Atividade com 129 anos de prática deu suas primeiras pedaladas no Velódromo Santista, onde hoje se ergue o Coliseu
Santos, 18 de julho de 1897. Do céu da cidade, uma chuva fina e teimosa tentava estragar a festa mais esperada do ano — em vão. Era uma tarde de domingo, e os santistas, movidos por entusiasmo e curiosidade, não se deixaram abater por um capricho do clima. Todos que ali estavam fizeram questão de viver um momento que se revelaria muito mais que uma simples inauguração: tratava-se de um marco histórico, daqueles que resistem ao tempo.
Santos inaugurava uma nova era — uma era em que o progresso ganhava rodas, curvas e aplausos. O Coliseu Santista, que alguns anos à frente seria consagrado como espaço teatral, nascia, naquele dia, como palco para um novo culto urbano: o ciclismo. E ali, nas rústicas arquibancadas de madeira montadas em forma oval, como um “coliseu”, não bastava assistir. Era preciso sentir o vento, acompanhar com os olhos a cadência dos atletas e vibrar com a emoção de cada chegada.
O nascimento de uma cultura sobre rodas
Os santistas já haviam se adiantado em relação à maioria das cidades brasileiras, criando em 1896 seu próprio Velo Sport Club (cuja primeira sede foi na Rua General Câmara, 278), moldado na vontade de fazer da prática muito mais do que uma atividade esportiva. Era, sim, criada uma cultura, o fomento de um meio de transporte que chegava para ficar e se consolidar. Pedalar, daquele momento em diante, seria encarado ao mesmo tempo como exercício, bem como liberdade em ritmo constante.
O clima no Coliseu era de plena festa. Bandeiras multicoloridas tremulavam entre os arcos das arquibancadas, preenchidas pelas famílias da cidade, que vinham com seus melhores trajes e a curiosidade acesa. Ao meio-dia, a aglomeração já era imensa, e o entusiasmo crescia a cada volta dos páreos. E quando soaram os nomes dos vencedores, a vibração do público parecia empurrar as bicicletas com mais força que o próprio pedal.
Os atletas não eram conhecidos por seus nomes próprios, mas por apelidos criativos e, muitas vezes, inusitados — como se cada um representasse um clube singular. Nos páreos, era comum encontrar competidores identificados como Pery, Santópolis, Caramuru, Centauro, Cruzeiro, Pirajá, Casulo, Rapp, Orion, Nautilus, entre outros. Cada ciclista vestia um uniforme de cor distinta, o que ajudava o público a reconhecê-los na pista e dava ainda mais charme às disputas.
As provas realizadas naquela tarde inaugural envolveram diferentes categorias e distâncias, todas disputadas em torno da pista oval do velódromo, que media cerca de 300 metros. Houve baterias com quatro, seis, sete e até oito voltas, reunindo atletas locais e visitantes em acirradas disputas de velocidade. O público, atento a cada lance, acompanhava com entusiasmo os páreos — que recebiam nomes simbólicos, como “Imprensa”, “21 de Abril” e “Velo Sport Club” —, celebrando com palmas e vivas cada chegada. Era o ciclismo se afirmando como espetáculo esportivo, uma paixão nascente entre os santistas.
Ao final das disputas, já no início da noite, todos foram convidados ao banquete oferecido pelo Velo Esporte Clube Santista aos ciclistas paulistas. Brindes se ergueram em clima de euforia e amizade, sob a promessa de que, dali em diante, todos os domingos trariam à cidade entusiásticas corridas.
Pedaladas abriram caminho para o futebol
O Velódromo de Santos conquistou enorme popularidade ao longo dos anos, movimentando intensamente o cenário esportivo da cidade. Um dado curioso — e pouco lembrado — é que o futebol santista, esporte que mais tarde mobilizaria multidões, nasceu justamente entre os primeiros ciclistas da região. Nomes como Henrique Porchat de Assis (um dos proprietários do Coliseu), Luiz Nery, Roberto Muller, Francisco Salgado César, Raul Schmidt, Gil de Souza Rodrigues, Victor Cross, Miguel Baraúnas, Theodoro Joyce, Walter Grimsditch, Theodureto Souto, Theodorico de Almeida, Jonas da Costa Soares e Eduardo Cunha Machado fizeram parte dessa transição pioneira. Na histórica fotografia da primeira partida de futebol realizada em Santos, em 1902, como um símbolo silencioso dessa origem, uma bicicleta aparece encostada em um canto da imagem — testemunha discreta da conexão entre o ciclismo e o nascimento do futebol na cidade.
De pista para palco
O Velódromo encerrou suas atividades em 1903, e o espaço permaneceu subutilizado por alguns anos, até ser adquirido, em 1907, pelo empresário Francisco Serrador. No local, foi erguido o Teatro Coliseu Santista, inaugurado em 1909 com a exibição de filmes e um espetáculo beneficente. Cinco anos depois, o Coliseu já havia se consolidado como a principal casa de espetáculos da cidade, tornando-se um ponto de encontro da família santista e referência cultural na região. E quanto às bicicletas? Ah, essas prosseguiram sua história em Santos a toda velocidade, ao sabor do vento.
SANTOS , PIONEIRA SOBRE DUAS RODAS
A história da bicicleta no Brasil começou no final do século XIX, acompanhando as transformações urbanas e os avanços tecnológicos trazidos pela Revolução Industrial. As primeiras bicicletas — inicialmente chamadas de velocípedes ou biciclos — chegaram ao país por volta da década de 1890, importadas principalmente da Europa, sobretudo da Inglaterra e da França. Eram artigos de luxo, usados por uma elite urbana que via na bicicleta tanto um símbolo de status quanto uma novidade esportiva.
O entusiasmo foi imediato nas grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Santos, onde surgiram os primeiros clubes de ciclismo, como o Velo Club Brasileiro e o Velo Sport Club Santista (1896). Nessas instituições, os ciclistas se reuniam para realizar desfiles, provas de velocidade e passeios, como o promovido entre Santos e Itanhaém em 2 de maio de 1897. Em várias cidades, velódromos foram construídos para abrigar competições, e o ciclismo passou a ser considerado um esporte de prestígio.