Apesar de não ter nascido em Santos, o famoso poeta e cronista quase sempre estava na cidade praiana (ele chegou a morar na cidade santista entre 1918 e 1920), espargindo suas ideias modernistas e se encantando com o cotidiano local.
Santos, 9 de fevereiro de 1919. O jovem e celebrado escritor Menotti Del Picchia estava sentado confortavelmente numa das cadeiras reclináveis dispostas no alpendre principal do Cassino e Recreio Miramar (situado no Boqueirão), observando ao longe a venusta paisagem da orla marítima santista, onde anotava, mentalmente, os detalhes do momento para, mais tarde, transformá-los em mais uma primorosa crônica, como tantas outras que publicava em periódicos da capital e que, a partir daquele ano, também passaria a ocupar as páginas de A Tribuna, assinadas por ele na condição de redator/colaborador do jornal. O autor do aclamado livro de poesias “Juca Mulato” (obra que lhe alçou ao estrelato literário nacional, em 1917, aos 25 anos de idade), tão logo pisou a terra santense, foi abraçado pelos mais importantes literatos locais, como Martins Fontes, Waldomiro Silveira, Afonso Schmidt, Salisbury Coutinho, Fábio Montenegro, Paula Gonçalves e Thales de Melo, tornando-se imediatamente um deles.
Picchia redigiria a partir de sua experiência na orla do Boqueirão: “Domingo. O mar era azul; um veleiro, no estuário manso, procurava o largo, como uma grande borboleta de asas espalmadas. O auto rodava nas praias, de areia escura, plúmbea, elástica e lisa como asfalto. Fui ao Miramar. As crianças dançavam. Pedi um whisky e, amesendando-me no bar, ao lado do dr. Fontes, comecei a examinar o garbo e a galanteria com que os fedelhos se iniciavam para as justas fidalgas dos salões senhoriais e iluminados”. A crônica, intitulada “No Miramar”, publicada no jornal A Tribuna em sua edição do dia 24 de julho de 1919, revelaria a proximidade e o amor que o escritor nutriria ao longo de sua vida pela cidade praiana e portuária.
Semana de Arte Moderna
Em fevereiro de 1922, eclodiria no Brasil um movimento que romperia os paradigmas do modo de ver e interpretar as mais variadas formas do fazer cultural. Artes plásticas, literatura e música seriam revisitadas em seus conceitos, oferecendo uma nova variante em termos de proposta estética. Era, então, dado o pontapé inicial para a implantação do que rotularam como o “modernismo brasileiro”, que nortearia várias áreas da cultura e até mesmo da arquitetura. Nomes como os de Mário e Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti, Agenor Barbosa e Tarsila do Amaral, enfim, se somariam ao de Menotti Del Picchia, como os grandes expoentes do movimento.
Antes mesmo da eclosão do movimento, em 1922, Picchia já difundia os valores e preceitos do modernismo, incluindo através de sua coluna no jornal santista. Disse ele na edição de 5 de janeiro de 1920, que na cidade praiana já latejava a vitalidade cultural moderna, alinhada ao que estava por vir. “Santos, além de ser o mercado onde se resolve a vida econômica do Estado, pela sua cultura e pelos seus artistas, impôs-se singularmente como um centro mental notável. Os nossos pintores procuram a cidade de Braz Cubas, fazendo jus a duas espécies de consagrações artística e financeira. As melhores companhias representam nos seus teatros; concertistas célebres exibem-se nos seus salões. Promovem-se conferências e festas literárias nos seus clubes; organizam-se jogos florais e ligas. O trabalho mental, ao lado de uma efervescência comercial admirável, agita a sua vida intensa e febril. Talvez nem mesmo os próprios santistas observem esses fenômenos. Quem, porém, a certa distância, lhe segue o tumulto da sua vida e progresso, constata, com simpatia e admiração, todo esse latejar de vitalidade“.
Apesar de não ter nascido em Santos e tampouco ter morado na cidade, Picchia era um frequentador nato de nossas praias, salões de saraus e espaços acadêmicos. Se interessava pelo cotidiano da região e até se tornou amigo da primeira Miss brasileira, a santista Zezé Leone, quando de sua vitória no primeiro concurso de beleza promovido no Brasil, entre 1922 e 1923. Muitas de suas crônicas dissertavam sobre coisas corriqueiras do dia a dia santense, explorando “causos” de personagens peculiares, como o “Massaranduba”, um caboclo sexagenário que conheceu num bar em São Vicente. Escreveria ele em sua crônica no jornal A Tribuna do dia 8 de fevereiro de 1920: “Em S. Vicente, num “bar”, onde bebericava aos golinhos um cálice da branca, apresentaram-no. – O Massaranduba. O grande caboclo sexagenário ergueu-se, firme, perpendicular, solene. Saudou-me discretamente. – É um tipo social de antigo santista. Têmpera velha; velho cerne e velha estirpe. Examinei-o. O seu arcabouço equilibrado era forte; nariz grande e chato, acusando a mescla da raça negra no seu sangue indígena. Dos antigos portugueses colonizadores, guardava os olhos negros e vivos, a pigmentação tendente à raça caucasiana e as maneiras senhoriais e seguras. Uma barba ríspida e grisalha contornava-lhe o mento. Sobrancelhas fartas“.
E foi São Vicente o local que Picchia escolheu para reunir-se com seus companheiros do Grupo dos Cinco (formado por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral – pintoras; Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade e Mário de Andrade – escritores; o Grupo dos Cinco foi responsável, junto a outros artistas, pelo referencial ideológico e artístico da Semana de Arte Moderna de 1922) nos meses que se sucederam ao evento que transformou a cultura brasileira.
Quem foi Menotti Del Picchia?
Nascido em São Paulo, em 20 de março de 1892, era filho dos imigrantes italianos Luigi Del Picchia e Corinna Del Corso. Aos cinco anos de idade mudou-se para Itapira, interior paulista, e estudou em Pouso Alegre, Minas Gerais. Se formou em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em 1913, mesmo ano em que publicou sua primeira obra: Poemas do Vício e da Virtude. De estilo literário refinado, passou a escrever para jornais e revistas da época. Em 1917, escreveu a que é considerada sua maior obra: Juca Mulato. É considerado um dos líderes do modernismo, que rompeu paradigmas na cultura brasileira a partir da Semana de Arte de Moderna, em 1922, sendo um dos integrantes do famoso Grupo dos Cinco, junto de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Foi diretor do jornal A Noite e da famosa revista A Cigarra, entre 1920 e 1940. Em 1943, foi eleito para a cadeira nº 28 da Academia Brasileira de Letras. Em 1960, recebeu o Prêmio Jabuti como Personalidade literária do ano, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Também presidiu a Associação dos Escritores Brasileiros, seção de São Paulo e foi agraciado com o título de “Intelectual do Ano”, em 1968, e aclamado “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, em 1982. Morreu em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1988, aos 96 anos de idade. O seu corpo foi velado na Academia Paulista de Letras, da qual também era membro.
Sua morte foi bastante lamentada em Santos, que chorava também pela tragédia ocorrida com a nadadora Renata Agondi, que falecera no mesmo dia, ao tentar atravessar a nado o Canal da Mancha, entre França e Inglaterra. Naquele dia, coragem e poesia se uniam em luto.