Edmond Plauchut protagoniza os primeiros voos de aeroplano em Santos

A terra de Bartolomeu de Gusmão, pai da navegabilidade aérea, sente pela primeira vez a magia da aviação, pelas mãos de um francês apaixonado pelo Brasil

Santos, domingo, 5 de fevereiro de 1911. Eram cinco horas da tarde. No bar do Parque Balneário, cavalheiros e famílias buscavam alívio para o calor sufocante de Santos, rendendo-se a sucessivos copos de bebidas geladas. No alpendre do hotel, um grupo de senhoras e jovens acompanhava atentamente a conversa do francês Joseph Marie Edmond Plauchut, ou simplesmente Edmond Plauchut, como costumava ser chamado, um aviador carismático e renomado, recém-chegado da Europa. Ele relatava suas experiências nos primeiros voos realizados em Pau, a bela cidade gálica situada ao sopé dos Pirineus. Plauchut era um dos mais destacados discípulos de Louis Blériot, o pioneiro que, em 1909, cruzara o Canal da Mancha a bordo de um monoplano batizado com seu próprio nome, o audacioso “Blériot”.

A conversa estava empolgante. Plauchut, verdadeiro entusiasta da aviação, dedicava-se a ela de corpo e alma. Seus olhos brilhavam ao falar do elegante e veloz Blériot, que descrevia como a máquina ideal, a mais perfeita para viagens. A plateia, atenta, ouvia cada detalhe enquanto ele relatava como fora sua primeira queda em aeroplano — um acidente do qual saíra ileso, por sorte. Nem todos, porém, tinham o mesmo destino. Nos tempos de pioneiros, muitos não eram tão afortunados. Com pesar, Plauchut compartilhou a história protagonizada por seu amigo Carlos Tenaud, que agonizava em Lima após uma terrível queda. Eram condiscípulos em Pau e planejavam juntos participar da semana de aviação na capital peruana. O destino, no entanto, reservara outro desfecho para Tenaud.

Enquanto as horas passavam e a noite se aproximava, a tarde quente e abafadiça permanecia quase imóvel, mergulhada em uma calma absoluta. O céu tingia-se de tons dourados e arroxeados, e no ar pairava a expectativa de um espetáculo inédito para os santistas. Plauchut, tomado por um ímpeto irresistível, sentiu despertar em si o desejo de rasgar os céus a bordo de seu veloz velívolo de asas elegantes.

— Ah! O meu aparelho, aqui, agora!…, disse em bom tom, para si mesmo, e para os ouvintes.

Olhando para a Baía de Santos, do alto do alpendre do Parque Balneário, o francês contemplava a paisagem com admiração.

— Que lindo voo farei sobre o espelho desse mar sossegado! — exclamou, deixando transparecer seu entusiasmo. Seus grandes olhos azuis percorriam a superfície imperturbável das águas, lisas como um imenso lençol de prata, intocado pelo menor sopro de vento. A quietude daquele fim de tarde parecia desafiar a própria natureza de um aviador, cujo espírito ansiava por cortar os céus e riscar o horizonte com sua máquina de voar.

— E por que não voa, meu amigo? — indagou um dos circunstantes.

— Como poderei fazê-lo se tenho ainda na Alfândega o meu monoplano? Só amanhã o retirarei do armazém nº 4, onde foi descarregado, de bordo do vapor Ceylan.

— E pretende mesmo voar em Santos?

Edmond, então, voltou-se para sua plateia, um leve sorriso nos lábios, e disse:

Ça dépend… A aviação é um sport bastante custoso. Não se a faz sem grandes despendios e sacrifícios.

A voz de Plauchut carregava a convicção de quem conhecia, na pele, os desafios de desafiar os céus. A conquista do ar exigia paixão e coragem; como também demandava investimento, perseverança e, muitas vezes, renúncias. Os olhos atentos dos santistas que o cercavam refletiam fascínio, mas também a compreensão de que, por trás da glória dos voos audaciosos, havia uma realidade de esforço e dedicação absoluta.

Naqueles anos, São Paulo oferecia as maiores vantagens aos que se dedicavam à aviação. Então, atraído por um excelente contrato de exibição, Plauchut rumou para o Brasil em busca de reconhecimento e dinheiro. A municipalidade santista, ciente de sua presença e de suas pretensões no alto da Serra, decidiu incentivar a disputa, oferecendo um prêmio que levaria o nome de “Bartolomeu de Gusmão”, em homenagem ao padre santista do século XVIII, pioneiro da invenção do balão. Plauchut cogitou realizar alguns voos em Santos, mas sabia que poderia não estar sozinho na corrida pelo prêmio. Em vez de se preocupar com a concorrência, celebrou a possibilidade:

— Será um lindo raide, pode crer.

Após terminar seus drinques, Plauchut levantou-se com determinação e bradou:

— Estou decidido a fazer uma bela apresentação nesta terra de Gusmão!

Em seguida, pediu a um funcionário do hotel que trouxesse um mapa da região de sua bagagem. Com o papel em mãos, traçou seu plano:

— Vou decolar daqui, da praia do Gonzaga, seguir até os Itaipus, em Praia Grande, sobrevoando o Forte Duque de Caxias, e retornar para a aterrissagem no ponto de partida.

Seriam cerca de 14 quilômetros de percurso, a maior parte sobre o mar. A notícia logo geraria alvoroço. Plauchut pediu licença aos novos amigos e recolheu-se ao quarto, enquanto os demais se dispersavam para retomar suas rotinas. Alguns ainda lançaram o olhar à longa distância entre a praia e o forte, cujas muralhas brancas, destacadas entre a vegetação densa, resplandeciam sob a luz dourada do sol poente.

– Um raide aéreo em Santos — que sucesso estrondoso será, disse um deles!

– Que a ideia se concretize e possamos ver Plauchut cortar os céus azuis e serenos com a hélice de seu Blériot. Será um dia histórico! – brindou outro cavalheiro

Chamada da matéria publicada no dia 14 de fevereiro de 1911 no jornal Diário de Santos. Na imagem, o hangar improvisado montado pelo Parque Balneário, nas areias do Gonzaga, e um close do aviador antes da partida.

Primeiros testes e pioneirismo

No dia 8, Plauchut conseguiu liberar seu aeroplano da Alfândega e imediatamente iniciou sua montagem em um pequeno “hangar” montado de forma improvisada pelo proprietários do Parque Balneário. Na parte da tarde, Edmond realizou testes com o motor “Gnome”, de 50 cavalos (HP), que posteriormente seria desmontado para uma limpeza geral e regulagem. Assim que concluiu o trabalho, iniciou a primeira série de voos preparatórios para a disputa do prêmio Bartholomeu de Gusmão. Durante os testes, Plauchut entrou para a história santista ao protagonizar o primeiro voo sobre a cidade de Santos a bordo de um aeroplano.

Enquanto o francês realizava suas experiências, o responsável pelo prêmio, Adriano Moura, abriu uma conta especial na agência do Banco do Brasil para captar as doações vindas de cavalheiros de Santos e da capital. Empresários como Renato Pinho, Carlos Sardinha, Augusto de Oliveira e Francisco Conceição logo prontificaram-se a contribuir para a iniciativa.

No dia 12, Plauchut voltou a realizar voos de testes, chamando a atenção dos santistas, que como nunca olhavam na direção dos céus da cidade, cujo silêncio era quebrado pelo barulho forte da incrível máquina voadora. O espaço aéreo de Santos testemunhava a capacidade de voar, como assim provara pela primeira vez um filho da terra, Bartolomeu de Gusmão, no longínquo ano de 1709.

A ideia do francês era concluir os testes, sempre realizados em trechos mais curtos, próximo as praias de Santos, e marcar a exibição oficial, por sobre a baía, para dali uns dias.

Réplica do Bleriot XI, utilizado por Edmond Plauchut em Santos, no ano de 1911. Foto de Håkan Dahlström Photography

O primeiro voo completo pela Baía de Santos

Enfim, chegava o dia 13, uma segunda-feira, a grande data do voo oficial. O céu amanheceu envolto em uma névoa tênue, gerando um véu difuso sobre os morros do Itaipú e da Ponta Grossa, rota do voo de Plauchut.

Nas praias, os banhistas entregavam-se ao alvoroço matinal—alguns já desafiavam as ondas, mergulhando na espuma revolta; outros permaneciam na areia, contemplando o oceano. Ao longe, dois transatlânticos avançavam vagarosamente, deixando no horizonte um traço esguio de fumaça, como se riscassem o céu.

Foi então que seis homens vieram desde os jardins do Parque Balneário. Caminhavam com propósito, conduzindo a engenhoca singular—um pássaro mecânico de tela, madeira e alumínio. Com cautela e precisão, pousaram-no na praia, a uma centena de metros do parque. Os banhistas, intrigados, interromperam suas conversas e lançaram olhares curiosos; rapazes mais ousados se aproximaram, ávidos por entender o que acontecia. Na fachada do hotel, janelas se abriram, e rostos sonolentos espiavam, capturados pelo inusitado espetáculo.

Entre os entusiasmados homens, estava o aviador Edmond Plauchut, prestes a desafiar os céus com seu Blériot. De todos os cantos do Gonzaga, surgiam espectadores, formando uma multidão silenciosa e expectante.

O mecânico Akary, vindo da Europa para auxiliar Plauchut, realizou a última inspeção na máquina. Testou os comandos, conferiu as engrenagens e, satisfeito, deu passagem para que seu chefe subisse à nacelle. O momento era solene. Os olhos do público refletiam uma mescla de fascínio e receio. A esposa do aviador francês, a brasileira Carolina de Oliveira Paes Plauchut, ao lado da  filha, a pequena Lovely, permanecia imóvel, as mãos unidas sobre o peito, cercada por amigos do aviador.

Apenas Plauchut exibia um sorriso calmo. Postado sobre o dorso de seu grande pássaro, deu as últimas instruções.

— Quando eu erguer a mão, soltem o aparelho! — ordenou.

Os auxiliares seguraram firmemente a cauda do Blériot, enquanto Akary acionava o motor. A hélice girou devagar, quase hesitante, mas logo explodiu em movimento, rodopiando com um ronco vibrante.

O aviador ergueu a mão. Os auxiliares soltaram. O Blériot, leve e gracioso como um pássaro em primeiro voo, iniciou sua corrida sobre a areia. Avançou apenas alguns metros antes de erguer-se, sutilmente, balançando como se testasse suas asas. Subitamente, encontrou o vento e ascendeu com vigor, riscando o céu santista.

Representação gráfica do Bleriot XI. Foto: Breiting Airshow

A praia irrompeu em júbilo. Eram seis e quinze da manhã, e as palmas ecoaram por toda a praia. Gritos de surpresa e encantamento misturavam-se ao som do mar. Crianças corriam pela areia, seguindo a trajetória do aeroplano, como se pudessem alcançá-lo.

Lá no alto, o Blériot flutuava. Plauchut manejava os controles com destreza, elevando-se na direção dos morros do José Menino e do Itararé. Foi mais além, na direção da Praia Grande, quando, de repente, desapareceu.

Uma pequena névoa o engoliu sem aviso. O céu, antes cortado pelo rastro da máquina, agora se fechava em um silêncio inquietante.

— Onde está? Vocês o veem? — perguntavam-se as pessoas na areia da praia, aflitas.

Segundos que pareciam eternos se passaram, até que, suavemente, uma pequena gaivota surgiu, deslizando sobre o oceano, na saída da Baía de Santos. E logo atrás dela, sereno e seguro, veio o Blériot.

Era ele. Plauchut regressava.

O avião mergulhou em direção à Ilha de Santo Amaro, passando rente à ilha das Palmas, depois contornava a Ponta dos Limões e passava em frente à fortaleza velha. Sobre os navios fundeados na barra, voou tão baixo que parecia pairar sobre os mastros. Virou na direção da Ponta da Praia, onde começou a se aproximar da areia. As pessoas na praia do Gonzaga abriram espaço para o pouso do Bleriot, que tocou a areia quase de leve e, com um último suspiro mecânico, pousou diante do hotel.

O alvoroço foi imediato. Palavras não bastavam para expressar o êxtase do momento. Madame Plauchut chorava de emoção. Lovely batia palmas, saltava, ria. Os amigos do aviador o cercaram, abraçando-o entre exclamações de triunfo.

Os auxiliares tomaram o Blériot e o conduziram de volta ao hangar. Plauchut, ainda vibrando com a emoção da façanha, subiu ao terraço do Parque, onde brindou com champagne, celebrando a conquista dos céus sobre a terra de Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

O voo durou exatamente 11 minutos e 42 segundos. A hélice havia girado a 1.200 rotações por minuto. O espetáculo havia terminado, mas Plauchut ainda iria fazer mais um voo, pelo prêmio e para autoridades.

O Prêmio Bartolomeu de Gusmão

Em 24 de fevereiro, logo nas primeiras horas da manhã, uma multidão se reuniu na praia do Gonzaga para assistir ao voo de Edmond Plauchut, o intrépido aventureiro dos céus que conquistara os santistas nos últimos dias e buscava conquistar o prêmio de aviação Bartholomeu de Gusmão, instituído na cidade. O Hotel Parque Balneário e os arredores estavam repletos de espectadores ansiosos pelo momento da decolagem.

Pouco depois das 8 horas, Plauchut chegou ao local, trajando uma camisa de tricô e calças brancas, exibindo bom humor ao assobiar uma valsa francesa. Após os preparativos finais, ordenou que seu monoplano fosse posicionado para a decolagem. Um morteiro anunciou a partida, e o rebocador São Paulo, no meio da Baía de Santos, içou o sinal desejando-lhe uma excelente viagem.

Após uma curta corrida de aproximadamente 50 metros, o monoplano alçou voo, atingindo 300 metros de altitude. Plauchut seguiu em direção do Itapema, sobrevoou a Fortaleza da Barra Grande e avançou mais cinco quilômetros além, antes de retornar pela Ilha das Palmas e pela Ponta da Praia. Durante o percurso, cruzou embarcações como o próprio rebocador São Paulo, além do vapor “Argentina” e um barco carvoeiro.

Ao completar a volta sobre a área inicial, optou por pousar na Ponta da Praia para evitar riscos à multidão que se aglomerava no Gonzaga. Cercado por uma plateia entusiasmada, Plauchut foi levado ao Parque Balneário, onde recebeu homenagens. O empresário Adriano Moura, que organizou o prêmio, lhe ofereceu uma taça de champanhe, enquanto representantes da Associação Comercial de Santos entregaram-lhe uma medalha de ouro comemorativa da conquista. A peça trazia os dizeres “Bartholomeu de Gusmão, prêmio de aviação, Santos” e, no verso, “Edmond Plauchut, 1911”.

Repercussão Nacional

A notícia dos voos de Planchut em Santos percorreram o país, estampados em manchetes de diversos jornais. O renomado Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, recebeu em sua redação, em março, o aviador francês, que iniciou seus testes para empreender na capital nacional seus voos de demonstração. Já se dizia que os voos realizados em Santos haviam sido “um dos mais belos realizados em São Paulo, uma vez que o Bleriot de Planchut fez um longo voo sobre o mar, percorrendo em todo o percurso mais de 40 quilômetros”.

Depois dos voos de fevereiro de 1911, não se teve notícias de outros voos de Plauchut em Santos.

Curiosidade

Ao contrário do que muitos historiadores afirmaram, Edmond Plauchut nunca foi mecânico de Santos Dumont.

Lovely Plauchut, filha do aviador, acabou se radicando na região, tendo sido uma das primeiras professoras alfabetizadoras do Grupo Escolar de São Vicente.

Plauchut (direita) ao lado de seu mecânico, no Rio de Janeiro, em 1911. Foto: Revista da Semana (RJ)