santista Zezé Leone, quando de sua vitória no primeiro concurso de beleza promovido no Brasil, entre 1922 e 1923. Muitas de suas crônicas dissertavam sobre coisas corriqueiras do dia a dia santense, explorando “causos” de personagens peculiares, como o “Massaranduba”, um caboclo sexagenário que conheceu num bar em São Vicente. Escreveria ele em sua crônica no jornal A Tribuna do dia 8 de fevereiro de 1920: “Em S. Vicente, num “bar”, onde bebericava aos golinhos um cálice da branca, apresentaram-no. – O Massaranduba. O grande caboclo sexagenário ergueu-se, firme, perpendicular, solene. Saudou-me discretamente. – É um tipo social de antigo santista. Têmpera velha; velho cerne e velha estirpe. Examinei-o. O seu arcabouço equilibrado era forte; nariz grande e chato, acusando a mescla da raça negra no seu sangue indígena. Dos antigos portugueses colonizadores, guardava os olhos negros e vivos, a pigmentação tendente à raça caucasiana e as maneiras senhoriais e seguras. Uma barba ríspida e grisalha contornava-lhe o mento. Sobrancelhas fartas“.

E foi São Vicente o local que Picchia escolheu para reunir-se com seus companheiros do Grupo dos Cinco (formado por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral – pintoras; Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade e Mário de Andrade – escritores; o Grupo dos Cinco foi responsável, junto a outros artistas, pelo referencial ideológico e artístico da Semana de Arte Moderna de 1922) nos meses que se sucederam ao evento que transformou a cultura brasileira.

Menotti Del Picchia,

Quem foi Menotti Del Picchia?

Nascido em São Paulo, em 20 de março de 1892, era filho dos imigrantes italianos Luigi Del Picchia e Corinna Del Corso. Aos cinco anos de idade mudou-se para Itapira, interior paulista, e estudou em Pouso Alegre, Minas Gerais. Se formou em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em 1913, mesmo ano em que publicou sua primeira obra: Poemas do Vício e da Virtude. De estilo literário refinado, passou a escrever para jornais e revistas da época. Em 1917, escreveu a que é considerada sua maior obra: Juca Mulato. É considerado um dos líderes do modernismo, que rompeu paradigmas na cultura brasileira a partir da Semana de Arte de Moderna, em 1922, sendo um dos integrantes do famoso Grupo dos Cinco, junto de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Foi diretor do jornal A Noite e da famosa revista A Cigarra, entre 1920 e 1940. Em 1943, foi eleito para a cadeira nº 28 da Academia Brasileira de Letras. Em 1960, recebeu o Prêmio Jabuti como Personalidade literária do ano, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Também presidiu a Associação dos Escritores Brasileiros, seção de São Paulo e foi agraciado com o título de “Intelectual do Ano”, em 1968, e aclamado “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, em 1982. Morreu em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1988, aos 96 anos de idade. O seu corpo foi velado na Academia Paulista de Letras, da qual também era membro.

Sua morte foi bastante lamentada em Santos, que chorava também pela tragédia ocorrida com a nadadora Renata Agondi, que falecera no mesmo dia, ao tentar atravessar a nado o Canal da Mancha, entre França e Inglaterra. Naquele dia, coragem e poesia se uniam em luto.

 

Clube dos Cinco: Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.